Mitos da Tradução

“As legendagens fazem-se em tempo real ou quase, não é?”

Luísa Ferreira
Entre Linguas
Published in
5 min readJun 11, 2015

--

por Luísa Ferreira

O título parece uma piadinha de mau gosto no mínimo exagerada e dramática mas, como tradutora-legendadora, já ouvi perguntas e comentários desta natureza mais vezes do que gostaria de ter ouvido.

Tal como acontece com outros ramos da tradução, a perceção que se tem do tempo que este trabalho implica é um pouco deturpada, tanto da parte dos espetadores como da parte dos clientes.

A tradução de audiovisuais e a legendagem, apesar de consistirem, muitas vezes, em projetos de curta duração — como um filme ou um episódio de uma série — não são tarefas que se despachem enquanto o diabo esfrega um olho. De facto, essa ideia tão disseminada é um dos maiores inimigos do profissional que quer apresentar um trabalho bem feito, com a qualidade que o conteúdo, o cliente, o público e o próprio tradutor merecem.

Já que falamos de tempo, tentemos então quantificar muito por alto a produção diária de um tradutor-legendador.

Idealmente, um profissional desta área deveria apresentar cerca de quarenta minutos traduzidos e legendados por dia de trabalho ou oito horas, se preferirem.

Não parece nada de especial, pois não?

Quarenta minutos passam num instante, logo, oito horas serão mais do que suficientes para despachar a coisa, ainda com pausas para café, conversas telefónicas e para o cultivo da nobre arte do visionamento de vídeos de gatos no YouTube.

Nada mais errado.

Quarenta minutos em oito horas é uma excelente média, que pode ser ultrapassada ou não chegar sequer a ser atingida, porque há muitos fatores envolvidos neste processo, como qualquer tradutor sabe e que gostaria de enumerar.

O processo da tradução e legendagem

Num mundo ideal, em que os unicórnios pastam livres e dragões cor-de-rosa cospem arco-íris, o tradutor-legendador organizaria o seu trabalho da seguinte maneira:

  1. Visionamento do conteúdo com auxílio do guião para verificar a fiabilidade do mesmo e ficar familiarizado com a narrativa.
  2. Tradução do conteúdo.
  3. Legendagem.
  4. Revisão com imagem.

Infelizmente, devido aos prazos apertados, raríssimas vezes é possível seguir esta estratégia e alguns passos acabam por ser aglomerados para poupar tempo — e assim beneficiar tanto o cliente, que recebe o trabalho a tempo e horas, como o tradutor, que assim consegue produzir e ganhar mais.

Mesmo agilizando o processo, o tradutor tem, no mínimo dos mínimos, de traduzir com imagem diretamente no programa de legendagem, legendar e rever.

Creio que basta ter noção disto para perceber que a tradução de audiovisuais é mais morosa do que à partida possa parecer.

Permitam-me sublinhar a importância da revisão. Não me refiro apenas à revisão ortográfica obrigatória; o tradutor deve rever o seu trabalho de modo a aperfeiçoá-lo, a alterar quaisquer opções de tradução menos indicadas e corrigir gralhas ou erros que o corretor ortográfico não apanhe.

A disponibilidade ou ausência de guião

Regra geral, os conteúdos disponibilizados têm um guião de pós-produção para orientar o tradutor. Neles, encontramos os diálogos, a indicação do nome das personagens, didascálias e, se tivermos sorte, notas explicativas sobre termos ou frases menos percetíveis. Contudo, nem sempre dispomos de um guião e, nesse caso, o tradutor-legendador tem de se valer da sua audição e compreensão da língua de partida para fazer uma tradução fiel.

Ora, se com guião a tradução pode ser um processo moroso, imaginem sem ele. Os intervenientes podem falar pausadamente e com uma dicção perfeita, é verdade — mas também podemos ter um grupo de pessoas a falar ao mesmo tempo, com sotaques complicados, pessoas que comem palavras, que se atropelam e interrompem, que mudam de faixa de raciocínio a meio de uma frase…

Um exemplo típico são os audiocomentários dos DVD, em que é possível ter até cinco pessoas a falar sobre tudo, das cenas aos aspetos mais técnicos, como as câmaras utilizadas ou os efeitos digitais.

Está claro que uma tradução deste tipo não se faz num instante.

A pesquisa

Este fator é determinante no tempo que se demora a traduzir e legendar um conteúdo e, apesar de parecer óbvio, é muitas vezes desvalorizado. Um documentário sobre aviões ou um drama médico não demorará certamente o mesmo tempo que uma série de ação com muitos tiros e pouca conversa ou então um programa sobre vídeos da Internet em que só se diz “meu Deus” e se ri à gargalhada.

O nível de pesquisa que uma série sobre médicos exige implica uma tradução mais morosa e obriga o tradutor a procurar termos técnicos nem sempre fáceis de encontrar. Ou então, pode calhar-lhe uma série ou um filme de época que o obrigue a procurar e escolher termos que não sejam anacrónicos e a empregar uma linguagem mais polida e exigente. No curso de uma semana de trabalho, o valente tradutor-legendador pode ter de investigar termos médicos, de engenharia, de informática, peças de vestuário do Renascimento ou da Idade Média, químicos, armamento, materiais de construção, jogadas de futebol americano, alimentos… A lista é infindável, até porque este ramo da tradução é uma roleta russa em que nunca sabemos que género, temática ou tipo de linguagem nos pode calhar. Ao contrário do que se possa pensar, há muita investigação nesta área e o seu caráter abrangente constitui muitas vezes um obstáculo, já que não há uma especialização de cada tradutor numa determinada área.

A linguagem

A tradução de audiovisuais baseia-se na oralidade e talvez seja esse o fator que mais a distingue dos outros ramos. Porém, a oralidade não implica uma desculpabilização ou que se trate de uma tradução menos exigente. Pelo contrário, pede ao tradutor que seja flexível e que adapte a tradução ao discurso original, o que pode ser um verdadeiro bico-de-obra. É necessário traduzir fielmente as subtilezas do discurso e ter sempre o cuidado de apresentar uma tradução adequada em termos de tom, vocabulário e nível de polimento — ou falta dele. É preciso pôr um papa do Renascimento a falar como tal e um gangster bruto a discursar como a sua natureza dita. Além disso, temos o ritmo da oralidade, que decidi incluir na condicionante da linguagem. As personagens ou intervenientes podem falar pausadamente ou a correr e o tradutor-legendador tem de respeitar esse ritmo, o que pode resultar num trabalho mais moroso, já que pode ter de condensar a tradução para que o espetador consiga ler as legendas sem constrangimentos e esse esforço implica tempo de reflexão.

Portanto, não, esta coisa da tradução de filmes não se faz em tempo real. Além de todas as condicionantes que mencionei, há a velhinha e certinha ideia de que a pressa é inimiga da perfeição — que se aplica tanto a este ramo da tradução como a todos os outros.

Não julguemos o tempo que demora a tradução de um filme pelos seus noventa minutos, mais coisa, menos coisa. Pensemos antes que é um exercício de tradução como todos os outros, que exige dedicação, investigação, cuidado e brio e que, como tal, não se faz num ápice.

--

--

Luísa Ferreira
Entre Linguas

Leitora, tradutora, legendadora e a dar os primeiros passos na escrita sobre livros. Avid reader, translator, subtitler and now modestly writing about books.