Carta de amor a uma profissão ingrata

Ser tradutora e legendadora não é pêra doce, mas é uma pêra que se come com gosto

Luísa Ferreira
Entre Linguas
4 min readMay 24, 2015

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por Luísa Ferreira

Na faculdade, tive uma cadeira de tradução e pensei quase de imediato: “Isto não é para mim.” Mas, como diz o povo e muito bem, pela boca morre o peixe e, poucos anos depois, iniciei-me no estranho mundo da tradução, e logo num dos ramos mais ingratos: a tradução e legendagem de audiovisuais. “Oh, mas isso deve ser tão giro e passas os dias a ver filmes!”, parece que já vos estou a ouvir. Não, não passo o dia a ver filmes e sim, é giro, mas não é, como indica o título deste artigo, pera doce.

Poucos ramos deste ofício expõem tanto o tradutor de uma forma tão imediata ao escrutínio e à crítica do público como a tradução de audiovisuais. No final do filme ou do programa, lá surge a legenda que identifica tradutor e/ou empresa e que marca o início do julgamento, tantas vezes cruel e quase com direito a carrasco. Contra mim falo, porque antes de exercer a profissão, também era tradutora de bancada e tinha as minhas opiniões mais ou menos acertadas sobre esta ou aquela legendagem, esta ou aquela escolha de terminologia, esta ou aquela gralha. Enfim, como aprendi muito cedo na minha carreira, sabes que fizeste um bom trabalho quando ninguém comenta. Não que esperemos palmas ou elogios, nada disso. Na verdade, é uma sensação fantástica quando a nossa tradução é “invisível”, é sinal de que o nosso trabalho foi feito como deve ser, que o espectador pôde apreciar o seu filme sem ser distraído por legendas demasiado rápidas, erros e tiros ao lado e todo um rol de coisas que nos podem correr mal e, consequentemente, prejudicar o visionamento.

Juntemos também ao escrutínio, algo que já de si não é fácil de digerir quando somos exigentes connosco mesmos e, para ajudar à festa, temos as nossas inseguranças, os prazos que roçam a insanidade, a remuneração que podia e devia ser melhor — mas isso são outras conversas relacionadas com a valorização do ramo e deste tipo de trabalho a um nível global — e as dores de cabeça típicas dos tradutores. Além disso, a norma neste ramo é o trabalho freelance, algo que já não faço, é verdade, mas sou um caso raro. E está o bolo pronto: uma base de angústias, um recheio de incompreensão e a precariedade como a cereja no topo.

Isto não se parece nada com uma carta de amor, pois não? Provavelmente, estes primeiros parágrafos já dissuadiram quem ainda estivesse a ponderar seguir esta carreira, mas deixem-se ficar para os próximos e talvez mudem de ideias. Ou não, mas deixem-se ficar à mesma, que agora vem a parte do amor. Não sendo idiota (pelo menos, regra geral), masoquista ou simplesmente acomodada, porque me mantenho então numa profissão tão ingrata? Por amor, ora pois. Esta coisa de traduzir e legendar audiovisuais é bicho para entrar no sangue, na carne, no músculo e aí se deixar estar, independentemente da razão do hospedeiro, que ainda se tenta persuadir a pular a cerca e experimentar pastos mais verdejantes e suculentos mas fracassa epicamente.

Apaixonei-me pela minha profissão à primeira vista e se o início foi marcado pela angústia e pela insegurança extrema, — algo que não desaparece se tiverem brio no vosso trabalho, ficam desde já avisados — com o tempo e com a experiência, acabou por se tornar uma relação quase perfeita, que combina o prazer com o dever. Aprende-se muito, pesquisa-se muito, salta-se de registo em registo como se tivéssemos um distúrbio de personalidade; ora escrevemos como um gangster fala, ora traduzimos o discurso polido de uma senhora de sociedade, ora usamos calão, ora escrevemos na terceira pessoa do plural para nos “dirigirmos” a reis e papas. Temos a responsabilidade pesada mas deliciosa de traduzir para a nossa língua diálogos acrobáticos ou subtis, o desafio de ser fiel e de conseguir adaptar os inúmeros registos que variam conforme a idade, proveniência ou natureza da personagem, e ainda temos o enorme privilégio de trabalhar com arte. Para uma pirralha inexperiente de 23 anos, isto era um sonho. Para uma tradutora de 34 anos já com algum calo, que já viu o lado feio e ingrato, que conhece as dificuldades e a realidade do meio, continua a ser.

Sinto-me extremamente grata por ter encontrado o amor tão cedo na minha vida profissional e por já termos alguns anos de namoro sólido, apesar dos seus defeitos e dos meus. E espero que se mantenha por mais tempo, que subsista e sobreviva aos obstáculos, porque sei que é raro amar uma profissão com ardor. Portanto, não, não passo o dia a ver filmes, mas os filmes são uma parte importante da minha vida. Tenho noção de como fui dolorosamente pirosa agora, mas não há amor sem um toque de lamechice e um belo chavão a rematar.

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Luísa Ferreira
Entre Linguas

Leitora, tradutora, legendadora e a dar os primeiros passos na escrita sobre livros. Avid reader, translator, subtitler and now modestly writing about books.