Mitos da Tradução e Legendagem

“Estes tradutores são uns pudicos”

Luísa Ferreira
Entre Linguas
Published in
4 min readJul 22, 2015

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por Luísa Ferreira

A tentação de esclarecer este mito com uma resposta curta e grossa é tremenda, e essa resposta seria um rotundo “não”. Mas como não é com mau feitio e respostas contundentes que se desmistificam ideias preconcebidas e se esclarece quem quer ser esclarecido, vamos aqui explicar as traduções de calão e palavrões risíveis que surgem com demasiada frequência nos nossos ecrãs.

De facto, os críticos têm razão, há traduções que pecam por um pudor absurdo que retira aos diálogos a sua força e significado. É, diria esta tradutora, uma praga linguística perpetuada há anos na tradução para audiovisuais.

Porém, antes de prendermos o tradutor a um poste e lhe deitarmos fogo como o traidor do vernáculo que é, vamos perceber os motivos para essa conduta aparentemente pouco profissional e assim amnistiar os pobres desgraçados que traduzem “merda” por “chiça”.

O tradutor de audiovisuais não é um esbirro ao serviço da moral e dos bons costumes, nem um censor de lápis azul em riste com a missão de aniquilar o vernáculo e fazê-lo desaparecer da língua para todo o sempre. Na verdade, enquanto profissionais da língua, sabemos perfeitamente que o palavrão e o calão fazem parte integrante da língua e, na minha opinião muito pessoal, representam um manancial vocabular particularmente interessante e vital. O vernáculo é algo que confere humor, emoção e veemência ao discurso e é extremamente representativo da cultura de um povo. Então, porque insistimos em omitir ou desvirtuar o palavrão nos audiovisuais e vivemos num ciclo interminável de autocensura?

Antes de mais, muitos podem não saber, mas os canais de televisão estão sujeitos a multas pesadas caso transmitam determinados conteúdos e linguagem em determinados horários. Assim sendo, os canais acabam por jogar pelo seguro e decidir que a linguagem da tradução seja suavizada ao máximo, regra geral. Os conteúdos visuais podem então ser ofensivos e arriscados, mas a tradução tem de ser passada pela lixívia para não haver problemas. O tradutor, como qualquer prestador de serviços, tem de ter em conta os interesses e as diretrizes dos seus clientes e é por isso que recorre a uma linguagem mais suave e comedida. Não sabemos a que horas será transmitido o conteúdo, as classificações etárias nem sempre se coadunam com esta limitação a nível de vocabulário e, assim, no caso dos canais de televisão, há que restringir a asneira e o calão pesado ao mínimo indispensável ou então anulá-los completamente.

Obviamente, há exceções, e no cinema e nos festivais, a liberdade de traduzir o que é dito é bem maior e lá podemos incluir aquilo que os cineastas queriam a nível dos diálogos. Podemos ser fiéis, largar as nossas vestes de traidores e fazer o nosso trabalho: traduzir de forma exata e adequada ao tom da obra.

Ainda dentro destas condicionantes mais subjetivas, convém recordar um facto que passará despercebido a muitos. A asneira escrita num ecrã tem um impacto bem maior do que a asneira dita numa língua estrangeira. Deverá isto pesar na tradução? Pessoalmente, creio que não, o que é dito é para traduzir, mas a verdade é que isto nos faz ponderar melhor a asneira a empregar, já que a mesma palavra pode ter várias traduções e níveis de intensidade conforme o contexto. Mas aqui entra a melhor arma de qualquer tradutor, o senso comum e a sua capacidade de interpretar o que é dito sem cair na armadilha da tradução literal.

Depois, temos as limitações mais práticas. Como todos os tradutores de audiovisuais sabem, temos de transmitir o que é dito num espaço limitado de entre 35 e 38 caracteres por linha (isto é uma média variável e obedece aos parâmetros de cada cliente) e ter em atenção o ritmo do diálogo. De uma forma simplista, ter em conta se as personagens falam muito depressa ou mais pausadamente e garantir que o espectador tem acesso a toda a informação essencial, o que normalmente implica um exercício de condensação e resumo. Posto isto, se uma personagem fala “a mil”, temos frequentemente de cortar o que não é essencial, como certas interjeições e vernáculo.

O essencial neste ramo da tradução, ao contrário da tradução escrita, é que o público acompanhe o que é dito da forma mais completa possível e que não veja a sua experiência ser estragada por legendas “disparadas”. Ou seja, para perceber tudo, às vezes é preciso não traduzir tudo. De que vale termos um diálogo traduzido de fio a pavio, com todas as interjeições e cada palavrinha devidamente incluídas, se o espectador não o consegue ler? Não lemos à mesma velocidade que ouvimos, por assim dizer, e por isso há que fazer um esforço de resumo e sacrificar uma palavra ou outra. Muitas vezes, a escolha recai sobre a asneira. Se uma personagem diz seis asneiras numa frase longa que metralha em dois segundos, o que faz mais sentido? Incluir todos os palavrões ou incluir apenas um para transmitir a veemência do discurso e o tom? Mais uma vez, entra em cena o nosso querido bom senso: mais vale uma asneira na mão do que seis a voar.

Portanto, e pondo os pontos nos “ii”, não, não somos pudicos. Somos, como sempre digo, tradutores com limitações externas a que outros ramos da profissão não estão sujeitos. Fazemos o melhor que podemos com as ferramentas que temos e não, não temos nada contra o pobre palavrão. Não, não temos nenhum gosto pérfido em pôr um militar duro em situação de combate a dizer “bolas”. Tentamos transmitir a veemência do discurso o melhor que podemos, apesar da censura. E quando podemos ser fiéis à palavra, ficamos felizes por isso, porque estamos a cumprir o nosso dever como tradutores.

Então, já podemos descer do cadafalso?

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Luísa Ferreira
Entre Linguas

Leitora, tradutora, legendadora e a dar os primeiros passos na escrita sobre livros. Avid reader, translator, subtitler and now modestly writing about books.