“A Dog Called Money”: PJ Harvey em um mundo de descobertas e experimentações

Francielle Cota
ENTRE LP
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5 min readMay 12, 2021

“Nada me fascina mais do que juntar palavras e ver como uma coleção delas pode produzir um efeito bastante profundo. À medida que fui ficando mais velha, tornei-me muito mais consciente do que está acontecendo ao meu redor e, sim, com mais vontade de colocar isso em palavras.”

por: Francielle Cota e Damy Coelho

No catártico 2020, Polly Jean Harvey anunciou que faria o relançamento de sua densa biografia em formato streaming e discos de vinil com as respectivas demos da época. Relatamos isso por aqui no texto que abordava sua obra complexa e feroz. Hoje ela retoma seu espaço na ENTRE LP com a estreia do documentário “A Dog Called Money”, que tardiamente chegou aos cinemas brasileiros. No dia 26 de fevereiro o filme entrou em cartaz nas cidades de Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo. E, sim, num quantitativo raso que não contempla os fãs da PJ espalhados por um Brasil de vastidão enorme.

Por isso, a MUBI, distribuidora e plataforma de streaming de filmes com curadoria, anunciou na última semana a exibição no país de “A Dog Called Money”, que está disponível desde 7 de maio. O longa tem direção de Seamus Murphy, um fotojornalista premiado e amigo de Harvey, com quem ela viaja para o Afeganistão, Kosovo e bairros de baixa renda de Washington (DC) no intuito de coletar uma pesquisa de campo que serviu como inspiração criativa para compor o álbum The Hope Six Demolition Project — e também sua gravação em Somerset House, Londres, conforme o público observava. Com estreia mundial no Festival de Berlim em 2019, o filme assume caráter jornalístico e retrata de forma emocional a composição de cada faixa do álbum, revelando as camadas por trás de sua criação e as pessoas e lugares que inspiraram PJ Harvey.

PJ Harvey em processo de composição do disco “The Hope Six Demolition Project”. Foto: Seamus Murphy

Assistimos o doc com ávido interesse. Polly Jean é grande, sublime e sempre nos desperta admiração a cada lançamento. Seu jeito reservado, de poucas palavras, fica evidente e dita o tom na criação deste projeto. Ao longo das décadas a artista mudou e isso foi refletido em sua arte emblemática. O respeito pela cultura e, principalmente, pela religião de povos que cultivam crenças e costumes tão diferentes dos que PJ cresceu aprendendo em um distrito rural de Dorset manifestam-se categoricamente. A troca de olhar, um gesto humilde de pedir permissão para estar ali, de observar e aprender. É bonito acompanhar a saga da artista em descrever problemáticas sociais distintas e ao mesmo tempo tão próximas. O reconhecimento do preconceito nada velado, a guerra, miséria e perdas sem precedentes são escancarados no material audiovisual e na música.

Harvey reflete sobre os efeitos da guerra no Kosovo. Foto: Seamus Murphy

Em Washington, Harvey conhece Paunie, uma adolescente que se veste como um menino e impõe total respeito na rua. É o cachorro de Paunie que dá o título ao filme. Em Kosovo, uma senhora idosa guarda as chaves dos vizinhos que fugiram da aldeia durante a guerra (e provavelmente não voltarão). Murphy filma com compaixão e curiosidade jornalística, sua câmera se aproximando cada vez mais do rosto de um menino em Washington que está explicando como seu pai, primo e amigo foram mortos a tiros no mesmo quarteirão — dois assassinatos, um suicídio.

Nas 01h29min da obra, PJ Harvey é uma observadora atenta com um caderno nas mãos. Quando sente vontade, ela lê versos poéticos que anotou na narração. Mas é aqui, em uma linha quase descartável, que temos o que pode ser o momento mais revelador do filme, quando um músico conta uma anedota sobre Harvey gravando seu aclamado disco anterior, Let England Shake. A gravadora não tinha ouvido uma única faixa e PJ estava ficando nervosa. Então, convidou meia dúzia de amigos super próximos para sua casa em Dorset, fez um bule de chá, colocou o álbum em seu CD player e depois desapareceu para cuidar do jardim. Fez tudo o que precisava com parcimônia. Quando retornou, indagou os presentes: “e aí, o que acharam?”. É bom demais ver a cara marota dela enquanto o homem compartilha o fato.

Nos anos 90, Polly Jean era tida como o retrato da mulher de fibra da década. “Ela é bonita, mas quer parecer feia. Disfarça-se de experimental ou conceitual, mas quer é compor e cantar leitosas melodias”, a mídia categorizava. Ao longo dos anos ela sempre deixou explícito que teve muitas referências masculinas na vida e isso surtiu impacto até hoje. No filme fica evidente que ela é quase sempre a única mulher presente: seja nas experiências adquiridas durante as viagens ou no estúdio de gravação.

Participação especial do coral da Igreja Batista Union Temple de Anacostia nos shows de PJ Harvey durante a tour do disco em Nova York. Foto: reprodução Instagram

Há um último ponto importante a se considerar: para nós, que vivemos realidades outras de desigualdade e misérias que fazem com que nos reconheçamos um pouco mais na dor do outro, ver PJ Harvey — uma artista do Reino Unido — embarcando em uma viagem pelo Afeganistão parece um pouco acompanhar a aventura de uma europeia descobrindo os horrores do mundo que a cerca.

Mas assim como não sabemos como é sobreviver em meio às ruínas de uma guerra, cabe entender a posição de PJ — que em momento nenhum se descola de seu lugar de fala e de observadora respeitosa, curiosa para aprender sobre um mundo que o próprio mundo insistiu em separar. Harvey transforma o que viu em arte, mas uma arte própria, para dar destaque a quem, infelizmente, ainda é apagado. Que a arte dela nos inspire a buscar outras artes também, que dizem de raízes, símbolos e resistências mais locais, periféricas à grande mídia internacional.

Confira o trailer:

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Francielle Cota
ENTRE LP

Jornalista amante da película 35mm e boa prosa.