Raiva Assassina: Resistência Militante, por bell hooks

Capítulo 1 de Killing Rage: Ending Racism

Carol Correia
ẸNUGBÁRIJỌ
16 min readJan 25, 2020

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por Boteco Design

Traduzido por Carol Correia a fim de trazer maior discussão sobre raiva pela perspectiva de hooks.

Eu estou escrevendo este ensaio sentada ao lado de um homem branco que desejo matar. Acabamos de nos envolver em um incidente em um avião em que K, minha amiga e companheira de viagem, foi chamada para a frente do avião e atacada publicamente por aeromoças brancas que a acusam de tentar ocupar um assento na primeira classe não atribuído a ela. Embora ela tenha sido designada para o assento, ela não recebeu o cartão de embarque apropriado. Quando ela tenta explicar, elas a ignoram. Elas continuam explicando a ela em voz alta como se ela fosse uma criança, como se ela fosse uma estrangeira que não falasse inglês, que ela deveria tomar outro assento. Elas não querem saber que a companhia aérea cometeu um erro. Elas querem apenas garantir que o homem branco que possui o cartão de embarque apropriado tenha assento na primeira classe. Percebendo nossa impotência para alterar o momento em que sentamos, K se move para a classe econômica. E me sento ao lado do homem branco que rapidamente pede desculpas a K enquanto ela remove sua bolsa do assento em que ele se acomodou confortavelmente. Eu o encaro com raiva, digo que não quero ouvir suas desculpas liberais, sua repetida insistência de que “não foi culpa dele”. Estou gritando com ele que não é uma questão de culpa, que o erro foi compreensível, mas que a maneira como K foi tratada foi completamente inaceitável, que refletia tanto racismo quanto machismo.

Ele me informou, em termos inequívocos, que achava que seu pedido de desculpas era suficiente, que eu deveria deixá-lo para sentar e aproveitar seu voo. Em termos inequívocos, eu avisei que ele teve a oportunidade de não ser cúmplice do racismo e do machismo que é tão difundido nesta sociedade (que ele sabia que nenhum homem branco teria sido chamado pelo alto-falante para vir à frente do avião enquanto outro homem branco se sentava — um fato que ele não contestou). Gritando com ele, eu disse: “Não foi uma questão de ceder do assento, foi uma ocasião para você intervir no ataque a uma mulher negra, e você escolheu seu próprio conforto e tentou desviar de sua cumplicidade nessa escolha, oferecendo um pedido de desculpas insincero e esfarrapado”.

Desde o momento em que K e eu chamamos um táxi na rua da cidade de Nova York naquela tarde, estávamos enfrentando o racismo. O taxista queria que deixássemos o táxi e pegássemos outro; ele não queria dirigir para o aeroporto. Quando eu disse que iria embora de bom grado, mas também o denunciaria, ele concordou em nos levar. K sugeriu que pegássemos outro táxi. Enfrentamos hostilidade semelhante quando estávamos na fila da primeira classe no aeroporto. Preparadas com nossos documentos, fomos recebidas por dois jovens brancos funcionários de companhias aéreas que continuaram sua conversa pessoal e agiram como se fosse uma grande interrupção nos atender. Quando tentei explicar que tínhamos os documentos para a primeira classe, o homem branco me disse que “ele não estava falando comigo”. Não ficou evidente o porquê eles foram tão hostis. Quando sugeri a K que nunca vi homens brancos recebendo esse tratamento na linha de primeira classe, a mulher branca insistiu que “raça” não tinha nada a ver com isso, que ela estava apenas tentando nos atender o mais rápido possível. Observei que, quando uma fila de homens brancos se formou atrás de nós, eles [os servidores] estavam realmente ansiosos para terminar nosso atendimento, mesmo que isso significasse não mostrar qualquer cortesia. Mesmo quando eu pedi para falar com um supervisor, desligando a voz interior que me pedia para não fazer confusão, não reclamar e possivelmente tornar a vida mais difícil para os outros negros que teriam que procurar serviço desses dois, os atendentes brancos discutiram se iriam atender a esse pedido. Finalmente, o homem branco chamou um supervisor. Ele ouviu, pediu desculpas, ficou em silêncio enquanto a mulher branca nos dava o serviço apropriado. Quando ela me entregou os cartões de embarque, dei uma olhada rápida neles para ver se tudo estava em ordem. Tudo parecia bem. No entanto, ela me olhou com um brilho de ódio nos olhos que assustou, era tão intenso. Depois que chegamos ao nosso portão de embarque, eu compartilhei com K que eu deveria olhar os ingressos novamente, porque eu continuava vendo aquele brilho de ódio. Na verdade, eles não foram feitos corretamente.

Voltei ao balcão e pedi a um útil atendente negro para encontrar o supervisor. Embora ele fosse negro, não sugeri que tivéssemos sido vítimas de discriminação racial. Em vez disso, perguntei-lhe se ele poderia pensar em alguma razão pela qual esses dois jovens brancos eram tão hostis.

Embora eu sempre tenha me preocupado com elitismo e hesite em fazer reclamações sobre indivíduos que trabalham longas horas em empregos muitas vezes não recompensadores que exigem que eles atendam ao público, senti que nossa reclamação era justificada. Foi um caso de discriminação racial. E fui obrigada a reclamar porque sinto que a grande maioria das pessoas negras que são submetidas diariamente a formas de discriminação racial aceitou isso como uma das condições sociais de nossa vida no patriarcado da supremacia branca que não podemos mudar. Essa aceitação é uma forma de cumplicidade. Eu deixei o balcão me sentindo melhor, não sentindo que possivelmente tivesse piorado a situação para as pessoas negras que poderiam vir depois de mim, mas que talvez esses jovens brancos precisassem repensar seus comportamentos se pessoas o suficiente se queixassem.

Fomos lembradas desse incidente quando embarcamos no avião e uma passageira negra chegou para se sentar no assento na classe econômica, apenas o homem branco sentado ali se recusou a se mover. Ele não tinha o cartão de embarque correto; ela tinha. No entanto, ele não foi chamado para a frente. Ninguém o obrigou a se mexer, como foi feito alguns minutos depois com minha amiga K. A passageira negra, muito envergonhada, repetia em voz baixa: “Estou disposta a sentar em qualquer lugar”. Ela sentou em outro lugar.

Foram essas sequências de incidentes racializados envolvendo mulheres negras que intensificaram minha raiva contra o homem branco sentado ao meu lado. Eu senti uma “raiva assassina”. Eu queria esfaqueá-lo suavemente, matá-lo com a arma que desejava ter na minha bolsa. E enquanto observava sua dor, eu diria com ternura “racismo machuca”. Sem nenhuma saída, minha raiva se transformou em uma dor avassaladora e eu comecei a chorar, cobrindo meu rosto com as mãos. Ao meu redor, todos agiam como se não pudessem me ver, como se eu fosse invisível, com uma exceção. O homem branco sentado ao meu lado observava desconfiado sempre que eu pegava minha bolsa. Como se eu fosse o pesadelo negro que assombrava seus sonhos, ele parecia estar esperando que eu atacasse, para ser a realização de sua imaginação racista. Inclinei-me para ele com meu bloco de anotações e certifiquei-me dele ver o título em negrito: “Raiva Assassina”.

No curso sobre romancistas de mulheres negras que tenho ensinado neste semestre na City University, focamos repetidamente na questão da raiva negra. Começamos o semestre lendo a autobiografia de Harriet Jacobs, Incidents in the Life of a Slave Girl, perguntando-nos “onde está a raiva?” No seminário de pós-graduação que ensino sobre Toni Morrison, ponderamos se negros e brancos podem ser sujeitos juntos, se os brancos continuam incapazes de ouvir a raiva negra, se é o som dessa raiva que deve sempre ser reprimida, contida e presa no reino do não-dito. No primeiro romance de Morrison, The Bluest Eye, seu narrador diz sobre a pequena menina negra colonizada desumanizada Pecola que haveria esperança para ela se ela pudesse expressar sua raiva, dizendo aos leitores “a raiva é melhor, existe uma presença na raiva”. Talvez então seja a “presença”, a afirmação dos colonizadores da subjetividade que não quer ver, que vem à tona quando os colonizados expressam raiva.

Nestes tempos, a maioria das pessoas associa a raiva negra à classe baixa, a jovens negros desesperados que, em sua desesperança, não sentem necessidade de silenciar paixões indesejadas. Aqueles dentre nós, negros que “conseguiram”, na maior parte dos casos, se tornaram hábeis em reprimir nossa raiva. Fazemos o que a heroína de Ann Petry nos diz que devemos naquele romance profético dos anos de 1940 sobre a raiva feminina negra The Street. É Lutie Johnson quem expõe a raiva sob a personalidade calma. Ela declara: “Todos os dias estamos sufocando essa raiva”. Nos anos de 1990, não são apenas os brancos que informam os negros que não querem ouvir a nossa raiva, mas também as vozes dos cautelosos guardiões dos acadêmicos negros da classe alta que nos asseguram que nossa raiva não tem lugar. Embora os psiquiatras negros William Grier e Price Cobbs pudessem escrever um livro inteiro chamado Black Rage [que traduzido literalmente, seria Raiva Negra], eles usaram seu ponto de vista freudiano para convencer os leitores de que a raiva era apenas um sinal de impotência. Eles o chamaram de patológico, explicaram. Eles não investigaram a cultura popular a ver a raiva negra como algo diferente da doença, a vê-la como uma resposta potencialmente saudável e potencialmente curadora à opressão e à exploração.

Em sua mais recente coleção de ensaios, Race Matters [em tradução literal, Raça Importa], Cornel West inclui o capítulo “Malcolm X e Raiva Negra”, onde ele torna a raiva sinônimo de “grande amor pelas pessoas negras”. West reconhece que Malcolm X “articulou a raiva negra de uma maneira sem precedentes na história americana”, mas ele não vincula essa raiva a uma paixão pela justiça que pode não emergir do contexto de grande amor. Ao colapsar a raiva de Malcolm e seu amor, West tenta explicar essa raiva, para temperá-la. No geral, as reavaliações contemporâneas da carreira política de Malcolm X tendem a desviar-se da “raiva assassina”. No entanto, parece que o comprometimento ético apaixonado de Malcolm X com a justiça serviu como catalisador de sua raiva. Essa raiva não foi alterada por mudanças em seu pensamento sobre brancos, integração racial etc. É a evidente articulação desafiadora dessa raiva que continua a diferenciar Malcolm X dos pensadores e líderes negros contemporâneos que sentem que a “raiva” não tem lugar na luta antirracista. Esses líderes geralmente estão mais preocupados com o diálogo com os brancos. A repressão da raiva (se e quando a sentem) e o silêncio da raiva de outras pessoas negras são a oferta sacrificial que eles fazem para ganhar o ouvido dos brancos. De fato, os negros que não sentem raiva pela injustiça racial porque suas próprias vidas são confortáveis podem sentir tanto medo da raiva negra quanto seus colegas brancos. Hoje, o grau e a intensidade raiva negra parecem ser sobredeterminados pela política de localização por privilégio de classe.

Eu cresci no Sul do apartheid. Aprendemos quando éramos muito pequenos que os negros podiam morrer por sentir raiva e expressá-la para os brancos errados. Nós aprendemos a reprimir nossa raiva. Esse processo de repressão foi auxiliado pela existência de nossos bairros separados. Em todas as escolas, igrejas, bares[1], etc., concedíamos a nós mesmos o luxo do esquecimento. No conforto desses espaços negros, não pensávamos constantemente na supremacia branca e em seu impacto em nosso status social. Vivemos grande parte de nossas vidas sem pensar nos brancos. Vivíamos em negação. E, vivendo dessa maneira, fomos capazes de silenciar nossa raiva. Se os negros praticam atos estranhos, esquisitos ou até brutalmente cruéis de vez em quando em nossos bairros (cortar alguém em pedaços em um jogo de cartas, atirar em alguém por nos olhar da maneira errada), não vinculamos esse evento aos inúmeros abusos e humilhações que os negros sofriam diariamente quando atravessávamos as ruas e fazíamos o que tínhamos que fazer com e para os brancos para ganhar a vida. Expressar raiva naquele contexto era suicida. Toda pessoa negra sabia disso. A raiva era reservada para a vida em casa — uma para o outro.

Para perpetuar e manter a supremacia branca, os brancos colonizaram os afro-americanos, e uma parte desse processo de colonização tem nos ensinado a reprimir nossa raiva, a nunca os tornar alvos de qualquer raiva que sentimos pelo racismo. A maioria dos negros internaliza bem essa mensagem. E embora muitos de nós tenha sido ensinado que a repressão de nossa raiva era necessária para se manter vivo nos dias anteriores à integração racial, agora sabemos que alguém pode ser exilado para sempre da promessa de bem-estar econômico se essa raiva não for permanentemente silenciada. Palestras sobre raça e racismo em todo o país, sempre me surpreendo quando ouço pessoas brancas falarem sobre seu medo de pessoas negras, de serem vítimas de violência negra. Eles podem nunca ter falado com uma pessoa negra e certamente nunca foram machucados por uma pessoa negra, mas estão convencidos de que sua resposta à negritude deve, antes de mais nada, ser medo e pavor. Eles também vivem em negação. Eles alegam temer que os negros os machuquem, embora não haja evidências que sugiram que os negros machuquem rotineiramente os brancos nesta ou em qualquer outra cultura. Apesar de muitos crimes relatados serem cometidos por criminosos negros, isso não ocorre com tanta frequência que sugere que todos os brancos devem temer qualquer pessoa negra.

Agora, os negros são rotineiramente agredidos e assediados pelos brancos na cultura supremacista branca. Essa violência é tolerada pelo Estado. É necessário para a manutenção da diferença racial. De fato, se os negros não aprenderam nosso lugar como cidadãos de segunda classe por meio de instituições educacionais, aprendemos isso pelos ataques diários perpetuados por pessoas brancas em nossos corpos e seres que sentimos, mas raramente protestamos ou nomeamos publicamente. Embora não vivamos nas mesmas condições ferozes do apartheid racial que apenas recentemente deixaram de ser nossa realidade social coletiva, a maioria dos negros acredita que, se não obedecerem aos padrões de comportamento aceitáveis determinados por brancos, não sobreviverão. Vivemos em uma sociedade em que ouvimos falar de pessoas brancas matando negros para expressar sua raiva. Podemos identificar incidentes específicos ao longo da nossa história neste país, seja Emmett Till, Bensonhurst, Howard Beach, etc. Podemos identificar incidentes raros em que pessoas negras responderam aleatoriamente ao seu medo de ataques brancos matando. A raiva branca é aceitável, pode ser expressa e tolerada, mas a raiva negra não tem lugar e todo mundo sabe disso.

Quando eu saí do apartheid pela primeira vez no Sul, para frequentar uma instituição de ensino superior predominantemente branca, não estava em contato com minha raiva. Eu fui criada para sonhar apenas com a elevação racial, um dia em que brancos e negros viveriam juntos como um. Eu havia sido criada para mostrar o outro lado da face, quando fosse estapeada. No entanto, o ar fresco do liberalismo branco encontrado quando eu fui para a costa oeste para cursar a faculdade no início dos anos de 1970 me convidou a deixar de lado um pouco do terror e desconfiança das pessoas brancas que moravam no apartheid haviam criado em mim. Esse terror mantém toda a raiva sob controle. Lembro-me dos meus primeiros sentimentos de raiva política contra o racismo. Eles surgiram dentro de mim depois que eu li Fanon, Memmi, Freire. Eles vieram quando eu estava lendo a autobiografia de Malcolm X. Como Cornel West sugere em seu ensaio, senti que Malcolm X desafiava os negros a reivindicar nossa subjetividade emocional e que só podíamos fazer isso reivindicando nossa raiva.

Como toda repressão profunda, minha raiva desencadeada me deixou assustada. Isso me forçou a dar as costas ao esquecimento, me retirou da negação. Isso mudou meu relacionamento com a casa do Sul, de modo que eu não pude mais voltar para lá. Por dentro, senti como se fosse uma mulher marcada. Uma pessoa negra sem vergonha de sua raiva, usando-a como um catalisador para desenvolver a consciência crítica, para alcançar a auto-atualização completa decolonizada, não tinha lugar real na estrutura social existente. Eu me senti como um exílio. Amigos e professores se perguntavam o que havia acontecido comigo. Eles compartilharam o medo de que essa nova militância pudesse me consumir. Quando viajei para casa para ver minha família, senti-me afastada deles. Eles suspeitavam do meu novo eu. Os “bons” brancos do Sul que sempre me ajudaram começaram a se preocupar com o fato da faculdade estar me arruinando. Eu estava sozinha ao entender que estava passando por um processo de politização e auto-recuperação radical.

Confrontando minha raiva, testemunhando a maneira como ela me levou a crescer e mudar, entendi intimamente que ela tinha o potencial não apenas de destruir, mas também de construir. Naquela época e agora entendo a raiva como um aspecto necessário da luta de resistência. A raiva pode agir como um catalisador, inspirando uma ação corajosa. Ao exigir que os negros reprimam e aniquilem nossa raiva de assimilar, colher os benefícios do privilégio material na cultura patriarcal capitalista supremacista branca, os brancos nos exortam a permanecer cúmplices de seus esforços para colonizar, oprimir e explorar. Aqueles de nós negros que têm a oportunidade de promover nosso status econômico renunciam voluntariamente a nossa raiva. Muitos de nós não têm raiva. À medida que pessoas negras individuais aumentam seu poder de classe, vivem com conforto, com o dinheiro mediando a crueldade da discriminação racista, podemos ver a sociedade e os brancos de maneira diferente. Experimentamos o mundo como infinitamente menos hostil à escuridão do que realmente é. Essa mudança ocorre particularmente quando adotamos o individualismo liberal e vemos nosso destino individual como pessoas negras de forma alguma ligadas ao destino coletivo. É esse elo que sustenta a plena consciência do impacto diário do racismo sobre os negros, particularmente seus ataques hostis e brutais.

Pessoas negras que sustentam esse pensamento frequentemente descobrem que, à medida que “avançamos”, nossa raiva se intensifica. Durante o período da minha vida em que o apartheid racial proibia possibilidades de intimidade e proximidade com os brancos, pude esquecer a dor do racismo. A intimidade que compartilho com os brancos agora raramente interfere no racismo e é o cenário cultural que provoca raiva. Perto de brancos, sou forçada a testemunhar em primeira mão sua ignorância voluntária sobre o impacto da raça e do racismo. O absolutismo severo da negação deles. A recusa em reconhecer a responsabilidade pelas condições racistas passadas e presentes. Aqueles que duvidam dessas percepções podem ler um homem branco documentando sua precisão no trabalho de Andrew Hacker, Two Nations: Black and White, Separate, Hostile, Unequal. Seu trabalho, como o de muitos estudiosos e pensadores negros cujas ideias ele extrai, destaca os sentimentos anti-negritude que os brancos cultivam e mantêm no patriarcado capitalista da supremacia branca. O ódio racial é real. E é humanizador poder resistir a isso com raiva militante.

O esquecimento e a negação permitem que massas de pessoas negras privilegiadas vivam a “boa vida” sem jamais aceitar a raiva negra. Vícios de todos os tipos, que atravessam a classe, permitem que os negros se esqueçam, tirem a dor e a raiva, substituindo-a por uma apatia perigosa e um coração duro. Os vícios promovem a aceitação passiva da vitimização. Nos últimos tempos, pensadores negros conservadores insistiram que muitos negros estão ligados a um sentimento de vitimização. Isso é apenas uma verdade parcial. Para dizer toda a verdade, eles teriam que falar sobre como a cultura branca convencional oferece o manto da vitimização como um substituto para a transformação da sociedade. Os brancos promovem a vitimização dos negros, incentivam a passividade, recompensando os negros que choram, se queixam, imploram e obedecem. Talvez seja sobre isso que Joe Trace, personagem de Toni Morrison, está falando quando compartilha no jazz o conhecimento que seu pai, o pai Frank, ensinou a ele, “o segredo da bondade dos brancos — eles devem ter pena de algo antes que possam gostar.” A presença de vitimização negra é bem-vinda. Conforta muitos brancos precisamente porque é a antítese do ativismo. A internalização da vitimização torna os negros impotentes, incapazes de afirmar a agência em nosso nome. Quando abraçamos a vitimização, renunciamos à nossa raiva.

Minha raiva se intensifica porque eu não sou uma vítima. Queima na minha psique com uma intensidade que cria clareza. É uma raiva construtiva de cura. O monge budista vietnamita Thich Nhat Hanh ensina que a auto-recuperação é, em última análise, aprender a ver claramente. O processo político de decolonização também é uma maneira de aprendermos a ver claramente. É o caminho da liberdade para colonizados e colonizadores. A mutualidade de um encontro sujeito a sujeito entre aqueles indivíduos que decolonizaram suas mentes torna possível que a raiva negra seja ouvida, que seja usada construtivamente.

Atualmente, somos diariamente bombardeados com imagens da mídia de massa de raiva negra, geralmente personificadas por jovens negros irritados causando destruição aos “inocentes”, que ensinam a todos na cultura que veem essa raiva como inútil, sem significado, destrutiva. Essa deturpação unidimensional do poder da raiva ajuda a manter o status quo. Censurando a resposta militante à raça e ao racismo, garante que não haverá esforço revolucionário para reunir essa raiva e usá-la para mudanças sociais construtivas. Significativamente, as reinterpretações e críticas contemporâneas de Malcolm X procuram redefini-lo de uma maneira que o remove de sua raiva, como se essa fosse sua maior falha. No entanto, sua “raiva” por justiça nitidamente o levou a uma consciência cada vez maior. Isso o levou a mudar. Ele é um exemplo de como podemos usar a raiva para fortalecer. É trágico ver sua imagem recuperada para tolerar raiva e violência irracionais na vida negra.

Enquanto a raiva negra continuar a ser representada como apenas má e destrutiva, não teremos uma visão de militância necessária para uma ação revolucionária transformadora. Eu não matei o homem branco no avião, apesar de permanecer impressionada com a intensidade desse meu desejo. Eu ouvi a minha raiva, permiti que ela me motivasse a pegar a caneta na mão e escrever no calor daquele momento. No final do dia, ao considerar porque havia sido tão cheio de incidentes raciais, de discriminações racistas, pensei que eles serviam como lembretes severos, obrigando-me a tomar uma posição, falar, escolher se serei cúmplice ou resistir… Todos os nossos silêncios diante do ataque racista são atos de cumplicidade. O que significa nossa raiva contra a injustiça, se pode ser silenciada, apagada pelo conforto material individual? Se os negros politizados trocam alegremente sua consciência política crítica por um progresso pessoal oportunista, não há lugar para raiva e esperança de que algum dia possamos viver para ver o fim da supremacia branca.

A raiva pode ser exaustiva. Deve ser temperada por um engajamento com uma gama completa de respostas emocionais à luta dos negros pela autodeterminação. Na meia-idade, vejo em mim mesma a mesma raiva pela injustiça que surgiu em mim há mais de vinte anos, ao ler a Autobiografia de Malcolm X e experimentar o mundo à minha volta. Muitos de meus colegas parecem não sentir raiva ou acreditar que não têm lugar para ela. Eles se veem afastados da raiva dos jovens negros. Compartilhar raiva conecta aqueles de nós mais velhos e mais experientes com jovens negros e não-negros que buscam maneiras de se auto-realizarem, se auto-determinam e estão ansiosos por participar da luta antirracista. Uma luta organizada e renovada de libertação negra não pode acontecer se permanecermos incapazes de explorar a raiva negra coletiva. Os ativistas negros progressistas devem mostrar como tomamos essa raiva e a levamos além do bode expiatório infrutífero de qualquer grupo, vinculando-a a uma paixão pela liberdade e pela justiça que ilumina, cura e possibilita a luta redentora.

[1] No original, hooks fala em juke joints, ao invés de bares, que é nome para estabelecimentos informais de música, dança, beber e apostar destinados a pessoas afro americanas no Sul dos Estados Unidos da América. Veja mais em: https://dictionary.cambridge.org/pt/dicionario/ingles/juke-joint

Leituras complementares

Killing Rage: Ending Racism, por bell hooks

Episódio 3: Raiva de Afetos Podcast

Justiça: Lições de amor na infância, por bell hooks

Vivendo de amor, por bell hooks

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Carol Correia
ẸNUGBÁRIJỌ

uma coleção de traduções e textos sobre feminismo, cultura do estupro e racismo (em maior parte). email: carolcorreia21@yahoo.com.br