As mulheres do Brasil e a ficção especulativa

Jéssica Reinaldo
Escotilha NS
Published in
7 min readMar 8, 2020
Cena do filme "Prometheus", em que Charlize Theron dá vida uma mulher badass e sem medo de se impor. (Twentieth Century Fox)

Por mais que existam pessoas que duvidem, a ficção especulativa nacional existe — e vai muito bem. O gênero, que pode ser entendido como toda aquela ficção que, de alguma maneira, provoca especulações, questiona mundos, universos e criaturas distantes da nossa realidade, apresenta, hoje, uma incrível quantidade de autores divulgando seus trabalhos, seja de maneira independente ou com intermédio de editoras. E, dentro disso, é notável o sucesso de obras de autoria de mulheres. Neste post, vamos falar um pouco sobre ficção especulativa e essas autoras brasileiras.

Mas, afinal, o que é ficção especulativa?

Antes de começar, voltamos àquela eterna discussão: o que é ficção especulativa? Já falamos sobre o assunto anteriormente aqui no canal da ESCOTILHA, mas não custa retomá-lo brevemente.

Podemos definir como ficção especulativa toda aquela ficção que, de alguma maneira, causa especulação, que se questiona sobre mundos e universos e criaturas que se afastam do mundo real.

Ainda muito vago? Alguns teóricos preferem o termo de ficção especulativa para encaixar tudo que esteja entre as ficções fantástica, científica e de terror. Narrativas com elementos insólitos, que habitam entre esses três gêneros, podem ser encaixadas na designação “ficção especulativa”.

E como vai a ficção especulativa brasileira feita por mulheres?

Jana Bianchi, autora de "Lobo de rua".
Jana Bianchi, autora de "Lobo de rua". (Foto da autora)

Pode-se dizer que vai muito bem! E, apesar de receber uma imensa força nos últimos anos, não é um movimento que nasce agora. Temos, já há tempos, um trabalho excelente sendo feito com a ficção especulativa pelas mãos de escritoras. Mulheres sempre escreveram ficção especulativa, e continuam escrevendo. E mesmo que alguns dos nomes presentes neste texto não sejam conhecidos por esse tipo de narrativa, elas já fizeram alguma obra com esses elementos.

Entre os trabalhos que talvez possam ser tidos como mais populares nos últimos tempos, temos Lobo de rua, de Jana Bianchi (@Janayna Bianchi Pin), que trata de um lobisomem vivendo nas ruas de São Paulo; e Porém bruxa, de Carol Chiovatto (@Carol Chiovatto), lançado recentemente e já um sucesso. Nomes como Cláudia Lemes, Giulia Moon e Karen Alvares estão em destaque no terror nacional em meio à publicação independente, enquanto Sybylla figura entre os nomes da ficção científica e Ana Cristina Rodrigues tem feito um grande trabalho na ficção fantástica. Mas esses são só alguns dentre tantos outros nomes que têm feito um trabalho impressionante de divulgação de literatura no Brasil.

A escritora maranhense Maria Firmina dos Reis
A escritora maranhense Maria Firmina dos Reis. (Foto: Jornal da USP)

Terror, fantasia e ficção científica escritas por mulheres no Brasil: uma história

O primeiro romance de que se tem notícia a ser escrito por uma mulher no Brasil é Úrsula, de Maria Firmino dos Reis. Publicado em 1859, o livro acompanha a jovem Úrsula e seu amor pelo nobre bacharel Tancredo. De acordo com a pesquisadora Ana Paula A. dos Santos, em seu artigo denominado “A vertente feminina do gótico na literatura brasileira oitocentista”, mesmo Úrsula já apresentava certos elementos góticos, por exemplo, no trecho do pesadelo em vigília pelo qual a protagonista passa.

Em 1859, também seria lançado D. Narcisa de Villar, escrito por Ana Luísa de Azevedo e Castro, publicado sob o pseudônimo de Indígena do Ipiranga. O livro começa com uma lenda dos povos originais, contada por uma mulher a uma garotinha, e se passa no período colonial na Ilha do Mel, conhecida por ser assombrada. Novamente de acordo com Santos, o romance apresenta uma série de elementos sobrenaturais ligados a essa ilha, típicos dos romances góticos. Além disso, a protagonista se encontra planejando fugir de um casamento arranjado e sem amor — mais um elemento típico dos romances góticos, como pode ser visto em O castelo de Otranto ou Romance siciliano, por exemplo.

Quarenta anos mais tarde, em 1899, Emília Freitas escreveria Rainha do ignoto, a primeira grande obra de ficção com elementos fantásticos escrita por uma mulher brasileira. No livro, a autora imagina uma sociedade utópica em que mulheres dominam as ciências e a política do local, sem a interferência de homens. Freitas procura refletir a partir das questões femininas em uma sociedade tipicamente patriarcal do final do século 19.

Já Júlia Lopes de Almeida lançou, em 1903, Ânsia eterna, um livro de contos com várias narrativas insólitas, fantásticas e que flertam com elementos tão conhecidos entre os admiradores do estilo gótico, como romances com finais trágicos e desgraças em família. Mas isso tudo é temperado com elementos brasileiros, afastando-se um pouco dos castelos e assombrações, que dão lugar a fazendas, bem mais regionais. Exemplo disso é o conto “Os porcos”.

Foto de Adalzira Bittencourt
Adalzira Bittencourt. (Reprodução)

A autora também ajudou a criar a Academia Brasileira de Letras (ABL), mas não pôde participar dela, pois a instituição seguia o modelo francês e não aceitava mulheres em sua mesa. Levando em conta justamente esse fato, Adalzira Bittencourt fundaria a Academia Brasileira Feminina de Letras, no Rio de Janeiro. Em 1929, Bittencourt escreveu, inclusive, o romance Sua Excia: a presidente da República no ano de 2500, que, como o próprio título já demonstra, trata-se de um romance futurista. Na história, temos uma mulher como presidente da República, Mariângela, que tinha dois diplomas, um em medicina e outro em direito, e era uma mulher forte. Como afirmam Bruno Anselmi Matangrano e Enéias Tavares no livro Fantástico brasileiro (Arte & Letra, 2018), era uma mulher que personificava os ideais da autora.

A primeira mulher a entrar de fato na ABL foi Rachel de Queiroz, uma das mais importantes figuras da literatura brasileira do século 20. E isso só aconteceu em 1977, ou seja, oitenta anos após a criação da entidade, em 1897! É claro que Rachel também se aventurou na ficção especulativa: no conto “Ma-Hôre”, a autora escreve sobre uma criatura pequena e alienígena que convive com alguns humanos. Com direito a outros mundos, naves espaciais e um desfecho um bocado assustador, podemos dizer que sua empreitada com a ficção especulativa rendeu bons frutos.

O livro Fantástico brasileiro traz, ainda, outros nomes que se dedicaram a trabalhar os elementos da ficção especulativa ao longo dos anos. Por exemplo: Dinah Silveira de Queiroz, com o romance Margarida La Roque, de 1949, uma história passada no século 18 em que a protagonista se encontra perdida em uma ilha cheia de criaturas estranhas; Stella Carr, com Sambaqui: uma história da pré-História, de 1975, sobre um povo que viveu nas terras litorâneas brasileiras há mais de 5.000 anos, e ganhou uma versão em inglês em 1987; e Zora Seljan, Lucia Benedetti, Cassandra Rios, Ruth Bueno, Maria Alice Barroso, entre outras.

Conforme Bruno e Enéias afirmam no livro Fantástico brasileiro:

é na obra dessas autoras que vemos a ficção científica adensar em temas delicados e sensíveis, muitas vezes calcados em crises sociais e psicológicas, em outras, apoiando-se e questionando tabus

Isso ocorre com uma abordagem diferente da de alguns dos autores desse período, que se debruçam em utopias. É nas obras dessas mulheres do meio do século 20, e adiante, que vemos discutidos temas como a obsessão, o desespero, o erotismo, a homossexualidade e a marginalidade.

Não que haja uma literatura de mulheres distante de uma literatura de homens. A ideia de que a literatura escrita por mulheres seja consumida somente por mulheres precisa ser superada. O que ocorre muito, e tem ocorrido desde sempre, é um apagamento da escrita e do consumo feminino, uma ideia de que mulheres só escrevem e leem temas considerados apropriados para elas.

No Brasil, desde o período do Império, quando a imprensa veio para o país, mulheres consomem a mesma coisa que homens, e mesmo que haja essa percepção de que existem temas caros para a escrita feminina, também há mulheres escrevendo sobre os mesmos temas que homens.

Precisamos nos atentar de que mulheres têm gerado uma vasta produção na literatura nacional, com diversos temas e em diversos gêneros, e precisamos consumir também essas obras, notar esse apagamento e pontuar essas narrativas.

Mulheres livr(e/o)s ❤ (Reprodução)

Como ler mais livros escritos por mulheres e corrigir esse apagamento?

Você viu que a ficção especulativa nacional escrita por mulheres é rica. E temos muitos representantes, de cada um dos gêneros, compreendidos desse grande grupo que é a ficção especulativa. Muita coisa tem sido feita de qualidade, e ainda temos muito para descobrir e redescobrir por aí.

Como já foi dito, atualmente temos muitas mulheres escrevendo e divulgando seus trabalhos. Alguns dos nomes para ficar de olho, além dos já citados, são Larissa Prado, Clarissa Wolf, Camila Fernandes, Clara Madrigano, Dana Guedes, Emily de Moura, Iris Figueiredo, Solaine Chioro, Laura Pohl, Juliana Daglio e Karine Ribeiro.

Acompanhe suas autoras preferidas nas redes sociais, conheça o trabalho delas, ajude na divulgação compartilhando as publicações. Uma parte significativa da ficção especulativa hoje tem se mantido e vem sendo cada vez mais descoberta através da internet, por meio dos fãs e do trabalho incansável de seus autores. É a partir dessa ferramenta que tanto tem sido feito.

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*Este não é um pacto com o demônio. Fique tranquilx.

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Jéssica Reinaldo
Escotilha NS

Formada em História. Pesquiso e escrevo sobre terror.