Community - Parte 1: Dan Harmon é um xamã.
“Você pede para que ele passe o sal, então ele te traz um prato de sopa”
Eu assisto muitas séries, de todos os gêneros, não importa se é algo mais simples como How I Met Your Mother ou um drama mais delicado como Hannibal. Se for complicado como Twin Peaks também não incomoda, faz parte da diversão quebrar a cabeça até finalmente entender o que está acontecendo e você soltar aquele “Ahhhh tá”. Mas mesmo com tanta série por aí, tantas aclamadas pelo público, reconhecidas por votantes do Emmy ou Globo de Ouro, eu fui me tornar um fanático de uma série que já foi cancelada mais de uma vez e não tem o costume de subir os degraus das premiações para receber sua estatueta. O nome desta série é Community.
A série gira em torno de um grupo de estudantes da faculdade universitária Greendale: Jeff, Pierce, Britta, Annie, Shirley, Troy e Abed. Cada um com uma personalidade completamente diferente, mesmo assim se tornam amigos depois de formar — acidentalmente — um grupo de estudos. Os episódios focam nas relações entre estes amigos, seus dilemas, o cotidiano carregado de situações absurdas da faculdade e seus professores ainda mais incomuns.
Essa parece uma premissa simples, alguém pode até achar bem genérica, mas é aí que entra Dan Harmon.
Harmon começou a ser reconhecido quando criou uma série para a comediante Sarah Silverman (o bizzaro mas engraçadíssimo The Sarah Silverman Program) e o roteiro da animação A Casa Monstro (2006). Agora ele é super aclamado por outra animação, Rick and Morty. E por mais que eu ache Rick and Morty uma das melhores coisas sendo exibidas atualmente, foi em Community que Harmon mostrou o que podia fazer.
Com personagens tão diferentes e situações absurdas, Community era a plataforma perfeita para um debate inteligente sobre tudo o que Harmon achava importante. Política, religião, questões filosóficas, crises existenciais, séries que não conseguem durar mais de uma temporada… estes eram os assuntos recorrentes da série, que não deixava de ser engraçada e envolvente, principalmente nas primeiras três temporadas (o que chamo de as melhores três temporadas que eu já assisti na vida), já que a quarta não tem a presença de Harmon (brigas com a emissora, NBC) e perde um pouco de seu brilho, mas retorna com força na quinta temporada, quando Harmon decide “fazer as pazes” com a NBC.
Jeff Winger é um advogado que falsificou seu diploma, mas tem o melhor discurso motivacional que você já viu; Annie Edson é uma jovem meiga e inteligente que vive em um bairro perigoso e lida com um passado envolvendo vício em remédios; Pierce é um senhor de meia idade com atitudes mais infantis que qualquer um do grupo; Britta é uma ativista que não protesta mais; Shirley é uma mãe e dona de casa que luta contra os padrões estabelecidos pela televisão; Troy é um jovem esportista que não pratica mais esportes e Abed é seu melhor amigo, um jovem introspectivo com problemas para socializar, mas que acaba sendo o mais confiante de todo o grupo. É no meio de tantas contradições que o roteiro faz estes personagens brilharem.
Dica: Vale dar uma assistida em um vídeo do canal do Youtube PBS Idea intitulado “Is Community a Postmodern Masterpiece?”. Ele fala sobre o que escrevi no parágrafo anterior.
Para Harmon, o melhor jeito de desenvolver algo inovador e atrativo é reconhecer o que todos estão fazendo e dar um olhar diferente da mesma situação. Por isso vários episódios de Community são referências e recriações de narrativas estabelecidas por todos os gêneros, com elementos que geram um pastiche criativo, que faz uma homenagem ao original mas brinca com seus artifícios mais batidos. Um bom exemplo disso na série é quando todos decidem jogar uma partida de RPG e tudo acaba tomando proporções épicas, ou quando Greendale decide começar uma inocente partida de paintball e o campus inteiro transforma a faculdade em uma zona de guerra dividida em facções, ou quando uma festa de halloween se transforma em uma invasão de “mortos vivos”, mas no fim todos só estavam com infecção alimentar. Ok, eu dei mais de um exemplo, mas tem muito mais de onde esses vieram.
Harmon também é conhecido por ter desenvolvido sua própria estrutura narrativa. Inspirado no trabalho de Joseph Campbell, que trouxe o famoso conceito da construção de uma narrativa cíclica (usando como base as clássicas jornadas mitológicas), a famosa “Jornada do Herói”, Harmon apresentou o que ele chamou de Story Structure 101 (estrutura narrativa básica). Não vou tomar muito tempo explicando isso porque já existem uma porrada de vídeos e textos dedicados apenas a este assunto (sem contar que esta é só a primeira parte de uma sequencia de textos sobre Dan e Community), então vamos seguir em frente.
Harmon é de uma geração criada pela televisão, ele sabe onde a maioria das narrativas vai, ele sabe como as emissoras se comportam e já viu episódios de séries o suficiente. Ele aproveita isso para tentar criar algo o mais diferente possível. Seu trabalho geralmente envolve algum comentário sobre a industria de entretenimento, na maioria das vezes envolvendo seu lado influenciador, como o uso de estereótipos e a falta de representatividade.
Tem MUITO mais camadas nessa cebola (única analogia que eu consegui pensar, foi mal) e por isso essa foi apenas a primeira parte sobre uma série que merece estar bem ali do lado de outras como Seinfeld e Arrested Development (opa, outra que rende muita coisa…).
Até a próxima.
Leia a PARTE 2: A ESTRUTURA NARRATIVA DE DAN HARMON
Observação: Todas as fontes e referências usadas no texto estão inseridas onde são mencionadas. É só clicar no link.