Community - Parte 2: A estrutura narrativa de Dan Harmon

Roberto Honorato
Rima Narrativa
Published in
12 min readSep 11, 2017

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Como promessa é dívida: aqui está a segunda parte.

Antes de ler este texto, indico fortemente que leia a a primeira parte, focada no criador da série e suas influências(Parte 1).

Como eu disse antes, Community é uma excelente série cômica e consegue se destacar com seu humor, enredo inteligentes e personagens envolventes. Mas não adianta muito ficar dizendo que ela é isso ou aquilo sem dar um bom exemplo, então nessa parte achei interessante analisar um episódio da série que mostra como Community é streets ahead* (se tiver que perguntar, você está streets behind).

“Remedial Chaos Theory” é o quarto episódio da terceira temporada e traz uma premissa bem simples. Troy e Abed convidam o grupo de estudos para visitar seu novo apartamento, todos sentam para conversar, mas a campainha toca e eles tem que decidir quem vai pegar a pizza no rolar de dados. E como eu disse, parece bem básico, mas é aí que entra o roteiro de Dan Harmon e Chris McKenna. Como cada número no dado representa uma pessoa diferente saindo do ambiente (no caso, o apartamento) para pegar a pizza, Abed alerta Jeff:

“Se jogar esse dado estará criando seis linhas temporais diferentes”

Mas Jeff não se importa e joga o dado mesmo assim. Então somos apresentados a todas as possíveis linhas temporais, cada uma baseada no que acontece durante a ausência de algum membro do grupo.

Este é um exemplo do que costuma ser chamado de “Bottle Episode”, que é o nome dado para um episódio que possui restrições de cenário ou outros elementos recorrentes, geralmente para economizar no orçamento de uma série, já que a TV não tem todo o investimento financeiro que um filme costuma ter. Muitas séries fazem isso, se não todas. Breaking Bad tem o episódio “The Fly”, onde Walter e Jesse passam um dia inteiro caçando uma mosca. Outro bem famoso é em “The One Where No One´s Ready”, de Friends — aquele que todos tem que se arrumar pra um evento importante para Ross, mas, como diz o nome do episódio, ninguém consegue (ou quer) ficar pronto — , que se passa todo em um apartamento e não traz convidados especiais.

O que todos tem em comum é o foco no desenvolvimento de personagens. Breaking Bad aproveita o seu bottle episode para aprofundar a relação entre os dois protagonistas, assim como Friends aproveita para mostrar como a relação de Ross e Rachel evoluiu, além de ajudar a fechar um arco importante para Mônica.

Mas eu não posso deixar de mencionar “The Chinese Restaurant”, de Seinfeld. Essa foi uma das primeiras séries a se beneficiar do formato e usar seu conceito para propósitos cômicos. A ideia foi brincar com as reservas em restaurantes e os inconvenientes para conseguir uma mesa em um lugar requisitado. A decisão criou situações divertidas e soluções criativas para cada obstáculo na frente dos personagens.

Seinfeld: Elaine, Jerry e George tentam arrumar uma mesa no restaurante chinês.

E seguindo a mesma abordagem de Seinfeld, Community conseguiu criar bottle episodes memoráveis, como “Cooperative Calligraphy”, da segunda temporada. No episódio, Annie perde uma caneta e não deixa o grupo de estudos sair da sala até que descubra o culpado, se é que existe um. Abed, um personagem fanático por filmes e séries que sempre confunde sua realidade com um programa de tv (eu já falei que o nível de metalinguagem nessa série é lá nas alturas, não?!), já percebe que seu dia está parecendo um destes episódios.

“Eu odeio episódios baratos. Eles são cheios de expressão facial e nuance emocional. Dá no mesmo sentar no canto e colocar um balde na cabeça”.

O formato seriado deve manter sempre uma estrutura lógica (dentro do que foi estabelecido) na hora de construir seus personagens, e Community tem o trabalho de manter por vários episódios o arco de sete indivíduos completamente diferentes, cada um com suas próprias características. Então exercícios narrativos como o de Cooperative Calligraphy são sempre bem vindos, adicionando uma dinâmica envolvente em algo que já está muito bem instituído.

Antes de continuar, temos que falar um pouco sobre aquela estrutura narrativa de Dan Harmon que mencionei no texto anterior (eu falei que era importante ter lido) e porque ela é importante para entender como Remedial Chaos Theory se destaca e como Harmon costuma construir um episódio.

De acordo com o próprio:

Desenhe um círculo e divida no meio verticalmente, depois mais uma vez horizontalmente. Começando do topo e seguindo em sentido horário, numere os quatro pontos onde a linha atravessa usando 1, 3, 5 e 7. Para os pedaços formados, você coloca os números 2, 4, 6 e 8. Então você tem isso.

Simples!

Cada número representa uma etapa do processo criativo de Harmon, e assim temos a base de como ele estrutura sua narrativa.

1: Um personagem está em sua zona de conforto,
2: Ele(a) quer algo,
3: Uma situação não familiar é apresentada,
4: Ele(a) acaba se adaptando,
5: Consegue o que queria,
6: Paga um preço por isto,
7: Retorna para a situação familiar (ponto de partida),
8: Ele(a) muda/aprende.

É claro que nem todas as etapas precisam ser cumpridas, mas existe uma chance enorme de você acabar encontrando este padrão se observar seus filmes, séries ou até música (Harmon explica que a atenção deve ser na música, não na letra) favoritos. E por mais que nem tudo seja perfeitamente nesta ordem ou siga todos os números, para Harmon toda história segue um padrão de queda e ascensão, como mergulhar e emergir através da jornada.

Por exemplo, em Beginner Pottery, da primeira temporada de Community, podemos ver o começo de um arco envolvendo Jeff que só tem sua resolução na temporada seguinte. No episódio, o grupo de estudos está procurando por aulas fáceis para cumprir seus créditos do semestre e Jeff tem a ideia de estudar “cerâmica para iniciantes”, uma aula “tão simples que você ganha pontos por participação”. Ele está em sua zona de conforto e quer algo.

Mas o que sabemos sobre Jeff? Ele se diz calmo e indiferente, mas também é vaidoso, gosta de ser o líder relutante e permanece contente desde que tudo esteja em ordem, pelo menos a ordem que ele impõe. Assim, quando somos apresentado ao personagem Rich (Greg Cromer), um aluno dedicado e carismático que logo rouba todo o brilho e a atenção que Jeff fingia não querer, já pode imaginar o que está por vir: Uma situação não familiar é apresentada.

Ele não aguenta ver outra pessoa recebendo elogios do professor e das alunas e começa a ficar paranoico. Uma das melhores referências metalinguísticas da série é quando Abed diz que a obsessão do amigo faz ele lembrar o ator Jeff Goldblum (Malcolm em Jurassic Park e David em Independence Day), cheio de tiques e a voz nervosa.

“Goldbluming?” Não sei o que isso quer dizer”

Treinando cerâmica no meio da noite, pesquisando o passado de Rich e falando sozinho, Jeff está alucinando a ponto de interagir com suas lembranças da infância, onde sua mãe sempre o enchia de elogios e falava o quão especial seu filho era (é, chega nesse nível).

Durante uma aula, pega Rich no flagra, usando uma “técnica avançada de modelagem” (Jeff sabe disso porque passou a noite estudando uma enciclopédia de cerâmica, o que aparentemente não é apenas uma piada já que você pode encontrar o livro na Amazon), e acabam brigando - o que resulta na expulsão de Jeff da aula. O personagem está no seu ponto mais baixo da jornada.

“Eu não tolero referências ao filme Ghost!”

Triste, encontra um conselho valioso onde menos espera. Pierce, que costuma ter as opiniões menos populares do grupo.

Jeffrey, quando eu nasci, tive o cordão umbilical enrolado no corpo todo. Minha mãe disse que em um momento os médicos desistiram de mim e começaram a rir. Se eu deixar “ser ruim em algo” me impedir de fazer as coisas, eu nem estaria aqui. Essa coisa que alguns homens chamam de fracasso, eu chamo de viver. Café da manhã. E eu não vou sair enquanto não devorar todo o bufê”.

Com isso, Jeff acaba se adaptando e aceita que não pode ser perfeito e perdoa sua mãe por nunca ser honesta com ele (mesmo que ela não esteja lá).

Este desfecho pode dar uma conclusão ao arco, mas ele não é sobre a mãe de Jeff e sim sobre ele mesmo e como deve se aceitar. Precisamos de algo mais satisfatório, por isso Rich retorna em Asian Population Studies, da segunda temporada.

O grupo de estudos descobre que Annie está gostando de Rich, e por mais que tente, Jeff não consegue evitar seu ódio gratuito pelo homem perfeito que salva filhotinhos de incêndios, ensina crianças a tocar violão e faz a melhor pipoca doce do mundo. Além disso, a relação de Jeff e Annie fica complicada desde que os dois se beijaram no final da primeira temporada.

Depois de uma briga entre os amigos para decidir se Rich deveria ou não fazer parte do grupo de estudos, Jeff consegue magoar todos com sua obsessão, incluindo Annie. E quando descobre que Rich não aceitou ficar com ela, Jeff corre na chuva em um momento que lembra as comédias românticas mais melosas. Ele consegue o que quer, mas pagou um preço, magoou seus amigos. Felizmente, a surpresa é que no fim Jeff não estava correndo para falar com Annie. Ele bate na porta de Rich e pede perdão.

Eu te conheço há dois anos e você é a pessoa mais estranha, legal e genuína que já conheci. E o que me assusta é lembrar como eu queria ser bom como você. Me ajude a ser como você. Eu sou incrível, mas não sou perfeito. Você é. Me dê este poder. Para que eu possa abusar dele.

Por mais que ele brinque com a situação, Jeff está sendo honesto. É claro que estamos falando de uma série em sua segunda temporada, então ele está constantemente voltando para sua situação familiar, mas com cada episódio, aprende e evolui o suficiente para aceitar seus defeitos em temporadas futuras.

E é assim que Dan Harmon desenvolve seus personagens.

E finalmente chegamos ao Remedial Chaos Theory.

Britta tentando cantar “Roxanne” (a do Police mesmo. Existe outra?)

Community tem o trabalho de manter sete personagens, cada um com sua própria característica e arco narrativo. Por isso, quando você cria uma linha do tempo paralela, ajuda bastante manter uma consistência coerente com tudo que foi desenvolvido destes personagens até o momento. Como resultado, a falta de cada um cria uma cadeia de eventos diferente no episódio.

E como agora vou ter que falar com mais detalhes sobre o episódio, não é necessário avisar sobre spoilers (mas já deixo o alerta mesmo assim).

Vamos colocar as peças na mesa.
Tudo começa quando Troy e Abed convidam o grupo de estudos para conhecer seu apartamento. E como o episódio passa sua maior parte neste mesmo ambiente, somos apresentados a primeira restrição que a equipe criativa adota: é um bottle episode.

Enquanto esperam pela pizza, cada personagem recebe um objeto ou ação que os representa e vai ditar o rumo da narrativa.

Jeff é egocêntrico e narcisista, e o roteiro decide dar a ele a principal função, de jogar o dado e decidir quem pega a pizza. Ao mesmo tempo, ele é punido constantemente por seu comportamento toda vez que levanta da mesa e é atingido pelo ventilador de teto.

Abed e Troy são os anfitriões. Abed tenta impressioná-los com uma réplica de Indiana Jones (com a bola giratória e tudo), Troy está passando por um momento de transição, ele quer ser levado a sério por seus amigos, principalmente Jeff, que o considera imaturo. Mas é difícil não pensar nisso já que Troy está sempre comendo cigarros de chocolate.

Piece, que costumava morar com Troy, ainda não se acostumou com perder o amigo e está com ciúmes de Abed. Para se vingar (é o tipo de coisa que Pierce faz), ele traz um troll norueguês de presente para Troy, que morre de medo do brinquedo.

“SINTA O TERROR DO TROLL NORUEGUÊS!”

Enquanto Britta tenta fumar um baseado no banheiro, Annie lida com outro problema. Sua vizinhança é tão perigosa que ela precisa carregar uma arma na bolsa.

Já Shirley questiona seu papel dentro do grupo e começa a fazer cada vez mais tortas e pizzas caseiras para talvez ter alguma característica forte entre os amigos. Mas como diz Jeff: “Sua identidade não pode se resumir em habilidades culinárias”.

Todos estes itens (a arma, a torta, o troll…) são componentes que contribuem para a forma como o roteiro examina seus personagens. Muitos destes itens funcionam como uma Chekhov´s Gun.

A “Arma de Chekhov” (traduzindo de forma literal) é um termo elaborado pelo escritor Anton Chekhov estabelecendo que “se [algo] não for essencial para a trama, nem inclua na história”. Este é um mecanismo narrativo bastante utilizado por alguns roteiristas para manipular a atenção e a expectativa do público. Em Community isso é utilizado nas piadas.

O roteiro se aproveita de piadas estabelecidas em outras linhas temporais e brinca com seus personagens. Quando Shirley vai pegar as tortas, todos perdem tempo debatendo e ninguém lembra de tirar suas tortas caseiras do forno, mas quando é a vez de Abed, Shirley é a primeira a sair da mesa para ficar na cozinha, porque não consegue ficar ouvindo Pierce falar sobre sexo em aviões e Jeff e Annie flertando.

Mas a realidade mais chocante que serve como clímax do episódio é a de Troy. Na primeira jogada de dados, Annie vai pegar a pizza e Troy encontra acidentalmente a arma dela.

Para Chekhov:

“Se você diz no primeiro capítulo que temos um rifle pendurado na parede, no segundo ou terceiro ato ele precisa ser disparado”.

A arma de Annie é a alusão mais clara ao princípio de Chekhov, e mesmo assim, não é o único elemento estabelecido anteriormente que tem sua resolução. Também temos o troll que Pierce pretende dar de presente para Troy, apresentado no começo do episódio.

Com tudo isso em mente, assistimos Troy sair para pegar a pizza, batendo a porta com tanta força que deixa a bola da réplica de Indiana Jones cair no chão. Jeff levanta para beber alguma coisa, mas bate a cabeça no ventilador. Annie diz que vai ao banheiro ajudar com o machucado, mas escorrega na bola, derruba a mesa, assusta Pierce, que chuta a bolsa de Annie, fazendo com que a arma dispare e acerte sua perna. Britta, que estava fumando, deixa seu cigarro cair no chão molhado de bebida alcoólica. O fogo se espalha, sangue jorra na cara de Shirley. Quando Troy está de volta, culpa o troll amaldiçoado, que está sorrindo e ardendo em meio às chamas.

E essa é só uma das linhas temporais. Você pode voltar e assistir o episódio mais vezes e encontrar sempre algum easter egg ou referência que não pegou na primeira assistida. A bebida que Pierce traz para o encontro e o que está estampado na geladeira de Troy e Abed são algumas coisas pra se prestar atenção.

No fim, depois de ter imaginado todas as possibilidades, Abed não deixa Jeff rolar o dado alegando que sua proposta era trapaceira desde o início, já que o dado tem 6 lados e são 7 amigos.

Abed: O caos já está presente demais em nossas vidas. O universo é um mar eternamente agitado de aleatoriedade. Nosso trabalho não é lutar contra isso, mas navegar juntos. Na jangada da vida, unida por estas poucas, raras e belas coisas aparentemente previsíveis: Nós. E não importa o que aconteça conosco desde que continuemos honestos e aceitemos as falhas e virtudes de cada um. Annie sempre será determinada, Shirley sempre generosa, Pierce não sabe pedir desculpas e Jeff… ele sempre será um trapaceiro filho da mãe.

Este episódio consegue introduzir vários novos elementos na série, como a linha do tempo “sombria” (darkest timeline) e o apartamento de Abed, que acaba sendo recorrente durante todas as próximas temporadas. Mas o mais importante é como essa brincadeira narrativa mostra como cada personagem é importante para a história e como a dinâmica pode mudar com a saída de qualquer um. No futuro, Community sofreu com a perda de alguns nomes do elenco (ninguém morreu, só saíram para outros projetos) e todo o tom mudou, o que comprova como cada peça é relevante e nunca deve ser negligenciada durante a construção de qualquer roteiro, ainda mais um que precisa desenvolver tantos personagens com características tão diferentes.

E esse é só um dos motivos pelo qual adoro Community. Ela mostra como você pode fazer algo incrível com pouco tempo e recursos, apenas um elenco talentoso, um enredo inteligente e alguém como Dan Harmon por trás de tudo.

Dan pensativo

Até a próxima - seja lá quando for -, e espero por você na terceira e última parte. Se é que ela sai. Talvez. Provavelmente. Vamos ver…

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Roberto Honorato
Rima Narrativa

"Mad Mastermind". Eu gosto de misturar palavras e ver no que dá. Escrevo sobre ficção científica para o Primeiro Contato e cinema para o Rima Narrativa 📼