"A Chegada" e a plenitude do amor

Laura Poffo
Essentia
Published in
5 min readApr 22, 2020

Atenção, contém spoilers!

Em um dia comum, 12 naves alienígenas pousam em diferentes lugares da Terra. A população mundial entra em estado de alerta e diferentes governos tentam se mobilizar diante dos visitantes inesperados. Equipes de comunicação são formadas com especialistas de linguística, física e estratégia para contatar seres que sequer reagem ao caos instaurado à sua volta. Entre os estudiosos recrutados pelo governo dos Estados Unidos, está a doutora linguista Louise Banks, interpretada por Amy Adams, e o matemático Ian Donnelly, vivido por Jeremy Renner.

Fotos por Movie Stills

Por conhecer o trabalho de Denis Villeneuve, sabia que o filme não teria a perspectiva típica dos blockbusters de ficção científica. Ainda assim, me deparei com reflexões inusitadas em momentos igualmente extraordinários, que me levaram ao caminho que menos esperava.

O diretor consegue trazer leveza a um cenário aparentemente escatológico e incerto para a Humanidade. A falsa confiança dos governos é exposta com militares em um nervosismo silencioso e que mal conseguem se comunicar para dividir informações. Em meio a tantas inseguranças e ameaças de guerra, Louise Banks transmite serenidade e firmeza ao buscar apenas uma coisa: o propósito desses seres em nosso mundo.

O filme começa com Louise alcançando sua bebê recém-nascida para segurá-la, sempre lhe dizendo em voz baixa: “venha para mim, venha para mim”. Acompanhamos cada momento de sua filha: seus primeiros passos, suas risadas, seu primeiro “te amo” — e também seu primeiro “te odeio” — para a mãe. De repente, vemos a menina passando por estágios de uma quimioterapia, com Louise presente em cada segundo. Ela, por fim, não resiste à doença. Louise busca resgatar qualquer resquício de vida no corpo de sua filha, sussurrando “venha para mim, venha para mim”. Mas já não há nada que possa ser feito.

Fotos por Movie Stills

Voltamos para o cenário central. A linguista rompe protocolos, barreiras e temores nas suas tentativas de comunicação com os extraterrestres. À medida que Louise consegue avanços na sua comunicação com os alienígenas, lampejos de memória com sua filha surgem vívida e aleatoriamente. Ela se mostra abalada, mas não se aprofunda nessas imagens… Até o momento em que ela e Ian entram na nave com uma bomba plantada por um dos militares.

Fotos por Movie Stills

Os alienígenas, ao invés de deixarem os dois à própria sorte, os ejetam para fora da nave, fechando a entrada e contendo a explosão. O cenário mundial inicialmente equilibrado, então, é abalado com ameaças de guerra e perdas de laços entre os continentes.

Para encontrar a solução, Louise decide entrar sozinha na nave. No instante em que questiona um dos alienígenas sobre o motivo de sua visita na Terra, ela é respondida com a palavra “presente” e é assaltada mais uma vez pelas imagens de sua filha, restando a ela uma única e intrigante pergunta:

“Quem é essa menina?”

Ao que o alienígena responde:

“Louise vê o futuro.”

Os visitantes trazem, como um presente para a humanidade, a dimensão do tempo não linear. À medida que a linguista aprende a se comunicar com os extraterrestres, ela também transita entre presente e futuro, já que essa capacidade faz parte do “idioma” deles. Entram aí as visões de Hannah — sua futura filha. Nessas previsões, ela também descobre que seu futuro marido lhe abandona por conta da doença incurável de Hannah. Junto com os presságios, outro dom extremamente importante lhe acompanha:

“Se você pudesse ver sua vida inteira à sua frente, você mudaria qualquer coisa?”

É nesse momento em que Louise escolhe ter a vida de Hannah. A linguista sacrifica os confortos que teria com o “não”, pois decide viver, ao menos uma vez, um plano de amor intenso, pleno e único. Decide pela chance de se entregar por alguém além dela mesma.

Fotos por Movie Stills

Muitas vezes, queremos nos manter na zona de conforto, pensando saber o que é melhor para nós mesmos. Li uma vez que, se o caminho de nossas vidas nos fosse mostrado por completo, escolheríamos viver exatamente essa mesma jornada, da maneira que foi moldada para cada um de nós.

Ainda assim, somos capazes de nos privar do verdadeiro amor próprio, que somente é completo no outro. Afinal, acreditamos que é nos poupando do outro (e dos seus problemas) que vamos nos fortalecer — quando é exatamente o contrário. Basta ver quantas lições podemos tirar de relacionamentos, tanto ruins como bons.

Será, então, que vale a pena vivermos uma vida inteiramente solitária, superficial e refém do nosso amor próprio quando podemos viver um plano de amor por inteiro, pelo menos uma vez?

Nós somos capazes de reconhecer quando um encontro profundo de amor acontece em nossas vidas, pois também vemos a marca que ele deixa em nós quando acaba. Mas nem essa ausência é capaz de tirar toda sua beleza, força e transformação. Cabe a nós criarmos a coragem de viver, pura e simplesmente. E para experimentar essa oportunidade, é preciso confiar e esperar.

Os visitantes da história já sabiam, por conta de sua capacidade de ver o futuro, que haveria uma bomba implantada em sua nave e que teriam de se sacrificar para salvar Louise e Ian da explosão. Contudo, isso não os impediu de realizar todos esses momentos. Louise também não abriu mão do amor por conta de erros e abandonos que iria sofrer. Ela deu o seu sim por inteiro, pois enxergou a vida através do prisma que é amar.

Fotos por Movie Stills

Cada conquista requer uma entrega, e não há nada mais gratificante do que ver dores e sacrifícios convertidos em momentos repletos de alegria e transformação. Também aprendemos a valorizar mais a nossa vida quando o contrário acontece. Por isso, sempre é maravilhoso ver que as direções tortuosas das nossas falhas ainda podem nos levar ao encontro de pessoas singulares, que valem cada tropeço do caminho.

Nós não sabemos o que ainda vamos viver (e aprender a superar), mas sabemos o quão sublime é encontrar um gesto singelo de amor. Como um olhar, um sorriso ou uma conversa podem mudar a nossa vida por inteiro. E é isso que nos faz verdadeiramente humanos.

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Laura Poffo
Essentia

Cinéfila, maratonista de séries e apaixonada pela realização de grandes histórias. Também escreve sobre relações humanas em Essentia.