Um homem que fez história

Isabela Cardoso
Essentia
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5 min readJun 17, 2020

Leonardo. Ele era um dos porteiros da noite no prédio onde moro. Chegou de repente para substituir o anterior, moço honrado e batalhador que tragicamente faleceu de ataque cardíaco aos cinquenta e poucos anos. Nenhum substituto durou muito tempo, até chegar o Leonardo.

Um jovem tímido, um pouco gago e bem forte. Ele não falava muito, mas sempre estava com um sorriso no rosto e um semblante feliz. Só por essas características já dá para perceber o seu bom coração, afinal passar as noites em claro deve causar muito estresse até mesmo para as pessoas mais bem-dispostas.

Mas o horário de trabalho não parecia afetar o Leonardo, muito pelo contrário, ele demonstrava um amor pelo seu serviço de dar inveja.

Desde os seus primeiros dias de trabalho ele já surpreendeu: sempre que um morador passava, ele se levantava da cadeira em prontidão, como se dissesse que estava ali, atento, a serviço, disposto a ajudar com o que precisasse, e só voltava a se sentar depois que a pessoa passasse por ele e entrasse no hall do elevador.

Em pouco tempo ele memorizou o carro e o número do apartamento dos moradores e passou a surpreender ainda mais.

Sempre atento ao movimento do estacionamento em frente ao prédio, ele logo identificava o morador que chegava e rapidamente saía da sua cabine para abrir a porta de acesso à salinha do elevador. Então chamava o elevador, apertava o andar e segurava a porta para a pessoa entrar.

Nós não precisávamos fazer nada além de sorrir, agradecer e desejar uma ótima noite de trabalho para o Leonardo antes que a porta do elevador se fechasse.

Eu nunca pensei que movimentos corriqueiros como abrir uma porta e chamar o elevador poderiam fazer alguma diferença no meu dia, até que alguém bondoso demais começou a fazê-los para mim.

Mesmo que esse não fosse nem de longe o seu trabalho e mesmo que certamente ele tivesse outras coisas com que se preocupar, Leonardo era um homem que não se contentava em fazer “apenas” o seu trabalho, mas procurava motivos para fazer muito mais.

Ele encontrou na doação o sentido de sua vida, e mesmo que dispusesse de poucos recursos, em tudo via oportunidades para servir o próximo, até mesmo quando elas pareciam não existir.

Tudo bem, eu posso ter romantizado os motivos de o Leonardo ser tão gentil. Talvez aquela fosse a única maneira que ele encontrou de se movimentar, de se manter acordado, talvez ele tivesse dor nas costas ao ficar muito tempo sentado…

Em última análise, qualquer que seja a razão que o tirava da sua cabine, o que ficava para quem via aquele exemplo era alguém que valorizava ao máximo o seu trabalho, o seu bem estar e também o dos outros. Aqueles gestos tão simples, tendo ou não um motivo transcendental, eram transformadores, pois nos transmitiam o seu amor pela vida.

A atitude do Leonardo nos mostra que nem sempre devemos basear nossas ações buscando apenas que elas sejam suficientes ou que simplesmente não estejam erradas. Fazer somente o que é nosso dever e não mais que isso em nada nos valoriza.

Isto é, orientar nossas ações para realizar apenas aquilo que devemos muitas vezes não é fazer tudo o que realmente temos capacidade. E não usar nossas capacidades é, em última instância, não nos valorizarmos.

Porque será que em nossas vidas não somos estimulados justamente a fazer mais, a nos doar mais, a nos dedicar mais? Pelo contrário! Somos constantemente bombardeados com tecnologias que nos poupam qualquer esforço.

Na questão profissional, quantas vezes nossos amigos e até familiares já nos fizeram acreditar que não devemos nos submeter aos nossos chefes por eles serem incansáveis ou exigentes?

Na verdade, estamos sendo incentivados a não fazer nada além do mínimo, como se fôssemos tolos ou incapazes de grandes feitos.

Buscar fazer somente aquilo a que nos chamam ou o que nos incubem, muitas vezes, não desperta nossas melhores versões, não nos faz plenos como indivíduos e não é o que nos coloca em total conformidade com nossa essência.

Fazer somente o que não é errado, mas não buscar novas formas de fazer ainda mais certo, em alguns casos, pode até ser uma conduta medíocre.

Respeitando nossos limites, meu convite hoje é para olharmos para nossas vidas, para as situações corriqueiras, e pensar se não poderíamos fazer mais, sempre mirando uma vida mais plena e nunca poupando esforços para a doação de si mesmo.

Não devemos fundamentar nossas ações apenas pelo fato de ser nosso dever ou de ser suficiente. Muitas vezes o suficiente não é o necessário para nos fazer plenos.

Coloquemos amor nas pequenas coisas e encontremos aí nossa plenitude e o sentido que nos impulsiona a fazer as grandes coisas.

Tomemos o exemplo do Leonardo. Diante de situações em que ele precisava fazer somente o necessário e seu papel já teria sido cumprido, não se satisfez com desculpas que indiscutivelmente seriam válidas ou com motivos que certamente seriam justos, mas dedicou-se nos mínimos gestos, valorizando ainda mais a sua própria vida e a do outro.

Leonardo contou para a minha mãe que trabalhava à noite para pagar sua faculdade.

Leonardo até participava das nossas brincadeiras. Certa vez, a pedido da minha irmã, ele disse que não deixaria nossos amigos subirem porque estavam vestidos com roupas engraçadas só para nos fazer graça.

Leonardo mudou de emprego sem que soubéssemos e sem que pudéssemos nos despedir e desejá-lo boa sorte na nova trajetória.

Não tivemos a chance de agradecê-lo por, com seus gestos simples, ter feito história na minha vida, dos meus familiares e com certeza de muitos moradores do prédio.

Fica aqui, então, a nossa homenagem a ele, que tanto mudou em nós. Seu maior ensinamento, sempre levaremos conosco: tudo o que temos é um presente nessa vida e vale a pena buscar oportunidades para amar até mesmo quando elas parecem não existir.

É isso que faz a diferença na vida dos outros, e por isso, também em nossa própria vida. Viver plenamente é doar-se a si mesmo, valorizar-se e valorizar cada indivíduo como uma vida que realmente importa (já falamos sobre isso aqui no Essentia nos textos “É mais fácil dizer adeus” e “A dignidade humana”).

Que saibamos enxergar em cada pessoa sua dignidade, inclusive em nós mesmos, e assim utilizar cada momento da vida como uma oportunidade de amar, com os recursos que se tem. Isso é descobrir o seu próprio valor, isso é viver plenamente.

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Isabela Cardoso
Essentia

Biotecnologista e mestranda em Biologia, amo fazer perguntas, divulgar a ciência no IG vida.de.cientista e escrever sobre relações humanas no Essentia.