Melhorando (ou não) a raça humana

Isabela Cardoso
Essentia
Published in
7 min readJul 30, 2020

Não se assuste, esse texto não é tão perturbador quanto a imagem! Se me acompanhar até o fim, irá transitar entre arte e ciência, sentimento e razão. Afinal, é isso que forma nossa essência, não é mesmo?

No final de 2018, um cientista chinês anunciou ter criado os primeiros bebês editados geneticamente. A idéia foi retirar um gene que é responsável pela entrada do vírus HIV na célula humana de maneira que os bebês editados seriam imunes a AIDS.

O anúncio gerou comoção na comunidade científica internacional, que se posicionou contrária ao experimento por ter ferido a ética e as leis vigentes.

A técnica utilizada, segundo os cientistas, apesar de ser muito promissora, ainda não está “afinada” para ser aplicada em embriões humanos com segurança, uma vez que não se pode garantir sua completa especificidade (isto é, ela poderia gerar alterações em genes indesejados).

A possibilidade de se editar humanos é real e está ficando cada vez mais próxima. Na verdade, essa técnica de edição genética já é rotineiramente aplicada no meio científico em microorganismos, plantas e animais para os mais diversos fins, como impedir a transmissão da malária e combater pragas agrícolas, apenas para citar alguns.

A questão que fica é: será que mesmo com o refinamento e estudo aprofundado, em algum momento a edição gênica será realmente propícia para aplicação em humanos?

Colocando os pingos nos “i”s

É importante, aqui, diferenciar tratamento de melhoramento: tratar significa ajudar um indivíduo para que volte à sua “normalidade”. Já o melhoramento envolve um desejo por aumentar “o potencial” de uma pessoa que já seria considerada “normal” e que não necessita de nenhum tipo de terapia.

Todos sabemos como a ciência e a tecnologia são benéficas para a nossa sociedade. Contudo, muitos aspectos da nossa vida não podem e não são explicados pela ciência (leia “Lentes para Enxergar”), e muitas soluções para os nossos problemas passam longe dela.

A edição genética para erradicar doenças em embriões pode parecer inofensiva, mas e quando se trata de erradicar características indesejadas?Para quê melhoraríamos um ser humano, como se seu valor estivesse em algum atributo e não nele mesmo?

Seja bem vindo, convidado!

Na minha opinião, ninguém conseguiu abordar tão bem essa problemática como a artista plástica Patricia Piccinini. (Deixo aqui um agradecimento especial à minha amiga e idealizadora do Essentia, Laura Poffo, que me apresentou a artista há alguns anos e ontem me alertou para a ligação com o tema que estamos abordando.)

Inicialmente, suas obras geram um certo desconforto e podem chocar, mas a própria artista nos explica o intuito por trás de seu trabalho. Vejamos um exemplo:

Em “The welcome Guest” (O convidado bem vindo), vemos uma criança encantada com uma criatura estranha, que encontra na menina abertura suficiente a ponto de partir para um abraço. Ao mesmo tempo, na cabeceira da cama, está um pavão, que mesmo sem fazer nada, convoca o nosso olhar. Patrícia, chamando a atenção para a ave, sugere:

“Quem diria que a beleza é tão importante a ponto de a evolução ter originado uma criatura tão doida e ridícula como o pavão?

Com essa criatura, a natureza escolhe a beleza acima da eficiência ou da força. Isso está tão em desacordo com a maneira como nós modificaríamos nossas criaturas, colocando a utilidade acima de qualquer outra coisa

Aceitaríamos criar uma nova vida pela simples razão de ser bela? Eu acho que não… Mas de novo, o pavão nos mostra que, para a natureza,[a beleza] é uma razão boa o suficiente.”

Já discutimos em textos aqui no Essentia que a beleza é algo essencial para a nossa vida. O poeta Johann Wolfgang von Goethe, cujo verso inspirou a obra de Patrícia Piccinini, bem pontuou:

“Beauty is everywhere a welcome guest”

(“A beleza é, em qualquer lugar, uma convidada bem vinda”).

Beleza não significa ter um rosto e um corpo bonito, muito pelo contrário. Ela dialoga primeiramente com o coração, ela sobretudo vem do coração e se manifesta despertando ainda mais beleza nos outros. Muitas vezes é uma convidada, uma hóspede oculta em nós mesmos, que precisa ser descoberta para que seja manifestada e transmitida aos outros.

Vivendo uma utopia

Criar humanos modificados geneticamente nos impede de apreciar o belo e a individualidade que há em cada pessoa, mas faz-nos buscar seres melhores, mais aptos, mais úteis, como se seu valor estivesse aí, na utilidade.

Não bastasse isso, a modificação genética de humanos também geraria uma maior desigualdade e uma competição injusta entre pessoas, sociedades e nações. Pense bem: será que todos os países conseguirão ter acesso a essa técnica? E todas as pessoas terão dinheiro para engenheirar os filhos que quiserem ter?

Imaginemos que a edição gênica é o novo doping. Em uma olimpíada, os atletas são proibidos de utilizar substâncias que melhorem sua performance para que a competição seja justa.

Em um contexto em que a engenharia genética de embriões fosse permitida, teríamos a mesma situação: algumas pessoas possuiriam as características consideradas “ideais”, enquanto outros, por não as possuírem, seriam incapazes de “competir”, ao longo da vida, com os primeiros.

Isso geraria uma grande disparidade e conflitos inimagináveis. Criaríamos uma raça de super-humanos? Todas as características físicas estariam passíveis de serem alteradas, criando pessoas super inteligentes, ou super-insira-aqui-o-que-quiser? Aonde isso nos levaria?

Será que não estaríamos em busca de uma perfeição que no fundo sabemos ser inatingível? Será que isso é tão diferente do padrão de beleza inalcançável e nada saudável que tanto criticamos?

O elo

Na obra “The bond” (“O elo”), vê-se uma mãe carregando no colo um filho que, por um lado não é totalmente estranho por ter traços humanos, mas com características bizarras e desconhecidas e com as costas no formato de uma sola de sapato.

Patrícia explica:

“Em um mundo onde entendemos o DNA como algo tão universal, permutável, tão capaz de ser editado; em um mundo onde entendemos que o corpo não é de maneira nenhuma finito, mas incrivelmente flexível e versátil, não é inconcebível ter um filho como esse. Não é surreal, de nenhuma maneira, imaginar esse tipo de relação.”

“Mas se o mundo está em constante transformação, não teríamos nós também que nos adaptar às novas tecnologias e mudanças?”, você poderia se perguntar.

É verdade, a construção da sociedade passa pelo desenvolvimento científico e tecnológico, e esses campos devem, sim, crescer com a sociedade. O problema aparece quando essas mudanças buscam tirar o que há de mais precioso em nós, sob um pretexto de descoberta de novas formas de aliviar o sofrimento ou eliminar a dificuldades e/ou características indesejadas, como se a perfeição ou a vida simples e fácil fossem um dia possível de atingir.

Não é só porque a ciência e a tecnologia trazem benefícios inúmeros para a sociedade que devemos nos esquecer do caráter transcendental da nossa vida e de tudo o que ela envolve: alegrias, mas também sofrimento, emoção, mas também razão, alívios, mas também dificuldades.

Até que ponto o sofrimento deve ser combatido com unhas e dentes? Sofrer não nos diminui, mas nos constrói como pessoas. Aliás, sem sofrimento nada se conquista e a vida perde o sentido.

Uma vida fácil e sem dificuldades, se existisse, não nos edificaria. É em meio a superação de obstáculos, por menores que sejam, que nos vêm os mais preciosos ensinamentos.

Se nossa sociedade soubesse disso, não seria tão necessário assim promover o aborto de fetos diagnosticados com a síndrome de Down, como faz a Islândia, pois sabemos que o fato de serem diferentes não os faz menos valiosos.

Estar, teoricamente, condenado a sofrer discriminação pelo resto da vida ou necessitar de maiores cuidados não tira o valor de uma vida.

A vida de pessoas que por algum motivo não se encaixam nos padrões da sociedade nos ensinam muito, e a presença delas no mundo, isso sim deveria ser visto como um meio legítimo de “melhoramento”, do tipo que precisamos: que incentiva o respeito à vida e vê em cada pessoa, indivíduos únicos e insubstituíveis, de valor inimaginável .

De maneira nenhuma são inválidas as tentativas de melhoria da qualidade de vida daqueles que sofrem e a busca por tratamentos e cura de doenças. A questão aqui não é essa. Utilizar técnicas de edição genética em células não embrionárias para tratar doenças é uma causa nobre que deve ser incentivada.

Mas ultrapassar essa linha e passar a criar humanos com as características que julgamos necessárias ou importantes, sob qualquer que seja o pretexto, criaria uma sociedade ainda mais desigual e injusta, completamente esquecida de uma das mais fundamentais razões de se viver: a beleza, que, encontrada dentro de nós, é emanada como dom único, como uma hóspede bem vinda e uma solução inesperada para nossas imperfeições.

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Isabela Cardoso
Essentia

Biotecnologista e mestranda em Biologia, amo fazer perguntas, divulgar a ciência no IG vida.de.cientista e escrever sobre relações humanas no Essentia.