Sacrifício feminino ou ícone LGBT? O dilema da pequena sereia.

Reimaginação do clássico com uma sereia negra acende o debate sobre as limitações e influências da história.

FPG
EstiloGeek
4 min readMay 24, 2023

--

Devo ter assistido milhares de vezes a animação da sereia ruiva que sonha em se transformar em humana. Perdi as contas de quantas idas na locadora foram necessárias para decorar todas as falas e canções da produção da Disney, que se tornou minha preferida na infância.

Apesar de também adorar A Bela e a Fera (1991), Aladdin (1992) e O Rei Leão (1994), havia algo na história de Ariel que sempre me emocionava, mesmo mais velho.

Por que Ariel incomoda tanta gente?

34 anos após a estreia da animação e com a divulgação do live-action, as discussões sobre a história ganham novamente o holofote. O arco de Ariel pode parecer raso hoje em dia, ao trocar o reino dos mares e o convívio com familiares e amigos para conquistar um príncipe que ela conheceu, literalmente, por algumas horas.

Inúmeros vídeos e análises na internet interpretam a história com uma visão feminista e empoderada da atualidade, criticando que o conto de Hans Christian Andersen reforça a ideia de submissão e sacrifício feminino, na qual a sereia mutila o próprio corpo e abandona a voz para conquistar a afeição de um homem.

Questões problemáticas sobre padrão de beleza, alterações corporais e relacionamentos idealizados podem ser associados facilmente com a personagem.

“Ela aceita ficar muda, incapaz de se comunicar. Não é uma mensagem muito boa para meninas ou para os gays”, disse recentemente um youtuber influente sobre a história de Ariel. Para muitos, inclusive, a trama sobre o ‘amor verdadeiro que vale qualquer sacrifício’, estimularia o ideal errado de relacionamentos conflituosos para as novas gerações.

A confirmação de que algumas músicas e trechos da nova adaptação foram reformuladas para atender as demandas das novas plateias (incluindo a polêmica de uma Ariel negra, interpretada por Halle Bailey), comprova que a trama original realmente incomoda muita gente.

Sereia incompreendida ou uma metáfora LGBTQIA+?

Sim, à primeira vista, A Pequena Sereia pode até parecer uma história ingênua, mas há mais camadas que explicam o fascínio pela personagem, especialmente no meio LGBTQIA+.

Ariel sempre foi encantada pelo modo de vida humano e nunca conseguiu se encaixar nos padrões do reino dos mares. Ela já colecionava itens humanos secretamente, montando uma verdadeira coleção de artefatos. Suas constantes idas à superfície, apesar da proibição, só mostram o quanto esse desejo era forte.

O encantamento pelo príncipe, dessa forma, não seria o real motivo da transformação, mas um incentivo para finalmente tornar possível essa transição. Eric não seria o objetivo final, mas um meio para ela finalmente conquistar a superfície.

Quantos jovens LGBTQIA+ não vivenciaram essa experiência de não se sentirem compreendidos no meio em que viviam e encontraram forças em um relacionamento para finalmente se assumir? Muitas vezes, o apoio do companheiro foi fundamental para aceitar alguns dilemas. Quantos não tiveram que disfarçar a voz e os trejeitos, esconder preferências para não causar incomodo ao redor e sonhavam e se refugiar na própria ‘caverna’, cercado por artefatos do mundo pop?

Estátua da Pequena Sereia em Copenhague, Dinamarca

A Sereia, dessa forma, não seria uma história sobre a fragilidade feminina, mas uma metáfora sobre sentir-se inadequado. A associação fica ainda mais forte no conto original do dinamarquês (1805–1875), que diferente da versão animada não tem um final feliz, com a sereia derrotada, sem conquistar o amor do príncipe no prazo do feitiço.

De acordo com biógrafos e documentos analisados, o conto seria uma justamente uma alusão sobre decepções amorosas de Andersen, com um amor não correspondido dele por outro homem, Edvard Collin, que se casou e nunca conseguiu retribuir os sentimentos do autor.

O sofrimento de Andersen, dessa maneira, se transformou em uma história sobre sacrifícios e a necessidade de calar os próprios sentimentos em busca de afeição. O preço para Ariel se transformar em humana é justamente sua voz, como se para poder ser amada ela tivesse que abrir mão da própria expressão. Por amar cantar e ser reconhecida como uma das mais belas vozes do mares, o preço dessa transição é alto, mas viver incompleta nos mares seria mais doloroso.

Talvez seja justamente esse o fascínio da personagem, apesar de tantas críticas, o motivo que me conectou na infância e ainda me emociona só de ouvir a trilha sonora da animação. Como aconteceu recentemente com Luca (2021), produção da Pixar, há camadas na história que soam diferentes para quem já vivenciou um conflito interno de não pertencimento.

É essa é a importância dos contos de fadas e animações, em expressar ludicamente sentimentos tão complexos, que ajudam as crianças a entenderem um pouco mais sobre si mesmas e as relações humanas. É bem provável que a nova versão conquiste novos fãs, inspirando novas interpretações e conexões, não com uma visão negativa e machista como alertam os detratores, mas com uma potente história de transformação.

Entre críticos e fãs, Ariel seguirá inspirando quem estiver disposto a ouvir o canto da sereia.

Vamos conversar sobre cultura pop?

👉 Conheça mais sobre o EstiloGeek AQUI.
📲 Vamos trocar ideia no Instagram EstiloGeek42

--

--

FPG
EstiloGeek

Tentando ser FASHION, aficionado pelas novidades POP e apaixonado pelo universo GEEK. “Cher acima de tudo, Madonna acima de todos.” 🏳️‍🌈🕶️