Um ano de estrangeira
Cruzei as Américas, encontrei o Caribe, o Pacífico, os Andes e a neve.
O México foi o primeiro destino da minha vida nômade. Me surpreendo quando percebo que já passou mais de um ano desde que estive aqui pela primeira vez.
Em junho de 2018, embarquei para Playa del Carmen com uma passagem só de ida, apenas a primeira de muitas que se seguiram. Já não tinha por que voltar, só planos de onde chegar.
O frio no estômago era familiar, mas nada comparado ao nervosismo que as entrevistas de trabalho proporcionavam. Diferente destas, este era um caminho que eu queria tomar, então embora o medo existisse, ele não me paralisava. Pelo contrário: ele me fazia falar, mover, ver e escutar.
Não lembro o que motivou a escolha de começar pelo México, mas sei que eu sonhava em submergir no Mar do Caribe há muito tempo. Suas praias são a descrição perfeita para o meu tipo de paraíso. Faz calor aí o ano todo, mas o clima é de leveza e sua alma quase levita na sombra de uma palmeira.
Durante os meses que anteciparam o embarque, imaginei como seria combinar as águas cristalinas à inauguração da minha liberdade de viver nos cenários mais diferentes do mundo. Mas nem a minha cabeça sonhadora poderia ter criado o que eu vivi naqueles primeiros meses.
Na segunda escala da nossa viagem, o voo atrasou, adicionando mais de 6 horas a um roteiro que já duraria um dia inteiro. Perderíamos o último horário do ônibus. De última hora, desembolsammos mais dinheiro para contratar um transfer particular.
Quando finalmente desembarcamos no aeroporto final, em Cancun, estranhei o calor úmido de mais de 30°C. Era meia-noite e estava difícil respirar. Vindo do inverno sulista, as várias camadas de casacos pesados de lã foram saindo, uma a uma.
Nosso transfer demorou mais de uma hora para chegar. Sem internet e sem forma de comunicação, esperamos sem a certeza de que ele realmente viria. Enquanto isso, taxistas nos ofereciam todo tipo de oferta na frente do aeroporto, cada um tomando sua vez e iniciando com o quebra gelo familiar — de donde vienen?
Nosso motorista já estava contratado, e não se preocupou em demonstrar o falso interesse. Quando chegou, mal nos dirigiu duas palavras. Mesmo intimidados, subimos na grande kombi branca e seguimos pela estrada escura em direção à cidade vizinha.
A certeza de que esse era o começo perfeito para um filme de terror barato saltava dos meus olhos quando eu e Martín nos entreolhávamos no banco de trás.
Mais ou menos uma hora depois, a kombi nos largou onde o GPS sinalizava como destino final, e deu meia-volta antes que tivéssemos a chance de entrar no condomínio.
Àquela hora, não havia ninguém para nos receber. Martín encontrou nas mensagens do celular o código de segurança do portão e o digitou no aparelho eletrônico. Por cada vez que ele apertava os botões de forma diferente — algumas mais calmas e outras nem tanto — o visor exibia a mesma mensagem de erro, enquanto o portão permanecia trancado.
Já eram mais de duas horas da manhã. Não havia nenhum sinal de internet, e mesmo se houvesse, a empresa de aluguéis não atenderia nenhuma ligação a essa hora.
Sentei na calçada e escondi o rosto nas mãos. Estava cansada demais até para repensar as escolhas que nos levaram até ali. Mas em menos de cinco minutos depois de me dar por vencida, olhei o portão com outros olhos. A grade não era alta, não havia câmeras nem alarme. Se conseguíssemos passar por ela, poderíamos tentar o outro código diretamente na porta do apartamento. Se ele funcionasse, teríamos as chaves nas mãos.
Martín acabou fazendo o trabalho sujo de escalar o portão, enquanto eu o encorajava. Depois que ele ultrapassou a piscina no pátio, não o vi mais. Esperei com as bagagens na rua deserta, enquanto algum bicho fazia barulho nas latas de lixo. Depois descobriria que eram quatis.
Quando ele voltou com as chaves, abrimos o portão e levamos as bagagens até o segundo andar no escuro.
Não senti o que pensei que sentiria ao chegar. O apartamento era grande demais para nós dois. Estranho demais para quem só queria um conforto depois de tanto tempo sem nenhum.
Depois de tomar banho, me encolhi nos braços do Martín, me segurando à única coisa conhecida que eu tinha naquele momento.
Logo nos acostumamos com o calor. Durante os próximos 60 dias, o México caribenho, famoso nos folhetos turísticos, foi a nossa casa. Nas praias de água cristalina, vi peixes de todas as cores e tartarugas do tamanho de cachorros. Aprendemos novas palavras, fizemos muitas coisas pela primeira vez e rapidamente nos adaptamos.
Olhando para trás agora, posso ver como os primeiros meses de viagem se sentiram muito como estar de férias, mesmo que não estivéssemos realmente de férias. Foi uma lua de mel que fizemos com as nossas escolhas. Tudo era novo, brilhante e mágico. A minha vida não era apenas a minha vida, era um sonho que se tornava real à medida que diversos pequenos sonhos se tornavam memórias.
Nesse período, poucas coisas podiam abalar minha felicidade. Mesmo a irritação com eventuais dificuldades facilmente ficavam para trás. Eu lembro de deitar em várias camas diferentes, depois de dias particularmente especiais, e pensar comigo: Isso é felicidade, Dayanne. Aproveite.
É claro que eu tinha medo de que aquela felicidade partisse e deixasse apenas a sombra do que foi. Mas meus pensamentos não voavam tanto nessa direção. Eles tendiam a permanecer no que era palatável, digerível e gostoso.
E como eu desfrutava dessa felicidade; como se ela fosse uma manga bem madura que gera pequenos orgasmos no interior da boca. E o México estava cheio de novos tipos de manga para descobrir.
Agora, em agosto de 2019, me encontro novamente com o México. Hoje, também estou nadando em águas cristalinas, mas na costa oposta.
O Pacífico tem me acompanhado desde janeiro, quando o vi pela primeira vez. Naquela ocasião, estava em Lima, no Peru, e visitava a orla e as praias de pedras e água agitada todos os dias, religiosamente, ao pôr-do-sol. Depois, me encontrei com ele novamente no Equador, em uma pequena vila de pescadores chamada Puerto López, onde caminhava todos os dias e ocasionalmente sentava para apreciar águas azuis intocadas em reservas naturais.
Estar aqui novamente despertou muitos sentimentos. O cheiro é familiar. A vegetação é colorida e abundante, o clima quente clama por água, a língua se demora nas palavras e gosta de conversar, a comida é apimentada demais, as mangas são doces… Tudo está como era um ano atrás.
Mas não eu. Eu era tão diferente há um ano. Voltar é como me forçar a reconhecer no espelho todas as mudanças que me atingiram, onda atrás de onda. No meio delas, não tive descanso para colocar a cabeça para fora d’água e respirar. As marcas na pele, as rugas nos olhos e as cicatrizes na alma contam essa história melhor do que eu poderia. Basta olhar as fotos.
Viajar sem casa por um ano fez isso comigo. Enquanto me deu tantas novas formas de me comunicar e expressar, tirou todas as certezas com as quais eu tinha construído o meu chão.
Já não tenho certeza de nada. Descobri que gosto de coisas que antes não gostava. Pensei que estava viajando para entender mais o mundo, e agora vejo que a viagem mais profunda é para dentro. Fui turista e estrangeira em incontáveis lugares, mas não fui turista na minha vida. Cada novo dia era trabalhoso porque uma nova Dayanne nascia. Fui desconstruindo e construindo todos os dias, acessando partes de mim que eu nem sabia que estavam aqui.
Depois de um ano, é fácil entender porque estou tão exausta. Não é apenas o trabalho e o planejamento, os ônibus e aviões, as novas cidades para descobrir; são as mudanças constantes e o crescimento acelerado em novos terrenos dentro de mim.
Não faz sentido viajar e permanecer a mesma. Ou mesmo viver e permanecer a mesma. Nunca fez. Se alguém que me conhecesse bem me dissesse depois de muitos anos que eu não mudei nada, eu não tomaria como um elogio. Pelo contrário: “você mudou!” é o maior elogio que alguém poderia me fazer hoje.
Não estou me juntando ao coro de que viagens curam tudo, e que todo mundo precisa viajar. Na maior parte do tempo, pessoas viajam e voltam as mesmas.
Não é a viagem, o lugar, o país, a Torre Eiffel, é você. Viajar foi só o próximo passo de um processo que eu já vinha praticando.
Viajar é só um catalisador que me tira do ambiente natural e me dá novos olhos. Me força a olhar para mim, inteira, da ponta da cabeça à ponta dos dedos do pé. Me força a ver o que eu sou e me inspira a ser melhor. Me permite enxergar coisas que eu não via antes — física e emocionalmente. Me tira do lugar geográfico e me tira do óbvio. Sair do óbvio é a melhor coisa que eu poderia fazer: me permite experimentar, brincar, tirar o que não serve e colocar mais do que faz bem. Me reencontrar comigo mesma no meio de toda a interferência.
Há um ano atrás, eu nem imaginaria todas as reviravoltas que nos levariam de volta ao exato ponto em que começamos tudo isso.
Fico feliz de estar diferente. Significa que me abri à vida que pretendi criar. Significa que tudo que correu bem e tudo que correu mal foram aceitos aqui dentro como partes de mim, como ondas que me esculpiram.
Viajo por fora e viajo por dentro. Descubro novos lugares num mapa e descubro novos lugares no meu próprio corpo, no meu próprio ser. E se isso não é poesia para os seus ouvidos, eu não sei o que poderia ser.
Quando nos encontrarmos de novo
você não vai me reconhecer
eu fui delicadamente esculpida
por todos os oceanos que me alcançaram
no caminho
você vai notar o meu cabelo
meus olhos vão te lembrar aquela que deixei
e ainda, você não vai saber
o quão diferente eu me tornei
por dentro.
Sou antropóloga, poeta e nômade. E também sou muito mais do que isso. Meu nome é Dayanne. Quer ler mais? Siga a Estrangeira no Medium, um espaço que criei para falar sobre a vida na estrada.
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Para conhecer o começo dessa história, leia O que me levou a viver na estrada.
Para entrar em contato direto comigo, escreva para dayannedockhorn@gmail.com