Excesso de bagagem

Dayanne Dockhorn
Estrangeira
Published in
5 min readMay 31, 2020

Quando estava me acostumando à ideia de vender tudo para viver de forma diferente (“na estrada”), ficava tentando dissociar os sentimentos dos objetos. Repetia, como mantra, que coisas são só coisas. Coisas são só coisas. Coisas são só coisas. Fiz post-its com a frase e fui colando pela casa, mandando recados para mim mesma caso eu ousasse esquecer.

É incrível a quantidade de coisas que alguém pode acumular na vida. Cadernos da faculdade, da escola, enfeites de natal, os mosaicos que fiz com 12 anos… Absolutamente tudo foi pra pilha da reciclagem ou de doações. Quando estava satisfeita a ponto de sentir orgulho, pouco havia sobrado.

Nas semanas seguintes, deixei o Brasil em direção ao Uruguai num ônibus noturno, levando apenas o que havia considerado essencial — esta seria a bagagem que eu carregaria de um lado para outro em incontáveis rodoviárias e aeroportos.

Por algum tempo, pensei que tivesse dominado a arte do desapego com maestria. Não precisava de coisas e, inclusive, não precisava de casa — o mundo seria a minha casa. Não só reduzi o que eu tinha, mas também o que consumia, passando a questionar o desejo pelas coisas num exercício diário de observação.

Durante quase dois anos de constante viagem, desfrutei de uma aparente boa sorte. Minha bagagem nunca foi perdida, esquecida ou sequer extraviada.

Em fevereiro deste ano, porém, a sorte virou e tudo que eu carregava foi roubado de uma vez só. Fiquei sem documentos para provar que existo, sem dinheiro ou cartão para comprar comida, sem roupas para vestir e sem ter como continuar trabalhando. Consequentemente, planos foram suspensos e o futuro se tornou incerto. Meu mundo inteiro desmoronou pela repentina falta das coisas que eu havia dito tantas vezes serem somente coisas.

Naturalmente, o que se seguiu foi um desconforto e um desespero enormes. Logo eu, que tinha me desapegado de tanta coisa para poder viver esta vida, por que parecia que, agora que não as tinha, não podia seguir sem elas?

Nas semanas seguintes, em que fazer qualquer trabalho era impraticável, tive tempo para afundar no luto. Comecei a questionar a importância que eu tinha dado àqueles objetos. Para uma pessoa “normal”, eram poucas coisas. Mas exatamente porque era pouco, tudo era indispensável, cumprindo um determinado papel para me manter em funcionamento.

Embora eu ainda acredite que uma geladeira é uma geladeira, tive que admitir que a bagagem que me acompanhou por tanto tempo enquanto eu não tive endereço, ganhou significados múltiplos. Aquela combinação de coisas representava parte da minha casa, inclusive da minha estabilidade, duas abstrações relevantes. Quando a paisagem mudava, a língua era outra e eu mesma me deslocava de mim, ainda desfazia a mesma mala e conseguia me sentir em casa, tendo um apoio para os pés no fim do dia. Era um dos únicos confortos que eu tinha — mais ou menos 25kg que tornavam cada lugar que eu chegava um pouco mais meu.

O roubo é um choque por si só. Perder é neutro, é acidente. Mas o roubo implica violência, e a gente nunca espera receber violência gratuitamente. Me recuperar envolveu escutar a minha dor, sofrer o luto e chorar absolutamente tudo que eu precisava. Envolveu raiva, de mim e dos outros, porque violência é contagiosa. Envolveu o caos de não saber o que fazer, porque não há manual de como agir diante desse tipo de acontecimento. Envolveu escutar do mundo que a minha dor não era válida, afinal, coisas são só coisas e eu estava respirando.

Agora, pouco tempo depois, ainda estou me recuperando financeiramente num espaço que não é meu e sem planos futuros, mas todos os sentimentos pesados em relação a esse acontecimento em particular já foram embora. No meio da tempestade, escrevi que parecia que eu estava sendo testada. E agora vejo que, sim, estava. Problemas aparecem para testar, para nos mostrar o que realmente precisamos e o que não nos serve mais. Uma grande parte da minha vida e da minha história, que eu amava, foi roubada. Sem ela, tive espaço para refletir o quão importante ela era, e saberei tomar as devidas precauções quando encontrar a estrada de novo.

Deixar uma parte de nós partir não é fácil, ou poético, mas abre possibilidade para encontrar outras maneiras de existir. Dessa vez, tive que pedir e aceitar ajuda quando precisei dela, um recurso que até então eu não utilizava.

Hoje, vejo a vida em movimento como uma busca por independência e afirmação, um tipo de quero-ver-do-que-sou-feita. Tirando a tralha de cima, sou o que sobra quando todo o resto se vai. Mas só depois desse evento — o roubo — tive espaço para encarar o outro tipo de tralha que guardamos, a emocional. Passei a olhar para tudo que ainda guardo em mim, os significados e conceitos que atribuo, o que ainda não encontrou paz. Ainda vejo o mundo com as lentes muito embaçadas. A perda da bagagem doeu e me desestabilizou porque recentemente eu já tinha passado por algo muito similar, com as mesmas consequências: perder alguém querido sem aviso e estar do outro lado do mundo. E então voltar correndo e ter que lidar com o resultado. A ferida ainda estava aberta quando foi cutucada novamente.

Viajar por tanto tempo de um lugar a outro, sendo escolha ou não, é um exercício de resiliência e adaptação. Lidar com o novo demanda muita energia e atenção, e se você está carregando montanhas nas costas, a tarefa fica mais próxima do impossível do que do prazeroso. Em algum momento, é preciso parar e descarregar alguma coisa para poder continuar avançando. E quando você pensa sobre isso, fica muito evidente. Para chegar nos lugares mais altos e distantes, não dá para levar uma casa nas costas, seja ela literal ou figurativa. É preciso se tornar leve. E isso é infinitamente mais demorado e doloroso do que doar uma dúzia de pares de sapatos. Às vezes, vai ser preciso dizer adeus a quem você foi, às coisas que aquela pessoa tinha, às escolhas que ela fez, às pessoas que ela conheceu. Ou você paga o preço do excesso de bagagem, ou a deixa pra trás.

Esse texto começou a ser escrito meses atrás, mas só foi terminado depois que li o livro autobiográfico do Guímel Bilac, e então recebi o pedaço que estava faltando. Recomendo muito a leitura e deixo aqui meu agradecimento ao Guímel pelas reflexões que ele traz. Você pode saber mais sobre o livro aqui.

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