Pripyat, a cidade fantasma de Chernobil
Este é o segundo texto da série Chernobil. No texto anterior falei sobre os primeiros contatos com a cidade e visita a usina nuclear, que pode ser lido aqui.
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Por trás de uma catástrofe, esconde-se uma história humana. Era difícil acreditar que em meio aquele cenário tão florido, com o sol brilhando e pássaros cantando, em nada podíamos tocar. Tudo parecia estar no seu devido lugar. Foi essa a sensação que tive ao chegar em Pripyat, a cidade fantasma de Chernobil.
Pripyat: antes e depois do desastre
Pripyat fora projetada e construída para os trabalhadores da central nuclear e suas famílias com o objetivo de ser a cidade modelo da União Soviética. Hotéis, clubes com piscina, teatro, quadras de esportes, cafés, bares…Não é a toa que era para lá que mandavam grandes artistas e políticos internacionais e de lá que saíam as imagens do exemplo de cidade socialista.
A cidade existia há apenas 16 anos quando a população foi constrangida a evacuar. A princípio era apenas por 72 horas, mas a verdade é que daquele dia em diante a cidade modelo se tornaria uma cidade fantasma carregada de história e dor.
A seguir relatos de sobreviventes do desastre de Chernobil, retirados do livro Vozes de Tchérnobil — A história oral do desastre nuclear da autora Svetlana Alexijevich.
“Depois do almoço, começaram a anunciar pelo rádio que seriam feitas evacuações. Que nos tirariam da cidade por três dias, lavariam tudo e fariam as verificações. Ainda hoje escuto a voz do locutor: “evacuação das regiões mais próximas”; “não é permitido levar animais”; “reúnam-se próximo às vias”. Recomendavam que as crianças levassem os livros escolares. O meu marido enfiou numa pasta os documentos e as nossas fotos de casamento. A única coisa que levei foi um lenço fino, em caso de mal tempo…[…] O ônibus que nos levava parou à noite numa aldeia. As pessoas dormiram pelo chão da escola, no clube. Não havia mais onde se enfiar. E uma mulher nos convidou para ficar na casa dela: “Venham, vou fazer a cama. Pobrezinho do seu filho”. E outra mulher que estava ao lado a afastava de nós: “Você ficou louca? Eles estão contaminados”. — Nadiéjda Petróvna Vigóvskaia, evacuada da cidade de Pripyat.
“Todos estavam em silêncio no ônibus, olhavam pela janela. Os soldados pareciam não ser desse planeta, andavam pelas ruas com jalecos brancos e máscaras. “O que vai ser de nós?”, as pessoas perguntavam a eles. “Por que vocês nos perguntam?”, eles respondiam, zangados. “Perguntem ali, naqueles carros brancos, lá é que estão os chefes.” […] Ninguém acreditava que não voltaríamos mais. Não era possível que as pessoas não voltassem mais para casa. A minha cabeça girava e a garganta ardia.” — Kátia P., evacuada da cidade de Pripyat.
Em primeiro de maio de 1986, cinco dias após o desastre, pessoas de regiões próximas ao acidente foram incentivadas pelo governo a irem às ruas celebrar o dia do trabalhador, como forma de mostrar que tudo estava sob controle e ninguém corria perigo, apesar de ter sido o período de maior contaminação.
“Toda informação se tornava um segredo guardado a sete chaves para não “provocar pânico”. E isso durante as primeiras semanas. Justamente quando os elementos de vida curta emitiam a sua maior radiação, e tudo “irradiava”. Nós fazíamos relatórios incessantemente. Incessantemente. Mas não podíamos dar os resultados de forma aberta. Cassavam o seu título universitário e até a carteira do Partido.” — Marat Filíppovitch Kokhánov, ex-engenheiro-chefe do Instituto de Energia Nuclear da Academia de Ciências da Bielorrússia.
Neste mesmo dia seria inaugurado um mais novo complexo para a cidade de Pripyat: o parque de diversões. Ele nunca foi usado.
Hoje o que se vê é uma cidade parada no tempo: cartazes dos líderes da época, monumentos e símbolos comunistas; máscaras de gás jogadas ao chão; roupas, objetos e arquitetura de três décadas atrás; leitos de hospital, escola e casas saqueadas. E a natureza se revelando viva e tomando conta de todo o passado.
O inimigo invisível
Como temer o mal que não se vê? Como entender a guerra que acontecia diante dos olhos, de um dia para o outro? Onde estava o inimigo, afinal? Se as plantas continuavam a florir, as batatas a crescer e os animais viviam livremente? Andando pela cidade de Pripyat me pus a pensar: se para mim, que não vivi tudo isso, já é difícil acreditar que não se pode voltar a habitar este lugar que parece tão “normal”, imagina para a população na época, onde o acesso a informação era controlado pelo governo e o conhecimento sobre as consequências do desastre eram restritos? Como deixar tudo para trás sem nenhuma explicação?
Eu não estive na guerra, mas tudo isso me lembrou dela. Os soldados entravam nas aldeias e evacuavam as pessoas. As ruas das aldeias estavam cheias de carros militares: blindados, caminhões com lona verde, até tanques. As pessoas deixavam as casas na presença de soldados; e isso tinha um efeito deprimente, sobretudo nos que viveram a guerra. […] Todo o tempo, comparamos essa situação com a guerra. Mas podemos entender a guerra. O meu pai me falou sobre ela, eu li nos livros… Mas e isso, o que é? Na nossa aldeia deixaram três cemitérios: em um, descansam as pessoas, é o mais velho; em outro, os cachorros e gatos que tivemos de abandonar e que fuzilaram; no terceiro, as nossas casas. Eles enterraram até as nossas casas… — Ekaterina Fiódorovna Bobrova, evacuada da cidade de Pripyat
Além de soldados, o governo enviou engenheiros, médicos e cientistas para ajudar a combater a radiação, não com estudos e pesquisas, mas enterrando tudo o que viam à frente. Foi daí que nasceu o ditado: Contra o átomo, a pá.
De cima… Das alturas, a quantidade de máquinas era surpreendente: helicópteros pesados e médios. O MI-24 é um helicóptero de combate. O que se podia fazer com um helicóptero de combate em Tchernóbil? Ou com um caça MI-2? Os pilotos, todos eram jovens… E ali estavam, no bosque, junto ao reator, recebendo roentgen. Ordens! Ordens militares! Mas para que enviar até lá tamanha quantidade de gente para se contaminar? Para quê? Faltavam especialistas e não material humano. — Aleksandr Mikháilovitch Iassínski, policial.
Algumas pessoas se recusaram a deixar suas casas e muitas voltaram a habitar suas vilas meses após o desastre, grande maioria na Bielorrússia, onde vivem sem condições básicas, por ser uma zona de exclusão. Mesmo com toda a informação e estudos que se tem hoje a respeito, ainda é difícil para essas pessoas conceberem a ideia de um “inimigo invisível”.
Houve um tempo em que vivíamos felizes. Nos feriados havia canções, danças, acordeão. Agora parece uma prisão. Eu, às vezes, fecho os olhos e caminho pela aldeia… “Que radiação é essa”, digo a eles, “se as borboletas estão aí voando, e as abelhas zunindo? E o meu Vaska (gato) caçando ratos.” — Zinaída Ievdokímovna Kovaliénka, residente na zona proibida.
Pessoas de Chernobil
Muitos sobreviventes relatam o quanto ainda hoje é difícil voltarem a ter uma vida normal, já que carregam as consequências do desastre em suas memórias e em seus próprios corpos, como Yuri, um pianista que fugiu da cidade e ficou cego devido a exposição à radiação.
Você vive como uma pessoa normal. Uma pessoa comum. Assim, como todo mundo à sua volta: vai ao trabalho e volta para casa. Recebe um salário médio. Uma vez por ano, você sai de férias. Você tem mulher. Filhos. É uma pessoa normal! E de repente, de um dia para o outro, você se torna um homem de Tchernóbil. Um animal raro! Uma coisa que interessa a todo mundo, mas que ninguém conhece. Você quer ser como todas as pessoas, mas isso não é mais possível. Não há como voltar ao mundo anterior. Você passa a ser olhado de forma diferente. As pessoas lhe perguntam: “Lá foi tão terrível assim? Como foi o incêndio da central? O que você viu?”. Ou, por exemplo: “Você pode ter filhos? A sua mulher o abandonou?”. Nos primeiros tempos, todos nós nos tornamos raridades em exposição. A própria expressão “homem de Tchernóbil” até hoje funciona como sinal acústico. Todos giram a cabeça na sua direção. “Você é de lá!”. Esse foi o sentimento dos primeiros dias. Nós perdemos não a cidade, mas a nossa vida inteira.” — Nikolai Fomítch Kalúguin, residente de Pripyat e pai de uma criança morta em consequência da radiação.
“O meu filho estava no quarto ano e aconteceu de ser o único de Tchernóbil nessa série. Todos tinham medo dele, chamavam-no de “vaga-lume”, de “ouriço de Tchernóbil”… Eu me assustei de ver como a infância dele acabou tão rápido. — Nadiéjda Petróvna Vigóvskaia, evacuada da cidade de Pripyat.
Para Nikolai Prókhorovitch Járkovi, professor que viveu em Pripyat, o mundo se dividiu entre as pessoas de Chernobil e o resto dos homens: “eu sou bielorrusso, eu sou ucraniano, eu sou russo… Todos nos chamamos pessoas de Tchernóbil. Nós somos de Tchernóbil, eu sou de Tchernóbil. É como se fôssemos um povo à parte… Uma nova nação…”
A importância das vozes
A sensação de estar pisando em um lugar como Pripyat foi surreal e demorou quase um ano até eu conseguir digerir a experiência. Não por ver uma cidade abandonada — não fora a primeira vez— mas pela história por trás de cada detalhe.
Em muitos momentos não consegui registrar com a câmera o que via, uma espécie de invasão da vida de alguém que eu nem conhecia, nem sabia se continuava viva. Era estranho ver pessoas batendo fotos em frente à casas abandonadas com uma pose feliz, como se tudo aquilo não passasse de um passeio turístico. (Tive a mesma sensação ao ver o muro de Berlim).
Nasci quatro anos após o desastre, pouco ouvi sobre ele e até então tudo parecia muito distante. O livro Vozes de Tchérnobil é importante para entender a experiência através dos relatos de pessoas que viveram a tragédia, que ainda vivem na zona, que perderam pessoas queridas, que trabalham até hoje em torno disso. São transcrições de mais de 10 anos de entrevistas, sem alterações ou intervenções. É como se cada pessoa estivesse falando diretamente com você. Recomendo aos que se interessam pelo assunto, àqueles que pretendem visitar Chernobil e àqueles que já tiveram a oportunidade. Para que essa viagem não se torne apenas mais um item a riscar da sua lista.
“Para que um acontecimento se torne história são necessários uns 50 anos. Mas nesse caso, as marcas ainda estarão quentes.” — Svetlana Alexijevich
Para finalizar, deixo aqui o clipe do Pink Floyd gravado na cidade de Pripyat com imagens de antes e depois do desastre (a partir de 2:30):
Nos próximos relatos: vida selvagem em Chernobil, floresta vermelha e Duga-1: o radar de mísseis da guerra fria.
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