Brasil, 2030, Aeroporto

Letícia Magalhães
Fale com Elas
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5 min readDec 18, 2020

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Imagem via Pexels

Cada dia era mais uma exigência para desembarcar. Primeiro, rezar agradecendo pelo bom voo, pelo bom pouso. Daquele ritual, nem os estrangeiros escapavam. A brasileira, vendo a estrangeira confusa, foi tomada pela empatia e aconselhou, em inglês: “Just move your lips. They don’t know the difference”. Se não souber rezar em português, finja. Enquanto ela fingia, se lembrou da vez em que tentaram canonizar Santos Dumont para rezar para ele antes da decolagem e depois do pouso, mas desistiram da ideia depois que ouviram rumores sobre o porquê de ele nunca ter se casado. Parecia piada, mas era coisa séria naquele Estado teocrático.

Antes de sair do avião, colocar a máscara, já inclusa no pacote de viagem, estampada em verde e amarelo com os dizeres “Deus, Pátria e Família”. Para quê era a máscara mesmo? Era por causa da poluição das queimadas constantes ou já era época do surto anual de gripezinha? No fundo, nem importava mais. Colocar a máscara era outro ato mecânico de quem desembarcava no Brasil.

Depois, inspeção do celular. O QR Code dava acesso a vinte anos do seu histórico nas redes sociais. O que você fazia há dez anos? Declarava-se antifascista no Twitter? Então era melhor nem pensar em entrar, ou iria direto para o campo de concentração retroativo — porque pagar pelo que você fez no passado é justo, menos para os torturadores da ditadura. Ah, ditadura, não: revolução anticomunista, como a novilíngua portuguesa ensinava. Se você só fazia dancinhas do TikTok há dez anos, pode entrar, o Brasil te espera.

Mas não sem antes passar sua bagagem pelo raio-X, ao lado do qual ficavam dois militares armados com fuzis. É só roupa, calçado, produto de higiene mesmo? Tem certeza de que não tem nada perigoso? Nada subversivo… tipo um livro? E esses remédios na bolsa de mão, para que são? Não tem nenhuma proscrita pílula do dia seguinte não, né? Não? Pode passar.

Um parênteses: a pena para quem fosse pego com algum produto proibido variava. Se o produto pudesse ser usado para infanticídio intrauterino, o pior crime segundo a lei bíblica brasileira, era cadeia na certa, com salas de tortura em cujas paredes invariavelmente havia um quadrinho escrito: “direitos humanos são só para humanos direitos!”. Se fosse um produto menos nocivo, a multa começava em 10 mil doletas. Fazia tempo que o dinheiro deixou de ser o real. Quando a mudança aconteceu, a maioria da população ainda nem havia conseguido ter uma nota com lobo-guará na carteira. Agora, a nota e o animal já estavam extintos. Fecha parênteses.

Mais essa agora: levavam as mulheres que desembarcavam para um exame de urina compulsório. Muito estranhamento no primeiro dia em que implantaram a medida. Mulheres se entreolhando confusas. Seria uma nova doença, diagnosticado pela urina? Seria um novo dado importante a ser coletado e inserido no banco de dados governamental? O tipo sanguíneo já vinha registrado no cartão do cidadão (de bem), talvez fosse algo semelhante.

Ela nem imaginava para que era a urina. Não queria mais imaginar, queria descansar. Já havia se preocupado demais ultimamente. Primeiro, só descobriu o que estava acontecendo porque conhecia muito bem o próprio corpo. Era mulher à moda antiga — em 2030, jeito errado — porque as meninas não conhecem mais seus próprios corpos, e em geral ficam olhando, mais pasmas do que maravilhadas, para o que vai acontecendo. Agora os médicos não explicam mais o quadro clínico para as pacientes. Deve ser por causa daquela nova disciplina introduzida nos cursos de medicina: a objeção de consciência.

Depois, o sufoco para ter acesso à informação. Todos os sites sobre o assunto, inclusive internacionais, estavam bloqueados pelas operadoras móveis. Precisou fazer um malabarismo tecnológico para acessar um site, ainda assim por poucos minutos antes que a conexão caísse.

Conseguiu os contatos, e sair do país foi um novo desafio. Para ela já era comum andar com o atestado de óbito do pai e o do marido, que se foi antes que ela cumprisse a obrigação de lhe dar ao menos dois filhos homens. Era uma mulher sem dono, e ao apresentar aqueles dois documentos que comprovavam seu status ela invariavelmente recebia olhares sinceros e preocupados, cheios de pena. Tão nova e tão sozinha!

Mas ela nunca fora sozinha. Se tivesse sido, não estaria naquela situação. Mas não era possível mudar o passado, por isso ela seguiu em frente, agora sim sozinha, para sua primeira viagem para o exterior. A liberdade que sentiu ao pousar e caminhar em outro país era inebriante. Foi ao hospital, foi bem tratada, tudo tão diferente, pôde respirar melhor, aliviada. Infelizmente, tinha de voltar.

O resultado do exame de urina saía ali mesmo, em poucos minutos. Era tudo tão rápido, e as outras mulheres da fila eram liberadas sem entender muita coisa, mais incomodadas pela demora para concluir a viagem do que com a exigência do exame em si. Quando ela esperava o resultado, ouviu um burburinho. As mulheres da sala de coleta se exaltavam, procuravam entre a papelada, usavam os celulares. Em cinco minutos, chegou um daqueles militares armados. Apontaram para ela, gritando “assassina”. Não era possível, ela pensou. Nadou, nadou e morreu na praia.

Crime de lesa-pátria, do tipo aborto. Foi ao exterior descartar um bem do Estado brasileiro: um feto em cujas pequenas veias e artérias corria sangue tupiniquim. Precisavam pensar bem no que fariam com ela. Pena de morte? Talvez, é sempre boa opção, evento que sempre atrai muita gente. Um espetáculo que diverte os homens e dá um recado para as meninas e mulheres, parideiras daquele curral supostamente “abençoado por Deus”: seu útero e tudo que um dia estiver contido nele são propriedade do Estado e das igrejas. Mas e se ela virar mártir para aquelas feministas nojentas, que teimam em ainda existir, apesar de toda a perseguição? Melhor uma presa a mais, porém anônima, do que uma morta famosa? Quer saber? Melhor deixar o caso dela para a cúpula religiosa maior decidir.

Mas uma coisa era certa: do aeroporto até a cadeia ela deveria ser levada arrastada, berrando. Ela foi arrastada, mas não expressou nenhuma emoção. Alguns diriam que ela estava em choque. Ela tinha a serenidade de quem sabe que não fez nada de errado, mas teve o azar de nascer no lugar e na época em que ficou decretado que a vida (aquela digna de ser protegida) começa na concepção e termina no nascimento.

Lutemos para que, daqui a dez anos, este conto permaneça sendo apenas ficção.

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