Empatia deveria ser ensinada no curso de Medicina

Letícia Magalhães
Fale com Elas
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6 min readNov 29, 2019

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(Imagem: Pexels)

A prepotência de parte da classe médica não conhece limites, em especial no tratamento das mulheres. É o uso de diminutivos infantilizantes — como “mãezinha” para a paciente grávida -, é o procedimento que não é bem explicado ou sequer mencionado, é a vontade que não é atendida. Casos recentes estão aí para provar que “empatia” deveria ser matéria obrigatória logo no primeiro semestre do curso de Medicina.

Segundo dados da Defensoria Pública de São Paulo, a maioria dos denunciantes em ações de aborto é composta de médicos e enfermeiros — e essa realidade deve se repetir nos outros estados, como é possível perceber quando analisamos notícias sobre mulheres presas por tentativa de aborto. Isso significa que os profissionais de saúde que atenderam ou presenciaram uma mulher em um dos momentos mais difíceis de sua vida são os principais responsáveis por fazer valer uma lei machista, conservadora e que só criminaliza mulheres.

(Imagem: Reprodução / Twitter)

Ao denunciarem a mulher que tenta um aborto, o médico hipócrita descumpre o milenar juramento de Hipócrates, que em um de seus trechos diz: “Aquilo que, no exercício ou fora do exercício da profissão e no convívio da sociedade, eu tiver visto ou ouvido, que não seja preciso divulgar, eu conservarei inteiramente secreto.” Entretanto, alguns preferem fofocar a seguir o velho mestre Hipócrates.

O sigilo médico também é regulamentado pelo Conselho Federal de Medicina. Segundo este órgão, há apenas dois casos em que o sigilo pode ser quebrado: quando o paciente ou o Conselho autorizarem a quebra expressamente (em geral por escrito) ou quando houver uma situação que coloca em riscos a sociedade ou terceiros — como em casos de maus-tratos de crianças e adolescentes ou quando há perigo de infecção e epidemia.

E há mais: o artigo 73 do código de Ética Médica diz:

[…] na investigação de suspeita de crime, o médico estará impedido de revelar segredo que possa expor o paciente a processo penal.”

Em geral, o que leva um médico ou enfermeiro a denunciar quem tenta o aborto não é o desconhecimento do regimento da própria profissão, mas sim a falta de empatia. E, infelizmente, são relativamente poucos os médicos com alguma empatia – muitos escolheram a profissão por status, não por vocação nem por vontade de ajudar pessoas.

Os que denunciam pacientes não têm empatia. São incapazes de se colocar no lugar delas e imaginar: e se fosse comigo ou com alguém que eu amo? Porque uma mulher que tenta o aborto não é uma vagabunda, é uma desesperada, e viu no aborto sua única solução. Se um médico não consegue ser humano no momento de maior desespero de um paciente, para que então vai exercer a profissão?

Um médico que pratica violência obstétrica não tem empatia. Caso seja homem, é machista e antiquado. Caso seja mulher, é uma pobre coitada reproduzindo um machismo que prejudica a ela também. São médicos que precisam se colocar no lugar da paciente, que acaba de ver aquele que seria o mais bonito momento de sua vida se transformar em um filme de terror, com consequências dolorosas, física e psicologicamente, que durarão muitos anos.

Muitos médicos mentem e assustam as gestantes para que elas façam cesárea (Foto: Carla Raiter)

Recentemente, uma resolução do Conselho Federal de Medicina praticamente autorizou a violência obstétrica ao configurar que, se uma mulher grávida se recusar a fazer qualquer procedimento exigido pelo médico, ela poderá ser processada por “abuso de direito”. Tal tutela só existe sobre os corpos de crianças e pessoas com doenças mentais, incapazes de decidir o melhor para si mesmas. O grupo das gestantes acaba de ser adicionado à lista de incapazes — e mesmo com pedido de explicação do Ministério Público, o Conselho Federal de Medicina não se manifestou e a resolução, por enquanto, se mantém.

E há ainda os médicos com zero empatia e imensa vontade de destruir a vida das mulheres. São os médicos que, quando se veem com uma paciente em processo de abortamento espontâneo, reviram vagina e colo do útero atrás de comprimidos abortivos, e chegam a exigir uma endoscopia para ver se a mulher ingeriu algum abortivo — tudo isso antes mesmo de estancar o sangramento e fazer a dor parar. Há mais de um relato sobre essa prática, e uma necessidade urgente de estes profissionais reverem suas prioridades: querem ajudar pessoas ou encontrar provas criminais? Ah, não podemos nos esquecer de que esses atos investigativos e abusivos durante o processo de abortamento também configuram violência obstétrica!

Quem nunca foi ou conhece alguém que foi atendido por um médico que mal olhou na cara do paciente? Sim, entendemos que nem todo profissional está feliz todos os dias, que problemas às vezes interferem no desempenho profissional, mas a empatia deveria prevalecer na profissão que mais lida com o ser humano. Como este médico gostaria de ser atendido? É assim que ele deveria atender seus pacientes.

(Imagem: Pexels)

Ora, em alguns casos os médicos podem dizer que houve objeção de consciência para negar um tratamento — mas não deveriam. Crenças pessoais e religiosas não deveriam se sobrepor à empatia entre seres humanos. E, mais do que isso, a objeção de consciência não deveria ser usada em casos que ela não existe: por exemplo, quando um médico se recusa a colocar DIU em uma paciente repetindo a fake news de que é um método microabortivo (algo que sequer existe).

Falamos novamente de aborto porque é onde reside o problema principal: mesmo se a prática for descriminalizada, o que provavelmente não acontecerá em um futuro próximo, a existência de médicos sem empatia impedirá as mulheres de exercerem suas escolhas reprodutivas. Os médicos continuarão se negando a praticar o aborto e a indicar contraceptivos e a mulher muito provavelmente terá de recorrer aos velhos métodos abortivos, pois hoje, com poucas exceções em que o aborto é permitido, já vemos médicos se recusando a atender vítimas de estupro e mães cujos fetos têm malformações graves — isso quando não humilham estas mulheres durante o atendimento.

Nos primeiros meses de 2019, um caso na Argentina chocou o mundo — mas ele bem que poderia ter acontecido no Brasil. Na província argentina de Tucumán, uma menina de 11 anos engravidou após ser estuprada pelo companheiro da avó, de 65 anos. Junto com a mãe, a menina pediu a interrupção da gravidez quando já contava com 16 semanas de gestação. No caso dela, o aborto era assegurado duplamente por uma lei de 1921: ela tinha direito ao aborto por a gravidez ser resultante de estupro e por colocar a vida da menina em risco, uma vez que ela apresentava pressão alta. Mesmo assim, as autoridades postergaram o procedimento por sete semanas, durante as quais a menina foi xingada no hospital, ameaçada e hostilizada, e o arcebispo da província organizou uma vigília com um grupo de “guardiões do feto” para rezarem no hospital, incomodando ainda mais a menina. Finalmente, após oito pedidos de interrupção da gravidez e duas tentativas de suicídio, a menina chegou às 23 semanas e a única saída era fazer uma cesárea. E mais uma vez o horror: todos os médicos do hospital se recusaram a atendê-la, e foi necessário chamar médicos de outros hospitais para operar a menina. Em um caso em que a lei estava do lado da vítima de estupro, médicos, enfermeiros e autoridades civis e religiosas torturaram uma garota de 11 anos por semanas simplesmente porque não tiveram empatia.

A nova caça às bruxas já existe — e as vítimas, mais uma vez, são todas as que têm útero. Só que, desta vez, os inquisidores não usam batina, mas muitos deles usam jaleco.

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