Ginga, Antônio Pitanga

O povo brasileiro em três filmes do cinema nacional

Gabriel Araújo
Fale de Cinema
12 min readJul 31, 2018

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Ana Branco / Agência O Globo

Capoeirista mental. Aquele que sempre se armou mentalmente para enfrentar os desafios do cotidiano com a força do intelecto, nunca do braço. Assim Antônio Luiz Sampaio, conhecido nacionalmente como Antônio Pitanga, um dos atores-mestres do cinema brasileiro, define-se a si mesmo. Sua filha, a também atriz Camila Pitanga, complementa, no documentário Pitanga (Brasil, 2017), de Beto Brant e da própria Camila: “Dá para vencer na defensiva: não precisa entrar com o golpe, mas com o contragolpe”.

Nesse ginga compassado, misto de conhecimento, malandragem e constante resistência, Pitanga se insere naquele filme que lhe iria batizar: Bahia de todos os santos (Brasil, 1960), primeiro longa-metragem de Trigueirinho Neto. Conhecer José Telles de Magalhães, o assistente de direção do filme, a partir da experiência de Antônio no teatro mambembe de periferia, certamente foi uma ajuda. Foi o assistente que apresentou Pitanga à Trigueirinho Neto. O ator, que iria apenas fazer a figuração do longa, acaba arriscando um teste e conseguindo um dos papeis principais. Lucro para o cinema brasileiro. Pois do personagem Pitanga à constituição do ator que adotou o sobrenome, enumeram-se mais de cinquenta filmes representativos de toda uma história do cinema nacional — e de personagens que, uns menos, outros mais, acabaram representando aquele 70% do corpo social brasileiro que, segundo Paulo Emílio Gomes, eram abandonados “ao deus-dará em reservas e quilombos de novo tipo”.

Gomes, importante historiador e crítico cinematográfico brasileiro, concorda com as estatísicas divulgadas pela imprensa da segunda metade do século passado sobre o corpo social do país. Enquanto “toda a vida nacional em termos de produção e consumo que possam ser definidos envolve apenas trinta por cento da população”, os demais setenta encontram-se marginalizados tanto na sociedade como no cinema. Afinal, a produção cinematográfica nas primeiras décadas dessa arte no Brasil sempre esteve ligada às classes mais abastadas do país, quando não vinculadas ao imigrante que aqui se instalava e desenvolvia uma indústria.

Não é exatamente o perfil desses realizadores que muda com o movimento do Cinema Novo, experiência que se inicia na década de 60, imortalizada pela recorrente frase de Glauber Rocha: “uma câmera na mão, uma ideia na cabeça”. Pitanga, cuja carreira se inicia durante o Cinema Novo e tem nele a sua maior potência, também demarca a importância do período. Em entrevista à equipe da revista Cine Cachoeira, o autor reflete sobre como a experiência era o produto de uma época: “todas as vertentes da cultura brasileira estavam convergindo como afirmação de uma identidade”. A identidade buscada? A do povo brasileiro, complexo e diverso, multifacetado e multirracial.

É questionável saber se tal representatitividade foi plenamente encontrada e identificada nos filmes produzidos no período — afinal, o Cinema Novo não deixou de ser marcado pela alteridade com que seus diretores, homens de uma elite intelectual, representavam os personagens criados. Mas é certo dizer que havia naquela época um desejo por um cinema de emoção, autoral, que buscasse na simplicidade do povo brasileiro, seja o homem sertanejo, seja o homem periférico, a força de histórias que lhe dissessem respeito e consideração.

Talvez por isso Glauber Rocha vá buscar no negro pescador de xaréu a inspiração para a sua história, em seu primeiro longa-metragem, Barravento, um dos únicos filmes litorâneos da filmografia do baiano. Numa aldeia de descendentes negros escravizados, pescadores explorados pelos comerciantes da região, Antônio Pitanga, interpretando Firmino, o negro que vai à cidade e retorna com um diploma, tenta incutir uma consciência de classe entre aqueles que seriam os seus iguais. Contudo, o filme é um dos curiosos casos em que a estética subverte o roteiro: ao passo em que Firmino chega com um discurso de conscientização política e rompimento com a tradição, com intuitos revolucionários misturados ao seu jeitão de malandro, as cenas e a montagem do longa evidenciam a força e a beleza da cultura afro-brasileira na região, enquadrando rituais de candomblé, jogos de capoeira e cantos do mar com respeito e exaltação.

O atabaque que dita o ritmo do trabalho pesqueiro, comandando os passos dos homens que puxam a rede do mar, também será decisivo para a montagem do filme, fragmentada a ponto de se tornar uma clara homenagem à Serguei Eisenstein e ao cinema soviético. Nessa sucessão de cortes nos é apresentado o protagonista, a princípio, um branco ponto distante numa praia de rochedos. O personagem é o único do filme que se veste com um terno alvo, contrastando, já no visual, radicalmente com os outros pescadores do litoral, constantemente com o negro torso nu.

Firmino

Essa diferenciação pela roupa cria sentido na narrativa. Por ser provavelmente o único da região com estudos — como o próprio Firmino diz numa cena, a maioria dos pescadores são analfabetos — existe entre o protagonista e os moradores daquela vila uma distância que não foi prevista por Firmino inicialmente. Vê-se aqui duas facetas desse povo brasileiro que pretendemos identificar: os pescadores arraigados em sua cultura tradicional, que têm consciência da opressão que sofrem, mas não dispõem dos meios para subertê-la; e o chamado “negro liberto” interpretado por Pitanga, que numa busca inclusive desrespeitosa por convencimento, acaba sendo taxado como baderneiro e incoveniente.

Um momento do filme expõe essa desavença com precisão. E é importante ressaltar que, embora o longa não siga uma narrativa fluida e clássica, essa sequência em específico contribui para a construção de um clímax que será desvelado ao fim do filme. Na cena, os pescadores tentam negociar uma rede nova com o patrão. Segue-se uma montagem em primeiro plano, filmada em contra-plongée e fragmentada a ponto de imprimir, na estética, o conflito que ali se desenrola. Tanto que o quadro se fecha em torno do rosto dos pescadores, pronto a captar suas expressões de angústia, revolta e desapontamento. A essa cena se sucede um longo plano fixo, enquanto os pescadores, um a um, saem de uma casinha com a rede rasgada nos ombros, prontos a consertá-la nas areias da praia. A paciência da composição, com a rede de pescadores aos poucos cruzando o quadro numa linha em diagonal, parece preparar a cena para a entrada de Firmino, sozinho num semelhante ângulo inclinado, bradando contra a ignorância daqueles trabalhadores.

O que a linguagem do cinema realiza, entretanto, é se perguntar: de onde efetivamente parte a ignorância? Do trabalho coletivo de homens que realmente ganham pouco com isso, ou das atitudes de um semelhante que, por possuir maior instrução, zomba e atrapalha a realização desse trabalho? Um questionamento apresentado e não resolvido por Barravento, que acrescenta e complexifica ainda mais a discussão sobre a inserção desse povo brasileiro nas telonas. Afinal, de que povo estamos falando quando há quem diga que Firmino não passa de um alter ego do próprio Glauber Rocha?

A composição evidencia a solidariedade e a união entre os pescadores, enquanto isola Firmino e suas atitudes em um plano paralelo

Em entrevistas, Antônio Pitanga costumeiramente ressalta a liberdade que ele possuía para construir seus personagens, uma falta de constrangimento que o dotava de um certo poder decisório na narrativa dos filmes em que atuava. Em Firmino, é certo que há Glauber na mesma medida em que há Pitanga, combinação de sucesso que garantiu a permanência do ator em muitos filmes do baiano e em diversos outros da época do Cinema Novo:

“A partir de Barravento, [Antônio Pitanga] se tornou o preferido de Glauber Rocha. Sua atuação, além de pensante, evidenciava muito o corpo, a ginga da capoeira, a dança. Pitanga é ator daqueles de sair às ruas para observar trejeitos entre o povo e não seguir estritamente o roteiro. A improvisação, claro, é muito estudada: tem noções de luz, maquiagem, câmera, iluminação. A partir dessa consciência total do filme (ou da peça) é que seu trabalho pode se tornar mais livre. Como ele diz: nesta época, aproveitando a experimentação que se fazia nos sets, os atores também ajudavam a construir os filmes — inventavam falas, combinavam cenas com os diretores de fotografia, saíam do script”, diz Paula Carvalho.

Essa liberdade também vai marcar a relação do ator com o cineasta Cacá Diegues, outro importante nome do período. E assim, do litoral baiano, Antônio Pitanga rumará para um engenho de cana-de-açúcar no nordeste brasileiro do século XVI, para tornar-se o personagem homônimo do filme Ganga Zumba, de Cacá, lançado em 1963. Se em Barravento a questão racial da sociedade brasileira está mais ligada à diferença de classe, fator totalmente intrincado ao nosso racismo estrutural, Ganga Zumba vai aos primórdios dessa sociedade e nos apresenta o negro ainda cativo, escravizado, mas em constante resistência. É a época de Palmares, quilombo de escravizados fugitivos da capitania de Pernambuco, e de Zumbi, seu mais famoso rei.

Porém, não é na majestade que o filme se inicia. É num brutal chicoteamento, narrado em omissão por meio das costas ensanguentadas de um escravizado e de um aparente lamento celebrado pelos outros cativos ao redor do tronco do castigo. Antônio Pitanga, aqui como Antão, é apenas mais um rosto comovido entre os diversos outros corpos negros que a câmera enquadra. Dessa apresentação em coletivo, proposta para também exaltar a importância dos outros personagens do longa, o filme vai gradativamente singularizando o protagonismo e a resistência escrava em torno da figura de Antão.

Para um escravizado nascido em cativeiro, de nada vale o sangue real. Por isso é interessante a escolha narrativa de construir o herói durante o filme, evidenciando como a coragem de Antão e dos escravizados que estão à sua volta é decisiva para a resistência que o longa pretende representar. Nisso, nas cenas na senzala antes da fuga de Antão, Anoroba, Salustiano e Cipriana se mostram fundamentais para o treino físico e mental daquele que viria a ser Ganga Zumba, rei de Palmares:

Num ambiente escuro, Pitanga joga capoeira com a câmera. Assumindo os olhares subjetivos do homem que o treina com uma vara e do próprio protagonista, o enquadramento acompanha a ginga do capoeira e nos insere dentro daquele ambiente, onde uma fraca fogueira consegue apenas iluminar o branco dos olhos e o contorno dos corpos presentes. É nesse cenário mal iluminado e apertado que Anoroba explica ao jovem Antão a necessidade da fuga e como ele está predestinado à luta pelo reino de Zumbi, já que “nenhum ferro pode tirar o sangue de rei que Olorum te botou nas veias”, como diz Salustiano, personagem interpretado pelo sambista Cartola.

Uma trajetória guerreira se delinea a partir desse breve treinamento, atingindo o seu ponto de virada no explícito chamado para a luta, derradeira cena próxima do fim do filme. Nela, Antão quebra a quarta parede cinematográfica e clama para que os personagens (e, por que não, os espectadores) permaneçam lutando, pois “tem muito homem como a gente que não quer ser bicho”. Além da linha narrativa entre as duas cenas comentadas, demarcando o início e o fim do desenvolvimento de uma personalidade, há também uma rima visual proporcionada pelo contato direto com o olhar de Pitanga. Aquele homem, malandro a princípio, meio desacreditado com o futuro, torna-se símbolo de uma resistência escrava e, posteriormente, é coroado rei de Palmares.

O olhar de Antônio Pitanga: da malandragem à revolta.

Mesmo que a luta pela liberdade seja o foco do filme, é importante valorizar outros momentos que apontam para a diversidade do povo brasileiro ali representado. Pois há também tempo para o amor e para o tesão, seja nos braços de Cipriana, inicialmente, seja nos de Dandara, depois. Há espaço para a divergência, exposta na figura do homem com quem Cipriana vai embora, que prefere continuar fugindo dos brancos a ir para Palmares. E há cantos, danças e rituais diversos, momentos que, assim como em Barravento, resgatam e exaltam a cultura afro-brasileira.

Pelo resgate dessa cultura negra e pela recorrência da temática da cor nos filmes mencionados, o crítico cinematográfico David Neves identificou em Barravento e em Ganga Zumba “as bases de uma modesta fenomenologia do cinema negro no Brasil”. Mas é engraçado que, por ora, consideramos em nossa breve discussão apenas os filmes de grandes dimensões, com grandes temas. Seja o drama histórico que gira em torno da construção de Ganga Zumba, seja a revolução proposta por Firmino numa pequena aldeia de pescadores. Estará o povo brasileiro fadado à luta?

Felizmente, o próprio Antônio Pitanga responderá com um forte e sonoro “nem sempre”, ao lançar, em 1978, o único filme dirigido por ele até o momento: Na boca do mundo. O longa resgata, na trivialidade cotidiana de um litoral carioca, um povo que também estende suas raízes entre doses de cachaça e uísque, toques de samba, amores picantes e infelidades e muito trabalho a se fazer. Embora caia em algumas representações estereotipadas e pouco profundas — Terezinha, por exemplo, acaba infelizmente caricaturizada na figura da mulata sedutora e ambiciosa –, Antônio Pitanga parece falar de si e dos seus com uma confiante naturalidade e jogo de cintura.

Antônio Pitanga, Sibele Rúbia e Norma Bengell

O longa, co-produzido pela Empresa Brasileira de Filmes S.A, a Embrafilmes, importante fomentadora do cinema nacional no período, apresenta um triângulo amoroso interracional. Antônio, interpretado por Pitanga, ama Terezinha, a mulata mencionada, personagem interpretada por Sibele Rúbia, e vive prometendo a ela que ambos irão deixar Atafona e buscar melhores perspectivas de vida na cidade grande. Contudo, com a chegada de Clarisse à cidade, a mulher branca em ritmo de desilusão, novas relações se estabelecem entre os personagens, presos entre relações de amor, ciúmes e ambição.

Antônio Pitanga: Estamos em qualquer lugar no centro da terra. Três figuras. Um negro, uma mulata e uma branca […] Eu quero discurtir esses três personagens do meu país no centro do universo, no Rio de Janeiro, numa cidadezinha do interior.

Ao se voltar para o cotidiano de uma vila pesqueira no norte do Estado do Rio, Antônio Pitanga abandona todas aquelas grandes temáticas a que nos referimos anteriormente. Aqui, sendo dirigido por ele mesmo, Pitanga converte-se num frentista de um pequeno posto de gasolina, num homem adepto às fortes bebidas, num mulherengo que sofre de amor. As palavras de Clarisse, narradas em off quando a imagem dos dois juntos no carro congela em cena, são precisas na descrição do personagem:

Um homem que não foi assaltado pelo delírio da civilização. Belo. Selvagem. Dorme quando tem sono, come quanto tem fome, bebe na hora da sede. Sorri quando gosta das pessoas. Se zanga quando é ofendido. Um ser estranho pra mim, que vive num mundo de homens sem alma. Bom selvagem.

Essa caracterização, central para o desenrolar do drama nesse triângulo amoroso, revela como o olhar da personagem vai romantizar a personalidade de Antônio, esculpindo-o à maneira do bom selvagem por quem ela se deixa apaixonar. De forma indireta, Antônio Pitanga estende essa interpretação a todos aqueles brasileiros que, romantizados exatamente por causa de sua simplicidade, acabam reféns de uma representação chapada e pouco complexa. Talvez por isso Antônio, o personagem, seja tão incoerente em suas ações. Ama Terezinha, ama Clarisse. Mente para ambas e diz não ter resistido à traição, ao passo em que alimenta os sonhos para o futuro de uma delas. É religioso e, por mais que tenha consciência de suas atitudes, aparenta possuir uma inocente personalidade.

Talvez por todos esses fatores o final se torna inesperado, ponto chave de virada para o destino do três personagens envolvidos. Quando as duas mulheres decidem, cada uma a seu modo e em momentos distintos, abandonar Antônio, as consequências são imprevisíveis. Pois enquanto uma o bate, outra o assassina. E assim as duas parecem tomar novamente as rédeas da própria vida e mostrar-se protagonistas dos caminhos que desejam seguir — embora Terezinha, paradoxalmente, continue seguindo os caminhos de outros, ao depender da iniciativa de Clarisse para buscar o sonho de viver na cidade grande.

Em 2017, Beto Brant e Camila Pitanga estrearam o documentário Pitanga, em homenagem ao pai de Camila e de Rocco, também ator, também presente no filme. No longa, o Pitanga pai transita entre os diversos personagens que compuseram a sua história dentro e fora das telas, conversando com as pessoas que fizeram parte de sua vida sobre os diversos momentos de sua rica trajetória como mobilizador do próprio cinema nacional.

Atualmente, Pitanga está em processo de captação de verba para realizar o seu segundo longa, “Malês”, uma história que retorna ao período da escravidão para retratar a revolta de escravizados muçulmanos na Salvador de 1835. Camila e Rocco Pitanga, Lázaro Ramos, Taís Araújo e Seu Jorge já são alguns nomes confirmados no elenco.

Aos 78 anos, Antônio Pitanga ainda é um importante nome para se pensar a historiografia do cinema nacional e a virada simbólica que culminou na representação do simples povo brasileiro em tela, num momento em que as condições de produção do cinema impossibilitavam a ascensão desse povo ao topo da hierarquia cinematográfica. Pitanga é um daqueles atores que, ao trabalhar com diversos diretores em inúmeros filmes, conseguiu imprimir um pouco de si a cada personagem e colaborar para uma construção autoral da sua representação. Numa junção de Firminos, Antões e Antônios — entre muitos outros não mencionados — colaborou para a permanência de um rosto com o qual boa parte da marginalizada população brasileira enfim conseguiu se identificar.

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Gabriel Araújo
Fale de Cinema

Abaeté na capoeira. Jornalista. Sonhador que encontra nos frames dos filmes motivo para divagação.