ZH Tablet, aposta e incógnita
O jornal gaúcho Zero Hora anunciou na última semana um novo plano para a distribuição de seu conteúdo: uma edição diária em tablet, exclusiva para assinantes, em formato derivado do jornal de papel. Na temporada de verão, o diário planeja testar a veiculação de uma edição adicional vespertina, só no tablet.
O modelo a ser tentado tem uma peculiaridade: assinantes podem escolher um plano de R$ 110 mensais e receber um Galaxy Tab E, já carregado com o aplicativo do jornal. A assinatura normal, que inclui a entrega do jornal-papel em casa, custa R$ 85, e a exclusivamente digital, R$ 25.
Por ora, o produto é definido como uma versão do jornal-papel em suporte digital, com algum bônus de conteúdo multimídia.
— Pesquisamos muito e entendemos que nossos leitores gostam de ler o jornal no formato do papel, mas não necessariamente com papel (Andiara Petterle, vice-presidente de jornais e mídias digitais do Grupo RBS)
O jornal vinha fazendo esforços interessantes e bem pensados em direção ao foco no digital. Os especiais característicos das edições de domingo são, hoje em dia, sempre acompanhados de conteúdo multimídia.
Um dos apontamentos do relatório de inovação do New York Times vazado no ano passado (íntegra aqui, em inglês) era de que a atenção dada ao impresso representava um problema para a adaptação da cultura de redação aos novos tempos.
Culture eats strategy for breakfast (Peter Drucker)
Com o lançamento de um produto novo diretamente derivado do papel, como reforçar internamente que a prioridade não é o papel?
Um dos méritos do projeto ZH Tablet é que, se bem executado, pode ser um passo em direção ao corte de edições no papel — mudando o hábito do assinante, que hoje espera o jornal todo dia em sua porta. Já mencionei anteriormente que o papel custa caro.
Mas essa proposta depende de criar uma boa experiência para o usuário. O público só vai superar o costume do papel se usar o tablet for claramente melhor. ZH Tablet precisa criar valor suficiente para fazer a troca valer a pena, e isso dá trabalho.
A segunda parte do anúncio foi a que menciona ZH Noite, uma edição extra exclusiva para tablets, às 19h. Lembra o finado O Globo a Mais, descontinuado sem muita reclamação em Maio/2015. ZH Noite aparenta ter o mesmo modelo, com a ressalva da distribuição de tablets aos assinantes.
N’O Globo, o projeto não deu frutos em termos de audiência e dinheiro, apesar de reconhecimento positivo no mercado. É difícil encontrar motivos para dizer que será diferente com Zero Hora.
O exemplo do La Presse+
Já falei que um dos maiores diários canadenses em língua francesa, o La Presse, cortou as edições de papel de segunda a sexta na esteira do sucesso da sua iniciativa nos tablets. Sem dúvida é um dos exemplos estudados por quem desenhou a ideia de ZH Tablet.
O La Presse, hoje, tem impressionantes 70% de sua receita vindo do lado digital. A transição ocorreu sem diminuição na equipe editorial, e com uma ampliação expressiva do staff de desenvolvimento. Essa equipe passou de 15 para 140. O investimento foi de C$ 40 milhões.
O La Presse+ foi lançado em Abril/2013, é gratuito e captura a mesma atenção que o jornal impresso nos seus tempos áureos: 44 minutos em dias de semana, 50 minutos em domingos e 73 nos sábados, o tradicional dia do jornal de fim de semana no Canadá, tudo isso com 453.957 leitores semanalmente (fonte aqui).
Onde estou querendo chegar?
A iniciativa de maior sucesso nos tablets vem de um publisher que, sabiamente, decidiu:
- investir alto em um produto novo, diferenciado e 100% adaptado à plataforma (e não ao que existia antes, o papel)
- adotar o modelo de negócio adequado, abrindo o conteúdo ao maior número possível de consumidores e aproveitando o grande potencial publicitário da plataforma para recuperar a diferença da falta de receita de circulação (um anúncio de meia página no La Presse-papel custa C$ 42 por mil leitores; meia página no La Presse+ custa C$ 68)
Essa aposta de 2013 não prejudicou a circulação e a receita do jornal impresso — pelo menos não mais do que as condições já estabelecidas do mercado.
Em 2015, o La Presse recebe o retorno do investimento na forma do corte das edições impressas diárias, o que reduz drasticamente o custo de operação; a entrada no promissor mercado da publicidade nativa, e o licenciamento de sua plataforma para o Toronto Star.
Conclusões?
- Zero Hora toma um passo importante na direção do fim da papel-dependência, mas só a qualidade do produto e a adoção por parte de uma massa crítica de consumidores ditará o sucesso da iniciativa
- Colocar a edição diária do jornal-papel novamente em posição de prioridade na rotina diária da redação pode ser um tiro no pé
- Entregar o tablet ao assinante é uma boa ideia
Fiz contato com a comunicação corporativa do Grupo RBS na sexta-feira, 6/11, buscando maiores esclarecimentos, mas não obtive resposta até a publicação deste post.
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