lana kantor
ficabem
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3 min readAug 6, 2018

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*Aviso de conteúdo sensível: suicídio; automutilação.

Amanhece.

Dia de céu branco, primeira impressão sem cortina.

O alarme toca. Deslizo a tela do celular em um gesto automático. Não cumpro os cinco minutos. Fito o teto. Poderia dizer que acordei, mas não que exatamente dormi. Desmaiei por três horas junto aos remédios e garrafas de cerveja que me fazem companhia na cama.

Mal lavo o rosto. Minha mãe chega de viagem hoje, mas atrasa. Vejo os ônibus saindo no aplicativo e a iminência do meu atraso no trabalho. Entro em desespero, ela não retorna as ligações e não conhece a cidade.

Encontro em uma faca de serra alívio no dorso da minha mão. O equivalente ao suicídio com uma faquinha de rocambole, nos meus termos. Ela chega, eu dou um beijo com os braços para trás e minto que tomei café da manhã.

Pego o ônibus, não reconheço as faces do horário habitual. Pinço meu fone carcomido por minha cachorra na bolsa bagunçada e tento ouvir qualquer coisa. Suspiro. Aquela tristeza toda é habitual, mas as lágrimas são frescas.

Bato o ponto olhando pra baixo. O negócio é seguir o operacional e continuar de fone. A internet cai. A saída é voltar para casa.

Entardece.

O céu está cinza, eu estou catatônica.

A cada parada de ônibus do caminho de volta, meu batimento cardíaco acelera. Coloco a cara para fora da janela para tentar respirar. Certamente a busca por fôlego de alguém que cansou de produzir gás carbônico guarda um tom irônico.

Uma criança saindo da escola aponta da rua. Essa faixa etária foi sempre a mais cruel, mas usam a inocência como fiança.

Um mal de Parkinson súbito e precoce ao tentar ligar e pedir por ajuda. O suor nas mãos também atrapalha a digitação. Minha mãe me busca no ponto de ônibus, como quando eu era criança. Estamos em frente a uma igreja, e eu sou o Capitão Gancho que não acredita na Sininho ao tentar buscar conforto em qualquer imagem.

Sento na sarjeta, não consigo entrar em casa. O celular úmido ilumina mais uma fiança de aluguel negada. Minhas roupas me estrangulavam. Entro no banho e vomito água. A garganta arde. O dilema de uma limpeza inatingível.

Pulo o almoço e vou para a cama, o lugar quente para chorar, mas frio quando as lágrimas cessam. Começo a revelar o breve traço de autismo descoberto na infância. Estou sentada inclinando para frente e para trás, repetindo "me desculpa, eu não aguento mais. Eu não vou conseguir, me deixa ir."

Minha mãe pega na minha mão gelada e diz "você já conseguiu". Ela vai buscar uma água, mas consigo ouvir seu desespero a dois cômodos de distância.

Ela volta com uma água, vela e minha avó rezando no telefone. Recebo outra ligação. R$ 15 mil para colocar tudo em caixas e resignificar o que eu conhecia como casa. Aceito sem saber como vou pagar a conta de luz.

Anoitece.

O céu está preto, tenho cortinas.

Embalo tudo em caixas velhas de supermercado e sacos de lixo. O carreto chega e homens começam a esvaziar um sonho. Estou fraca, mas teimo em carregar o peso. A assinatura da minha própria sina, tentando sustentar um desespero independente.

Como um Subway, o mesmo que tentar devorar uma Havaianas. Viro a chave e tento forçar uma falsa sensação de conquista. A verdade é que já não sinto nada, embora chore muito e esteja a mercê de qualquer pensamento autodestrutivo.

Olho ao redor e não suporto a bagunça. Minha mente corre, e eu também, com uma faca. Subo no parapeito da janela. Penso na cena humorística que pode acontecer se pular do primeiro andar e cair na loja de sanduíche. A moça da loja perguntaria: qual pão, senhora?

Sou internada em um hospital psiquiátrico.

Mais tarde do que nunca, amanhece.

Este foi 2016 em um dia, carinhosamente conhecido como O Pior Ano da Minha Vida. O Sérgio Chapelin não estava disponível para fazer a retrospectiva.

Se você está com problemas, por favor, não hesite em procurar ajuda. O CVV tem atendimento 24h e você pode conversar com alguém com o telefone *144.

Também sempre estou disponível para conversar por email no lanakantor@gmail.com.

Este texto foi escrito para o Motriz.

Esta música (ajuda psiquiátrica, amigos e familiares) me trouxeram até 2018.

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