Meu ano como uma mulher louca

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5 min readAug 8, 2018
Debbie Lawson

O dia começa a raiar de uma noite vendo filmes dublados e garrafas de cerveja ao redor da cama. Meu namorado pergunta se estou feliz como se a resposta fosse óbvia. Assenti em silêncio. Difícil responder algo que não consigo controlar — ainda assim, tão cedo.

Vejo na TV constantemente o anúncio do hospital psiquiátrico que me abrigou por 8 dias. Narração de uma atriz global anasalada, um perfil mais Retiro dos Artistas.

São planos abertos de natureza, pôr do sol e poucos frames rápidos das instalações. Como uma cidade turística ruim que precisa se valer do que é bonito em qualquer lugar, como a natureza, para valer a passagem.

Algumas coisas feias têm a magia iridescente como mancha de gordura na poça na rua. Não é o caso.

Há cerca de um ano percorri o longo corredor e voltei à vida (?). Lembro das mulheres que conheci. Alertaram que o cotidiano nunca seria o mesmo e que todo mundo me olharia diferente.

Embora tivessem razão, nunca cruzei com elas novamente, mesmo em uma cidade exaustivamente comparada a um ovo. Circulando entre clara e gema em uma desigualdade social anunciada pelo relevo. Mas o mineiro trabalha em silêncio, então ficamos assim.

Falo da experiência e provoco riso por trazer um desconforto. “Isso eu não vi porque estava no manicômio”. Eles sorriem. Mudamos rápido de assunto.

Nas visitas, meu pai dizia que muitas pessoas deveriam estar ali. Olha só tanta gente estressada, tanta gente triste, tanta gente bebendo em dia de semana.

“Isso aqui era para estar cheio”. Aliviamos a história um para o outro posteriormente, em uma cerveja de terça-feira.

Sentada sozinha em casa, não é difícil duvidar da realidade assistindo a muitos noticiários. Muitos casos de abuso e feminicídio. Pergunto se algum dia eu virar estatística novamente, vão trazer a internação à tona.

Esqueço que deveria mentir para o DETRAN e meu psicotécnico tem a validade mais curta. Sinto que serei eternamente condenada por ter me permitido ser frágil e ainda assim, levantar uma bandeira no fim do dia.

Saio de lá pensando que pelo menos estarei preparada para um cenário Mad Max e comprometida a tirar minha carteira.

Traço um paralelo irresponsável com a falsa atribuição de um piloto que derrubou seu avião e tinha depressão e ansiedade diagnosticadas. Não posso exigir mais do que os 15 minutos que a psicóloga da clínica deu para atestar que poderia dirigir por aí, mas às vezes 15 minutos é tudo o que tenho.

Sou a prova viva do estigma e já não tenho mais como disfarçar.

É um discurso necessário, mas solitário. Conversamos, pessoas admiram minha coragem e ainda assim exigem sem querer uma força descomunal para que eu consiga responder uma mensagem privada sequer.

Temo ficar cada vez mais monotemática e ter perdido a permissão para sorrir.

Trocamos mensagens e corações, mas no fim do dia ainda sou eu vendo o enxaguante bucal que minha mãe comprou porque eu não tinha a energia ou dignidade o suficiente para escovar os dentes.

Ainda preciso romper o silêncio que mancha. Ainda sou a primeira a chorar em público e ser correspondida no privado. Porque disso não se fala, porque ainda pareço a adolescente rebelde na sala de jantar, embora o ar venha até os meus pulmões como se tivesse 77 anos. Mesmo que o conselho tenha que partir do meu lado e a mudança não exista do outro.

O que você diz para um jovem deprimido que não pode assumir sua sexualidade ou será expulso de casa?

Tomo dois calmantes naturais antes de dormir.

O cotidiano me engole novamente. Os dias são curtos, mas é preciso pensar a longo prazo para não desesperar.

Os remédios continuam caros. Vou e volto do psiquiatra. Eles riem comigo do inescapável. Tem ali um existencialismo intrínseco a quem é forçado a revirar e estudar a mente, e ainda assim continuar.

Apaixono-me pela imagem da minha janela, tem muito barulho e chove. Penso que é perigoso gostar de algo tanto assim. Minha ansiedade já adianta os gastos com pintura das paredes e reforma do chão antes de entregar o apartamento, a mais de um ano de distância.

Tenho medo de pensar em felicidade e estragar tudo porque trouxe isso à minha mente, sujeita a estatística de voltar aqueles quartos em 80% (American Psychiatric Association, 2000; Kupfer, Frank, & Wamhoff, 1996; Post, 1992). Agarro-me aos 20 restantes porque porcentagem nunca foi o meu forte, ainda mais que meu aniversário é sempre um dia antes das eleições.

Compartilho textos, anseio por conversas profundas, estudo e concluo que saúde mental não é só desabafo, sinto muito e vai ficar tudo bem.

Demanda mudanças que vão além disso. Algumas mudanças que não tenho o tempo, poder e energia para fazer agora, mesmo um ano depois.

É por isso que escrevo, para que qualquer pessoa que leia lembre que além dos números e teclas surpreendentemente difíceis de pressionar, que essa discussão é maior do que as fotos de banco de imagens com uma mulher de pijama no canto do quarto em preto e branco, das dificuldades relacionáveis em pensar muito em responder um “tudo bem?”, curso de mindfulness, ou da consulta de R$ 200/h.

Mas é de saúde pública, de como lidamos com relacionamentos, com trabalho, economia e com os laços que nos prendem como sociedade.

Se temos 300 milhões de pessoas deprimidas (que deram nome aos bois/OMS) e incapacitadas, quem vai sair da cama amanhã? Quantas páginas de notícias vão cobrir o suicídio de um artista famoso? Uma lástima, uma lástima.

Conexão cura, mas quem está disposta a fazê-la sem preconceitos?

E o primeiro passo não é necessariamente responder, mas ouvir.

arte de imposer.tumblr.com

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