“Pecado Mortal”: 100 capítulos, tiro, porrada e bomba
Um dia “Pecado Mortal” será lembrada como uma das grandes novelas de nossa teledramaturgia
As inúmeras qualidades (e os poucos defeitos) de “Pecado Mortal”, novela da Record que chegou ao 100º capítulo, podem ser vistas em vários textos já escritos nesse espaço:
- Uma estreia mortal — no bom sentido: análise da estreia da novela, arrebatadora;
- “Pecado Mortal”: ainda dá tempo de aproveitar a melhor trama da TV: em 15 capítulos, a trama já dava mostras de que seria uma das melhores produções da Record;
- “Pecado Mortal” é a prova de que qualidade não é quantidade: perto do capítulo 40, disse que “Pecado Mortal” é a novela mais incompreendida da TV, tamanha qualidade frente à baixa audiência — porém, uma audiência fiel;
- Números não definem o sucesso — ou o fracasso — de uma obra: um texto, já perto do capítulo 80, que fala sobre a megalomania de que algo só é sucesso se der altos números no ibope. Destaco um texto de Ricardo Feltrin sobre a novela. Ele diz: “ A verdade é que, se fosse exibida na Globo, “Pecado Mortal” estaria sendo tratada hoje como o suprassumo das novelas”. Uma grande verdade.
A trama chega ao centésimo capítulo depois de enfrentar turbulências incomuns à maioria das novelas. Colaboradores do autor Carlos Lombardi foram trocados, o diretor geral Alexandre Avancini deixou o cargo para se dedicar a outras produções da emissora, a atriz Mel Lisboa (que faz a personagem Marcinha, foto ao lado) pediu para sair da novela por projetos no teatro (gerando desconforto nos bastidores), e, a mais arriscada turbulência, ter o horário de exibição antecipado das 22h30 para as 21h15. A mudança de horário soou como descaso da emissora, algo do tipo “jogar a toalha”, enfrentando as primeiras semanas de “Em Família”, novela das nove da Globo que também está mal das pernas. E antes, a Record — meio que ciente do erro — planejou um “resumão” dos 90 primeiros capítulos na primeira semana em que concorreu com “Em Família”. Foi cancelado de última hora.
Esses problemas não se refletiram na audiência, que manteve-se fiel. “Pecado Mortal” marca em torno de 4 a 6 pontos de média, o que é pouco dado o investimento que a Record fez na novela (só lembrar das chamadas: “a nova super produção da Record”). O que agrava a situação é o fato de a novela ficar, ainda mais com a antecipação de horário, em terceiro lugar. Pouco, muito pouco para uma das melhores novelas exibidas nos últimos anos.
Aliás, a audiência é extremamente cativa, que interage com o autor no twitter como se estivessem em uma sala de estar, tamanha a cumplicidade e fidelidade em admirar a trama. São muitos os elogios, são poucas as críticas.
É bem verdade que “Pecado Mortal” reúne o que Carlos Lombardi faz de melhor — e que já fez em tramas da Globo: roteiro ágil (se perdeu algo, está literalmente perdido) e ácido, cumplicidade entre irmãos, mulheres fortes e teimosas, e, menos importante, a famigerada fama de que o autor só põe “descamisados” em suas novelas. Uma bobagem que desmerece toda a obra do autor. Junte esses ingredientes a uma trama ambientada nos anos 70 (!), nos morros cariocas (!!) e a transição do jogo do bicho para o tráfico de drogas (!!!). “Street life!”, como diz a música de abertura — tão boa quanto a novela.
Em “Pecado Mortal”, cada capítulo reserva uma surpresa que pode mudar, muito ou pouco, os rumos da história. Foram raros os capítulos que só serviram de passagem. O riso com os personagens é sincero, o choro é de emoção pura, a raiva é de acelerar o coração.
Junte a isso atuações incríveis de Fernando Pavão (o herói Carlão), Simone Spoladore (a linha-dura, porém doce, Patrícia), Paloma Duarte (Doroteia deveria virar protagonista de série: charme e poder em pessoa), Vitor Hugo (fez de Picasso um demônio), Jussara Freire (primeiro me vem à cabeça o xingamento de “vaca!”, depois o nome, Donana), Betty Lago (Stella), Luiz Guilherme (Michelle, um mafioso à brasileira), e tantos outros, fez — e fazem — de “Pecado Mortal” uma novela memorável.
A direção de Alexandre Avancini — que “importou” a mesma qualidade vista em “José do Egito” — deu cara à novela, fotografia marcante, enquadramentos não convencionais, cortes rápidos. Tudo isso graças às potentes cãmeras Arri Alexa, presença comum em grandes produções americanas.
Uma pena que o telespectador brasileiro não comprou a ideia. “Pecado Mortal” foi, sem tirar nem pôr, tiro, porrada e bomba. Sangue nos olhos. Jogo do bicho e tráfico. Samba e cocaína. Sangue e comédia. O que, pelo menos a este que escreve, é a receita ideal para uma boa novela.
Obrigado, Carlos Lombardi, por proporcionar o fino da nossa teledramaturgia.