Jovem Guarda, nos tempos da Timbolina (pt. 3) — Minha Fama de Mau, o filme

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7 min readMay 3, 2020

Vi e revi esses dias o Minha Fama de Mau, filme inspirado na biografia de Erasmo Carlos que retrata a juventude do cantar-compositor e um pouco da parceria dele com “o rei” Roberto Carlos. Aluguei pelo Google Filmes. Vi num sábado e revi no domingo já que a locação dura só 48 horas.

Bom filme. É pop e direto ao ponto, como as músicas do Tremendão. Tem um ótimo trabalho de pesquisa histórica e cenografia. Ficou pouco tempo em cartaz. Quando tentei ver, já tinha saído das salas de cinema.

A produção acertou demais com o uso de legendas de história em quadrinhos, que o Erasmo é fã, com a música pop americana no contexto do subúrbio tijucano de meados do século XX. É a parte que eu mais queria ver numa telona após ler a biografia do Erasmo: Bill Haley, Tim Maia, Neil Sekada, faroeste dos cinemas, rua do Matoso, Lívio, brilhantina (ou timbolina), Arlênio, Elvis Presley… e por aí vai.

Senti falta a menção aos cinemas da Tijuca, fundamental para formação pop do nosso popstar. Também não há cenas e nem mesmo menção ao Bar do Divino, point da galera que viria criar o iê iê iê.

Apesar de franzino, Chay Suede está bom como o Tremendão, inclusive na forma como canta as músicas. Gabriel Leone faz um “Roberto Carlos da Malhação” bonitão e carismático. Malu Rodrigues adota bem os trejeitos da Wanderléia, mas, em tempos de representatividade, tem um visual muito “nórdico” pra quem é filha do “seu Salim”.

E todos elogios a Vinicius Alexandre, que retrata bem demais o Sebastião Maia, um adorável e sensível pau no cu tijucano. Ele conseguiu fazer a cena mais timmaniana de toda história da cinegrafia mundial quando pega o 1o compacto com o nome do Erasmo estampado como autor de Splish Splash, acho. Não percebe esse detalhe, vê o compacto do futuro rei da Jovem Guarda, do qual cultivou certa rivalidade, e parte logo pro: “Roberto não canta nada”.

Todos eles aparecem brevemente no trailer abaixo:

Outras aparições: Bruno de Luca como Carlos Imperial, Isabela Garcia é a Dona Diva, mãe de Erasmo. Paula Toller interpreta os Fuxicos da Candinha, uma coluna impressa com fofocas e invenções sobre o mundo pop daquela época e que na verdade era escrita por Imperial e Erasmo.

É interessante ver as diferentes versões do JGCU — Jovem Guarda Cinematic Universe em contraste com a MCU e DCU, das editoras de quadrinhos Marvel e DC. No filme do Tim Maia, Imperial foi interpretado pelo Luis Lobianco, Tim Maia pelo Babu Santana e Robson Nunes, Roberto Carlos pelo George Sauma (de uma forma bem caricatural, nível quase Tim-Maia-está-pregando-uma-peça) e o Erasmo por Tito Naville. Veja aqui as fotos do elenco. Como vai ser num eventual filme do Roberto, Wanderleia, Jerry Adriano e outros? Teria sido massa demais se mantivessem o mesmo elenco.

O filme usa e elenca várias referências da carreira de Erasmo Carlos. Anotei algumas e com certeza perdi várias. É bacana a maneira como escolheram fazer isso, usando como pano de fundo e detalhes de cena para construção de cenário e não de forma extremamente didática e redundante. No começo do filme um vídeo de arquivo mostra os bondes andando nas ruas do Rio de Janeiro e, mais tarde, Erasmo pega um ônibus com Roberto para o Lins (Lins-Urca). Essa cena diz duas coisas: o começo da transição do meio de transporte da antiga capital do Brasil, de trilho para o automotivo, e a época que Roberto Carlos morava no Lins de Vasconcelos, subúrbio da cidade.

Há vários nomes e referências elencados por Imperial e Erasmo no programa de rádio ligados ao Tremendão e à Jovem Guarda. Alguns deles: Renato e seus Blue Caps, Demetrius, Rosmeire, “garota papo firme” (em referência à Waldirene), Cleide Alves, Eduardo Araújo (“eu sou o bom”) e vários outros. Já no programa Jovem Guarda durante a música Festa de Arromba aparecem várias referências aos artistas do movimento, como Jerry Adriani e até o Wilson Simonal (que trafegava entre a galera do iê iê iê, desde a época que se reuniam no Bar do Divino, na Tijuca, e o pessoal da Bossa Nova). Nos créditos pipocam vários personagens que eu não identifiquei, como os Golden Boys e Billy Blanco.

Uma outra menção ao conjunto Renato e seus Blue Caps, conjunto onde Erasmo foi crooner, é quando o Tremendão e Wanderléia cantam Devolva-me, de Renato Barros. A música ficou famosa foi na voz da dupla Leno e Lilian e, mais tarde, na excelente versão melancólica de Adriana Calcanhoto.

Certa vez, vi uma conversa do Renato, antes do show com os Blue Caps. Ele contou que, na época que a versão da canção pela Adriana Calcanhoto, contou pras filhas que ele era o autor da música. E elas não acreditaram de início. Após a fase áurea da Jovem Guarda, Renato acabou focando na carreira de produtor, mas mantendo a banda em funcionamento. Parece que é a banda mais longeva do pop mundial.

Algo a se notar é a menção à palavra Juventude no filme. Ela englobava todo esse movimento de rock e cultura pop que estava sendo criado para atender os jovens na sociedade após a Segunda Guerra Mundial. Lembra quando o padrasto de Erasmo insistia pra ele encontrar um emprego, qualquer que fosse? Era o movimento natural da sociedade, que não enxergava uma transição entre as crianças e a fase adulta de uma pessoa, e só levava em consideração o sentido utilitarista da época. Erasmo e amigos tiveram alguns violões apreendidos por policiais que os acusavam de vadiagem. Quem ficava na rua fazendo música era considerado malandro. Acontecia demais com os sambistas.

Outra coisa que quero destacar são os negros do filme. Não sei como era na pensão que Erasmo vivia, mas o movimento Jovem Guarda era formado principalmente por artistas brancos. A presença de pessoas negras no filme, amigos, transeuntes e vizinhos de pensão, pode ser uma forma de contrabalancear essa branquitude, mas também mostrar que os fãs e as fãs da Jovem Guarda eram principalmente do subúrbio, que sempre contou com mais miscigenação e presença na sociedade que na Zona Sul.

Só uma memória para ilustrar isso: durante uma época que trabalhei numa gráfica rápida no Rio de Janeiro, tive dois clientes com nomes curiosos. Um era o Erasmo Carlos e o outro era o Ronivon. Ambos negros retintos. Imagino que o pai do primeiro fosse fã do Tremendão e que a mãe do segundo fosse fã do “príncipe”, como ficou conhecido o Ronnie Von.

Nesse último caso, até comentei com que “dizem que havia uma rivalidade entre o Roberto Carlos e o Ronnie Von” e, ao abrir o pendrive dele para enviar alguns arquivos por email, vejo a foto do cliente com o “rei”. Bom, se há/havia a rivalidade entre o “rei” e o “Príncipe”, isso não acontecia com o Roberto Carlos e o Ronivon.

Certa vez estava no Imperator no show do Lafayette e os Tremendões, grupo que rememora e cria canções inspiradas na Jovem Guarda — a banda conta com Lafayette, o cara que deu “o som” do movimento com o uso do órgão Hammond. Não sabe do que estou falando? É só lembrar da canção Esqueça, dentre várias outras:

Durante o show perguntei pra menina do Caixa do bar se ela curtia as músicas (ou se era só coisa de saudosistas e pesquisadores). E ela, bem enfática: “Adoro! Conheço todas as músicas!”. Imagino que se fizesse essa mesma pergunta para uma garota da Zona Sul a resposta fosse diferente.

E há de se lembrar também sempre a presença de Getúlio Côrtes, o Negro Gato. Ele era o roadie, antes de inventarem esse nome para essa função, de parte da galera do movimento pré-Jovem Guarda. O Trio Ternura também chegou a participar do programa na TV Record, assim como os Golden Boys.

Voltando ao filme, Timbó, que dá o nome dessa série de textos Nos Tempos da Timbolina, aparece brevemente. E a jovem Beatriz é presença constante o filme inteiro. No início é uma menina que dança para os moradores da pensão. No final, ela aparece como uma normalista — garotas que estudavam no Instituto Educação ali na Tijuca, e fonte de desejo dos moleques (e alguns adultos) da região.

Normalistas e freiras. Fonte: https://www.colegioweb.com.br/curiosidades/o-que-e-normalista.html

O filme desanda um pouco quando Roberto sai do programa Jovem Guarda em busca de audiências mais sofisticadas no festival San Remo, na Itália. O que se segue é basicamente um Erasmo Carlos de fossa. Deve ter rolado isso, mas ele fez outras coisas além de ter sofrido uma baita dor-de-cotovelo. Na sua biografia, conta como conheceu outros artistas, se envolveu com outros estilos musicais. Cita, e gostaria de saber mais, sobre como o assombroso nível de qualidade e canção de um show do Milton Nascimento, já durante a ditadura. Era algo completamente diferente do que estava acostumado a vivenciar e consumir. A sensação de deslocamento retratada se deveu a algo maior do que o abandono por Roberto Carlos, como o filme dá a entender.

Mas a cena de reconciliação entre Erasmo e Roberto, com a canção Amigo, apesar de ser inventada, é muito bonita. Roberto na verdade mostrou a música durante uma viagem a Las Vegas.

Pra não estender mais essa análise, quero finalizar com as personagens da Bianca Comparato. Ela representa as facetas de várias mulheres que passaram pela vida de Erasmo. Durante a exibição da película somos apresentados à Sara, Lara, Clara, Samara… e o final do filme, quando a câmera enquadra Chay Suede e a Bianca Comparato entre dois coqueiros verdes, sabemos que, dessa vez, é a Narinha que aparece.

É uma bela maneira de terminar o filme referência linda a uma das canções que mais curto de Erasmo. E é com ela que termino esse texto:

Em frente ao coqueiro verde
Esperei uma eternidade
Já fumei um cigarro e meio
E Narinha não veio

Como diz Leila Diniz
O homem tem que ser durão
Se ela não chegar agora
Não precisa chegar

Pois eu vou me embora
Vou ler o meu Pasquim
Se ela chega e não me vê
Sai correndo atrás de mim

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