A sombra da Jurema

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6 min readJun 21, 2020

Clédisson Junior[1]

Resumo: O ensaio é fruto de um estudo etnografico realizado na Casa das Matas do Reis Malunguinho, terreiro de Jurema na cidade de Olinda no ano de 2018. Aprendi com os juremeiros que o Catimbó — Jurema liga-se a espécies de árvores encontradas no sertão nordestino. A jurema preta é utilizada na fabricação da bebida que dá nome a esse universo religioso, sua origem remonta a pajelança e ao toré, ambos regimes religiosos que fundamentam a estrutura indígena do sagrado.

Palavras chaves: catimbó, tradição, confluência, Jurema-Sagrada.

The shadow of Jurema

Abstract: The essay result of an ethnographic study carried out at Casa das Matas do Reis Malunguinho, a Jurema terreiro in the city of Olinda in 2018. I learned from the jurmeiros that Catimbó — Jurema is linked to species of trees found in the northeastern hinterland. The black jurema is used in the manufacture of the drink that gives name to this religious universe. Its origin goes back to pajelança and toré, both religious regimes that underlie the indigenous structure of the sacred.

Key words: catimbó, tradition, confluence, Jurema-Sagrada.

[1] Doutorando em Ciências Sociais, Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade — CPDA/UFRRJ
Bolsista Capes
cledissonjunior@gmail.com
https://orcid.org/0000-0002-2324-1646
http://lattes.cnpq.br/9566512449043417

Na “Casa Das Matas do Reis Malunguinho”, terreiro de Jurema Sagrada localizado em meio aos casarões seculares da cidade de Olinda (PE), busquei apreender a partir da convivência com o seu zelador, afilhados e demais praticantes do Catimbó — Jurema, seus modos de experimentar os processos de reinvenção da vida a partir do Sagrado, a resiliência dos seus praticantes frente às transformações impetradas pela contemporaneidade, os agenciamentos humanos e não humanos frente às disputas ontológicas capitaneadas pelo racismo religioso e pela modernidade capitalista e em especial sua relação com o território.

Walter Benjamin nos ensina que o limiar é uma zona, uma área relacionada à mudança, à transição e aos fluxos, diferenciando-se rigorosamente da noção de fronteira. Podemos compreendê-lo como uma zona conectora, uma zona do “entre”, um local tanto impreciso quanto reservado à imprecisão. Ele não se inscreve dentro de uma lógica binária, do isso ou aquilo, mas refere-se a algo que é, ao mesmo tempo, isso e aquilo, caracterizando-se por um tipo de tensão próxima à figura do paradoxo. É um espaço de deslocamento, de flutuações. Território destinado à dúvida, à incerteza, assim como às desterritorializações (BARRETTO, 2018).

A confluência da tradição religiosa africana e indígena se deu quando os negros fugidos dos engenhos onde se encontravam escravizados foram abrigados nas aldeias indígenas, e/ou no encontro dos indígenas com os negros nos quilombos onde através desse contato, ambos trocavam o que detinham de conhecimento Os africanos contribuíram com o seu conhecimento sobre os eguns e sobre as divindades da natureza, os orixás. Já os indígenas contribuíram com o conhecimento sobre invocações dos espíritos de antigos pajés e dos trabalhos de cura realizados com os encantados das matas e dos rios.

A jurema sagrada hoje da continuidade ao que, anteriormente, era chamado de catimbó por intelectuais e pelas forças repressoras. Uma religião de origem indígena, mas que abrigou desde cedo os negros que traziam, em suas origens africanas, o culto aos antepassados (AYALA, 1987).

Os juremeiros instauram o devir como o regime político do religioso por meio de um processo antropofágico em busca da complementariedade. É essa ontologia que permitiu a permanência de uma religião indígena desde a chegada dos europeus no século XVI, aos dias de hoje. A Jurema não é mais encontrada somente entre as etnias indígenas ou no sertão nordestino, mas está também nos centros urbanos, ela foi e é constantemente ressignificada por aqueles que a vivenciam.

A Jurema Sagrada é um projeto societário em construção, um projeto que articula em seu interior e para fora dele à luta por território e garantia de direitos, um projeto societário refratário à modernidade/colonialidade. A Jurema Sagrada é insurgência politica e desobediência epistêmica (MENDONÇA, 2013).

A tradição negra e a indígena são culturas de encruzilhadas, culturas de sincopes, rebeldes e insubmissas. A encruzilhada, locus tangencial, é o lugar radial de centramento e descentramento, intersecções e desvios, texto e traduções, confluências e alterações, influências e divergências, fusões e rupturas, multiplicidade e convergência, unidade e pluralidade, origem e disseminação.

A potência da Jurema Sagrada se encontra no desvio, na dobra, sua ciência é resultado de séculos de conhecimentos produzidos nas frestas do mundo, sua manutenção e sobrevivência se dão na reinvenção do viver, em sua capacidade de adaptação, de remontagem, sua batalha não se dá em campo aberto, sua tática é a guerrilha.

Referências:

BARRETTO, Isadora de Vilhena. Voares de incerteza, voares pela incerteza — um estudo sobre a relação entre memória e limiar. Dissertação de mestrado — Programa de Pós-Graduação em Memória Social — Centro de Ciências Humanas e Sociais — Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2018.

AYALA, Marcos e AYALA, Maria Ignez Novais. Cultura popular no Brasil. (perspectivas de análise). São Paulo: Ática. (Princípios: 122), 1987.

MENDONÇA, Caroline Farias Leal. Insurgência política e desobediência epistêmica: movimento descolonial de indígenas e quilombolas na Serra do Arapuá. (Tese de Doutorado — UFPE) Recife, 2013.

SANTOS JUNIOR, Clédisson. Território Encantado: O Devir Quilombola e a Cosmopolítica Afro-Indígena brasileira. Dissertação de Mestrado — Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural — Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2019.

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