Berenice e Lu em arquivos de cinema

Fotocronografias
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7 min readApr 30, 2020

Ana Claudia França[1]

Resumo: Neste ensaio, a partir de imagens de arquivo, apresento fragmentos das trajetórias de Berenice Mendes e Lu Rufalco, cineastas paranaenses. São documentos coletados nos acervos da Cinemateca de Curitiba e da Documenta Produções Cinematográficas. Minha intenção, além de evidenciar a presença de Berenice e Lu no circuito cinematográfico dos anos 1970 e 1980, é destacar a materialidade dos arquivos e a relevância dos seus fragmentos, que oferecem pistas sobre histórias do cinema e de mulheres.

Palavra-chave: História do Cinema. Mulheres no cinema. Arquivos de cinema.

Berenice and Lu in Film Archives

Abstract: In this essay, by using archive images, I present fragments of Berenice Mendes and Lu Rufalco’s trajectories as filmmakers from the state of Paraná, Brazil. The documents were collected at the archives of the Cinematheque of Curitiba and Documenta Produções Cinematográficas. The intention of this essay, in addition to highlighting the presence of Berenice and Lu in cinema during the 1970s and 1980s, is to emphasize the relevance of these archives and their fragments, as they offer great insights in the history of women and film production industry.

Keywords: History of Film. Women in Film. Film Archives.

[1] Na Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR) é professora no Departamento Acadêmico de Desenho Industrial (DADIN) e doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Tecnologia e Sociedade (PPGTE). Atualmente é pesquisadora visitante na Universidade de Barcelona (UB) e o presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamentode Pessoal de Nível Superior — Brasil (CAPES) — Código de Financiamento 001.
oianafranca@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/5511666385207029
https://orcid.org/0000-0002-8174-1446

Meu primeiro contato com Berenice e Lu foi por recortes de jornais, numa pasta de arquivo suspenso identificada por uma plaquinha verde: Cineastas PR — MENDES, Berenice. Foi no setor de documentação da Cinemateca de Curitiba, no qual recortes de notícias estão distribuídos em pastas temáticas organizadas pelo nome de quem ocupou, sobretudo, a prestigiosa função de direção cinematográfica, como é o caso de Berenice. A pasta de Berenice parece ter deixado de ser preenchida na década de 1990, talvez no mesmo ritmo que o jornal impresso perdeu espaço na cidade. Também encontrei uma pilha de fichas preenchidas com máquina de escrever, um conjunto de folhas soltas intitulado “Catálogo de Realizadores Paranaenses — 1988”.

Entre aqueles dias revirando pastas em papel kraft e o meu encontro com Berenice e Lu, passariam meses. Foi só então que pude acessar o arquivo da Documenta Produções Cinematográficas, a produtora que Berenice e Lu fundaram na década de 1980. A Documenta guarda hoje rolos de negativo, fitas em vídeo, roteiros, storyboards, cartazes, recortes de jornais e revistas. Na ocasião do nosso encontro, não foi possível explorar esse vasto acervo. Entre cigarros e uma xícara de café e outra, a maior parte do tempo foi ocupada por uma longa conversa, a partir das muitas perguntas que eu tinha a fazer. No entanto, não pude deixar de notar a dimensão física e o potencial histórico do inventário de memórias de Berenice e Lu, do qual apresento aqui apenas fragmentos, junto a documentos coletados na Cinemateca.

Berenice e Lu se conheceram na Faculdade de Direito, na Universidade Federal do Paraná. Era final da década de 1970 e alguns cineclubes serviam não apenas para projeção de filmes, mas para debates políticos, em um período no qual o Brasil vivia sob a ditadura civil-militar. “O Encouraçado Potemkin, mil vezes!”, brinca Lu, para contar que juntas organizaram muitas sessões de cinema pelo movimento cineclubista. Logo se aventuraram pelos cursos práticos da Cinemateca de Curitiba. Nas aulas ministradas pelo cineasta carioca Noilton Nunes, o interesse de Berenice e Lu pelo cinema ganhou potência, iniciando uma trajetória de parcerias, com Berenice na direção e Lu na produção. Juntas, realizaram filmes como Atenção Realidade (1979), Como sempre (1980), Comunidades Rurbanas (1982), O Foguete Zé Carneiro (1984), Londrina (1985), A Classe Roceira (1986) e Vítimas da Vitória (1994).

Percorro então as imagens deste ensaio, detendo-me em alguns detalhes. Em uma fotografia, Berenice e Lu estão nos bastidores de produção de Atenção Realidade, durante o curso da Cinemateca, uma das experiências que mudaria o rumo de ambas. O Serviço de Censura de Diversões Públicas concedeu classificação “livre” para o filme infantil O Foguete Zé Carneiro. Já o material de divulgação, feito à mão, visando a produção de cópias mimeografadas, tem uma chamada política e subversiva para o momento, “embarque nessas diretas!”. Em uma das imagens é Berenice quem concede entrevista à televisão no dia do lançamento de A Classe Roceira, sobre o movimento sem-terra no Paraná, no Cine Groff. No fundo da fotografia, uma figura feminina rodeada por tentáculos. É o cartaz do filme Possessão, de 1981. Pelos jornais descubro também que Berenice é libriana com ascendente em Áries e usa óculos escuros em muitas das fotografias. A “morena mignon” é também “firme e segura”, na opinião de Aramis Millarch. Soa desconcertante a ênfase masculina de Lélio Sotto Maior Jr., para quem Berenice “é um dos poucos curitibanos a ter uma visão estrutural de cinema”, ao mesmo tempo que elogia sua caligrafia cinematográfica glaubereisenteiniana. Há destaque para sua liderança, Berenice foi fundadora e presidenta da seção paranaense da Associação Brasileira de Documentaristas. O Drama da Fazenda Fortaleza seria o primeiro longa de Berenice e Lu, um drama épico de amor, vingança e traição, orçado em 700 mil dólares. Apesar de não ter chego às filmagens, mobilizou muito trabalho (elenco, cenários, figurinos, locações, cerca de 600 storyboards!). Na primeira página do roteiro, à lápis está o endereço da Documenta Produções Cinematográficas, Rua Carlos de Carvalho, 2015. A foto de Berenice e Lu, com uma ampla paisagem ao fundo, foi feita durante uma visita à região dos Campos Gerais, um dos cenários sonhados para o filme. Lu, na opinião de Francisco Santos, foi da “nova geração de cineastas paranaenses” quem “levou a atividade de produção a sério”. “Mulher, cineasta…simples, não?” é o título de um artigo de 1996, com uma pergunta que ecoa por todo o conjunto.

Além de manchas do tempo, os documentos contêm traços importantes sobre a presença não apenas de Berenice e Lu, mas de outras cineastas, jornalistas e artistas. Há, no entanto, uma ausência maior de registros sobre mulheres nos arquivos públicos, o que Ana Simioni e Maria Eleutério (2018, p. 22) apontam como “um índice dos diferentes modos como as mulheres participaram das diversas esferas da vida social de um país”. Por isso, em diálogo com Rachel Soihet (2014, p. 78), entendo que “a abordagem biográfica pode, enfim, ajudar a restituir a multiplicidade das experiências femininas, a multiplicidade de maneiras como vivem seus constrangimentos, a multiplicidade de caminhos que trilham para se afirmar como indivíduos plenos”. É no cruzamento de documentos e de longas conversas que tenho buscado reconstruir as experiências de trabalho de Berenice e Lu no cinema. Com disposição, é possível encontrar nas margens de arquivos indícios de quem eram e o que fizeram as mulheres no cinema brasileiro.

Referências:

SOIHET, Rachel. Discutindo biografia e história das mulheres. In: FUNCK, Susana Bornéo; MINELLA, Luzinete Simões; ASSIS, Gláucia de Olveira (Orgs). Linguagens e Narrativas: Desafios Feministas. Tubarão: Ed. Copiart, 2014.

SIMIONI, Ana Paula Cavalcanti; ELEUTÉRIO, Maria de Lourdes. Mulheres, Arquivos e Memórias. REVISTA DO INSTITUTO DE ESTUDOS BRASILEIROS, v. 71, p. 19–27, 2018.

Vol. 06 num. 11 -2020- Imagens Feministas ou Feminismos em Imagens

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