O jabá de Ogum

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7 min readJun 21, 2020

Lucas Marques[1]

Resumo: O ensaio é centrado na oficina de José Adário dos Santos, mais conhecido como “Zé Diabo”, um ferreiro e pai-de-santo que há mais de 50 anos produz as chamadas ferramentas de orixás, artefatos pertencentes às religiões de matriz africana que, após uma série de gestos técnicos e rituais, se tornam as próprias entidades materializadas. Através de imagens de movimentos e gestos técnicos, busco captar o processo criativo agenciado por Zé Diabo: o processo de criação de uma nova força, um Orixá.

Palavras-chave: candomblé; ferramenta de orixá; foto-transe; cosmotécnica.

The work of Ogum

Abstract: The essay focuses on the workshop of José Adário dos Santos, best known as Zé Diabo, a traditional blacksmith and father-of-saint that has been making ferramentas de orixás (orisha tools) for more than 50 years. These artifacts belong to the Afro-Brazilian religions, and after a series of technical gestures and rituals, they materialize the entities. Throughout images and technical gestures, the essay seeks to capture the creative process assembled by Zé Diabo: a process of creation of a new force, an Orixá.

Keywords: candomblé; afro-brazilian religions; photo-trance; cosmotechnics.

[1] Filiação Institucional: Doutorando em Antropologia Social (Museu Nacional/UFRJ)
https://orcid.org/0000-0001-8145-8301
http://lattes.cnpq.br/9811620783172902

Este ensaio fotográfico[2] é uma tentativa de capturar as linhas de interação e movimento acionadas na oficina de José Adário, localizada na Ladeira da Conceição da Praia, em Salvador, Bahia. José, mais conhecido como “Zé Diabo”, é um ferreiro e pai-de-santo que há mais de 50 anos produz as chamadas ferramentas de orixás, artefatos pertencentes às religiões de matriz africana que, após uma série de gestos técnicos e rituais, se tornam as próprias entidades materializadas. No ensaio, busco explorar a oficina de Zé Diabo como um território atravessado por forças, ritmos e materiais distintos, percorrendo as diversas formas de relação estabelecidas com os materiais e as forças que os habitam. Através das imagens, tento captar o processo criativo agenciado por Zé Diabo: um processo vital de criação de uma nova força que passa a vir ao mundo, um Orixá.

No terreiro é que se faz o Orixá, aqui é o jabá de Ogum” — me alertava Zé Diabo, sempre que buscava me explicar a sua atividade na oficina. “O jabá é o trabalho com o ferro”, costumava complementar, “mas o ferro já sai daqui uma outra coisa”. A palavra que ele utilizava para descrever seu ofício sempre foi algo que me intrigou muito. Em geral, ao descrevê-lo como um jabá, ele se referia não apenas ao processo técnico-material da construção das ferramentas de orixás, mas também a todo o processo energético que envolvia essa atividade. Jabá, para Zé, é o trabalho de Ogum, mas também pode ser visto como uma espécie de “dom”, ou melhor, de caminho para se trabalhar com o ferro. É o caminho de Ogum: o poder de transformar o mineral em uma ferramenta, em “algo mais”.

Ogum, no candomblé, é o orixá do ferro, dos conhecimentos técnicos e da guerra. Toda a produção deve passar pelo caminho de Ogum — por isso ele é também o senhor dos caminhos. Segundo Zé Diabo, “Ogum é tudo o que há. Tudo tem que ter Ogum. Toda ferramenta carrega Ogum, o jabá de Ogum. Não se pode fazer nada sem ele”. Todo ferro, assim, carrega a energia desse orixá — e o ferreiro, através do caminho de Ogum, é o maestro dessa orquestra de ritmos, gestos e forças. O processo de transformação desse ferro em uma ferramenta de orixá, mais que meramente técnico, é um processo de canalização de forças (de axé) naquele material, através de gestos técnicos, materiais e movimentos ritmados: no martelar do ferro na bigorna, na serra, na fumaça presente na forja, na solda ou nas baforadas de charuto (cf. Marques, 2018). Mais que forma e conteúdo, matéria e energia, ser e devir, o que parece estar em jogo nesse processo de criação são as forças e suas composições. É por isso que, na África Ocidental — de onde esse conhecimento certamente veio –, o ferreiro é intrinsecamente relacionado à figura do feiticeiro, e sua atividade, a forja, é sagrada, análoga ao nascimento (cf. Childs & Killick, 1993). Trata-se , para utilizarmos um termo proposto pelo filósofo chinês Yuk Hui (2017), de uma outra cosmotécnica: outro modo de se relacionar com aquilo que chamamos de “técnica” — de natureza, de matéria ou de transformação. É essa, creio, a verdadeira arte praticada por Zé Diabo: uma arte da criação de vida, de “algo mais” — algo que escapa à concepção ocidental de arte, e que, na maioria das vezes, escapa às tentativas de incorporação de sua arte no espaço público, em mostras de arte ou exposições[3].

É essa arte, o jabá de Ogum, que busco “captar” nesse ensaio fotográfico. Por isso, meu foco aqui não são nem os “objetos” (as ferramentas de orixás) nem o “sujeito” da ação (o ferreiro), mas sobretudo os processos, os movimentos e interações: cortar, martelar, soldar, desenhar, montar. Entre materiais e gestos, busco analisar o modo como as forças preenchem a oficina e são ali transformadas. Me inspiro naquilo que Claudine de France (1983) chamou de “análise praxeológica”, um método de investigação das formas de ação (das técnicas) onde o dispositivo de captação de imagens (a câmera) é articulado à própria ação técnica, permitindo, a partir da interação rítmica, perceber os encadeamentos gestuais da ação. Mas para capturar esses processos cosmotécnicos é preciso algo mais: deixar que a fotografia possa ser afetada por essa “outra coisa” que permeia a oficina de Zé Diabo. Jean Rouch (1975), inspirado nos fenômenos de possessão que ele tanto filmou, propôs o conceito de “cine-transe” para lidar com esses processos de interação entre a câmera e o que está sendo filmado. É esse mesmo tipo de inspiração que permeia esse ensaio: tornar a câmera partícipe desse processo de interação e movimento e, através das imagens, do enquadramento, das cores, da textura e do movimento, evocar a força que atravessa os materiais, os gestos, o ferreiro e a própria oficina. O jabá de Ogum.

[2] Parte desse ensaio foi exibido, com algumas modificações, na exposição principal do Prêmio Pierre Verger da 29º Reunião Brasileira de Antropologia, em 2014, ocorrida na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), em Nata-RN.

[3] A obra de Zé Diabo já participou de diferentes mostras fotográficas e exposições artísticas, apesar de nunca ter recebido o devido e merecido reconhecimento (financeiro e artístico). Suas peças estão espalhadas por museus como o Museu Afro Brasil, em São Paulo e o Museu Fowler, na Califórnia. É interessante pensar como essas obras são apropriadas e agenciadas nesses locais, mas isso já é papo para outra conversa.

Referências

CHILDS, Terry; KILLICK, David. “Indigenous African Metallurgy: Nature and Culture”. Annu. Rev. Anthropol. N.22, pp.317–337, 1993

FRANCE, Claudine de. “L’analyse praxéologique: composition, ordre et articulation d’un procès”. Techniques & Culture. 54–55 v. 1, pp. 223–241, 2010 [1983].

HUI, Yuk. “Cosmotechnics as Cosmopolitics”. e-flux jornal. n.86, 2017

MARQUES, Lucas. “Na oficina do Diabo: ritmos, sinergias e transformações na ferramentaria de orixás na Bahia”. In: Carlos Sautchuk. (Org.). Técnica e transformação: perspectivas antropológicas. Rio de Janeiro: ABA Publicações, p. 350–375, 2018

ROUCH, Jean. “The Camera and Man”. In: Paul Hockings (org). Principles of Visual Anthropology. Nova York: Mouton de Gruyer, pp. 79–98, 2003 [1975]

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