Um Toque para os Encantados

Fotocronografias
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6 min readJun 21, 2020

Kauã Vasconcelos[1]

Resumo: Esse ensaio busca apresentar um festejo realizado para os caboclos no município de Soure, Ilha de Marajó (PA). O toque é realizado em dos muitos terreiros dedicados as práticas da Mina ou Umbanda, expressão religiosa que envolve a relação entre seus praticantes e espíritos também conhecidos como encantados.

Palavras-chave: Religiões de matriz africana; encantaria amazônica; Ilha de Marajó.

A Beat for the Encantados

Abstract: This essay seeks to present a celebration held for the caboclos in the municipality of Soure, Ilha de Marajó (PA). The beat is performed in one of the many terreiros dedicated to the practices of Mina or Umbanda, a religious expression that involves the relationship between its practitioners and spirits also known as encantados.

Key-words: Anthropology of African-based religions; Amazonian encantaria; Ilha de Marajó.

Este ensaio foi realizado em Soure, município da Ilha de Marajó (PA), em julho de 2019. Ele acompanha um dos muitos festejos organizados pelos umbandistas e afroreligiosos da região durante esse período. As fotos foram tiradas na casa da mãe Ângela durante a festividade para sua cabocla Maria Mineira, realizada todo ano nessa mesma data, 19 de julho. A Mina paraense realizada na Ilha de Marajó tem forte conexão com as práticas rituais do Maranhão, principalmente com o interior do estado, sendo de origem codoense muitos dos caboclos que baixam para dançar, beber e festejar nos terreiros marajoaras. Muitos pais e mães de santo da região, iniciados primeiramente para a Linha do Fundo, o que se convencionou chamar de “pajelança”, viraram, cruzaram e se desenvolveram na Linha da Umbanda e da Mina, recebendo espíritos mais festeiros que os que participavam dos trabalhos de cura na Linha de Pena e Maracá (como também é conhecida a Linha do Fundo). Nesse ensaio apresento treze fotos que ilustram, brevemente, um toque para esses espíritos.

Ao contrário de outras experiências religiosas, onde o ato de fotografar pode ser visto não apenas como incômodo, mas proibido (na Linha do Fundo, por exemplo, a maioria dos caruanas[2] não permite que sejam fotografados ou filmados, com poucas exceções; além disso, os trabalhos são realizados no escuro ou à luz de velas, o que dificulta o registro), os caboclos costumam não apenas permitir, mas pedem para serem registrados. Os praticantes dos terreiros costumam guardar, impressas ou em forma de arquivo em seus celulares, fotos com os caboclos e vídeos dos festejos onde eles aparecem dançando e cantando.

Nesse sentido, o presente ensaio fotográfico se deu dentro de um contexto em que o ato de fotografar é parte do processo ritualístico dos festejos. As fotos aqui, contudo, só foram registradas meses depois da minha chegada ao campo e após participar de muitos outros festejos. O efeito desse tempo sobre a produção dessas imagens foi importante tanto no sentido de criar um tipo de relação anterior a do registro, quanto — e principalmente, pela apreciação prévia dos atos ritualísticos que colaborou para uma reflexão sobre o próprio ato de criação das imagens. O observador (fotógrafo) produz um tipo de imagem enquanto interpretação, no sentido musical, do processo ritual. As fotos são pontos de vista, mas esses pontos de vista devem produzir um diálogo, que reverbere a potência desse encontro. É nesse sentido que a produção imagética e a produção etnográfica podem se co-fertilizar pela força da experiência ritual religiosa: há dimensões criativas, ético-estéticas que perpassam essas práticas[3].

As fotos aqui buscam apresentar elementos presentes em um festejo para caboclos. Os abatazeiros, como são conhecidos os tocadores de atabaque em Soure, iniciam os toques nos festejos para que as primeiras doutrinas para os caboclos sejam cantadas. A chegada dos caboclos é geralmente anunciada por uma tontura, desequilíbrio, com o médium levando a mão até a têmpora. Expressões e gestos permitem identificar o encantado que chegou.

Os caboclos possuem muitas famílias, como a dos marinheiros. Geralmente, nos festejos, caboclos de uma mesma família, ou que possuem afinidade entre si, cantam e dançam juntos. O povo do mar, povo da mata, boiadeiros, turcos, são algumas dessas famílias de encantados.

Nos festejos, os caboclos consomem muito tabaco e cerveja (que costumam chamar de espumosa). Gostam de mostrar sua força ao anunciar que deixarão o corpo de seus cavalos sóbrio assim que forem, como se não tivessem dado nem um trago e nem um gole. Durante o festejo, quando não estão cantando e dançando, os caboclos gostam muito de conversar com a audiência e entre si. É nesse momento que são consultados pelos visitantes e membros do terreiro que buscam seu auxílio.

Ao chegar em terra, o caboclo anuncia quem é e de onde vem, e o faz por meio de sua doutrina. Durante o festejo muitas doutrinas são puxadas pelos caboclos, e são elas, junto com as danças, que conduzem o toque. Ao fim, os caboclos se despedem com doutrinas anunciando sua partida. Quando a noite já avança, os abatazeiros estão cansados e o público, em sua maioria, já se foi. Contudo, muitos encantados adiam sua partida, permanecendo em terra para mais uma espumosa, uma conversa, uma doutrina entoada sem o toque do tambor.

Esse ensaio é parte de uma pesquisa ainda em andamento (cuja as primeiras impressões resultaram no meu trabalho de mestrado), que requer mais investigações sobre as linhas de trabalho com os encantados — caboclos e caruanas -, suas práticas, suas variações e singularidades em territórios marajoaras. Os toques para os encantados aqui retratados são a experiência viva de uma relação muito profunda, cheia de música, ritmo, dança e alegria, matéria-prima da arte desenvolvida nos terreiros do Marajó. Sua força está na forma muito singular pela qual seus praticantes devolvem ao mundo seu estilo enquanto um modo de existência que valha a pena ser vivido. Aqui podemos apenas sondá-lo.

[2] Caruanas é como são conhecidos os guias do Fundo, que trabalham no corpo do pajé durante os trabalhos de cura; eles são forças, energias, que “é causa da dinâmica da vida, o que permite o acontecer e o devir” (Lima 2002: 272).

[3] Sobre as reflexões entre a produção imagística e a prática etnográfica, ver o interessante trabalho de Marco Antonio Gonçalves sobre o cineasta francês Jean Rouche, “O real imaginado: etnografia, cinema e surrealismo em Jean Rouch” (2008). Sobre o observador-fotógrafo no contexto do registro das religiões de matriz africana ver a dissertação de Iara Cecília Pimentel Rolim sobre o etnógrafo e fotógrafo Pierre Verger, “O Olho do Rei: imagens de Pierre Verger” (2002).

Referências

GONÇALVES, Marco Antonio. O real imaginado: etnografia, cinema e surrealismo em Jean Rouch. Sollus Distribuidora, 2008.

LIMA, Zeneida. O mundo místico dos caruanas da Ilha do Marajó. Edições CEJUP, 2002.

ROLIM, Iara Cecilia Pimentel et al. O olho do rei: imagens de Pierre Verger. 2002.

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