A tragédia colorada está sempre à espreita

Livro de crônicas de Douglas Ceconello, um dos criadores do Impedimento, enaltece fase vitoriosa do Internacional sem desmerecer os fracassos que forjam o caráter do torcedor

Rodrigo Barneschi
Futebol Café
7 min readJun 7, 2021

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Fernandão faz dupla com Abel Braga no panteão particular do autor (Crédito: Editora Zouk)

Douglas Ceconello, um dos nomes por trás do saudoso Impedimento, sabe que o torcedor, qualquer que seja o seu time, tem a identidade forjada não nas grandes conquistas que marcam uma geração, mas nas derrotas inesperadas que atiram mesmo o mais maltratado dos aficionados em um lamaçal de dores e angústias. “No futebol da arquibancada”, ele escreve, “prova de caráter é ser pessimista”. Ele tem plena consciência de que a sina de um torcedor é caminhar com a tragédia sempre à espreita, apenas aguardando a placa com os minutos de acréscimo para dar as caras.

Ceconello é um dos grandes cronistas brasileiros — e não apenas de futebol, observem — por ser capaz, entre outros méritos, de enxergar (e escrever sobre) a alma torcedora tanto de um colorado quanto a de um gremista ou do apoiador de qualquer outro clube. Ele mantém um blog dos mais prestigiados no GE, mas seu estilo literário casa muito bem com o papel impresso. E é então que eu devo confessar que, a despeito de ostentar uma considerável biblioteca futeboleira, nunca antes havia tomado a decisão de mergulhar em História universal da angústia (Editora Zouk), um de seus dois livros já publicados.

Belíssimo título, por sinal. Atentem para a sonoridade, para o tom épico, para a gravidade que se insinua: “História universal da angústia”.

E por que, afinal, demorei tanto para ler uma publicação que, além de ter um título desses, foi escrita por um camarada que eu admiro?

Bom, não tenho uma resposta definitiva, mas ouso dizer que um certo trauma palmeirense em relação ao time gaúcho pode ter colocado uma barreira entre a obra e eu. São vários os elementos: a capa no tom vermelho-Inter, as imagens sobrepostas de ídolos colorados, o símbolo com três letras entrelaçadas a dominar a quarta capa. Durante esses anos todos (a primeira edição é de 2016), a visualização da lombada em uma de minhas prateleiras me transportava para noites mal dormidas no aeroporto Salgado Filho, entre uma derrota no Beira-Rio e a labuta do dia seguinte.

Mas li, enfim. E gostei muito, é evidente.

História universal da angústia apresenta, em 232 páginas, crônicas esparsas de 2006 a 2014. O leitor mais desavisado poderá, então, pensar tratar-se de uma obra dedicada a exaltar um período repleto de conquistas: duas Libertadores, um Mundial de Clubes, uma Sul-Americana e duas Recopas. Não deixa de ser, mas Ceconello revisita esses momentos não em tom de júbilo — o que seria aceitável — , mas com a consciência de quem sabe valorizar jornadas grandiosas sem desmerecer o sofrimento que pavimentou o caminho até a glória.

O título mundial de 2006, por exemplo, é festejado em uma manhã porto-alegrense com os heróis de Yokohama que retornam para casa, mas também com os fantasmas de um passado que explica o presente: “A beleza é retroativa: Nórton, Leandro Guerreiro e Mazinho Loyola riam comigo dentro do carro”. O mundo era vermelho, mas não se pode esquecer que “colorado olha a felicidade de soslaio”. Não só o colorado, eu acrescento.

Ceconello sabe que o futebol é cíclico. Que derrotas acachapantes são tão inevitáveis quanto necessárias. Que o currículo de um torcedor deve ostentar tanto uma vitória libertadora no Morumbi quanto um empate fatal em um esvaziado Giulite Coutinho. Que a América só se curva a quem ousou percorrer suas entranhas. Que uma virada heroica nos descontos não está em nada dissociada de um placar em branco contra um Ypiranga de Erechim. E ouso dizer que os fracassos são tratados no livro até com certa reverência, porque o autor os reconhece como parte de sua biografia.

Wason Rentería, o saci colorado, tem espaço privilegiado no rol de ídolos colorados do autor (Crédito: Editora Zouk)

Se Renato Portaluppi é a referência escolhida por um cronista gremista, a do colorado é Abel Braga, “que sabe mais não por ser viejo, mas por ter sua cara constantemente refletindo o vermelho, do Inter e da angústia”. Abel faz dupla com Fernandão no panteão de Ceconello, mas há espaço para outros tantos atletas festejados pela metade vermelha do Rio Grande: D’Alessandro, Guiñazú, Iarley e, predileção algo exclusiva do autor, Rentería. Ao lado deles, mesmo os defenestrados pela torcida encontram abrigo nas páginas repletas de adereços gráficos vermelhos.

Mas eles, os atletas, não estão sós. As crônicas fazem o leitor se sentir rodeado por ídolos e cabeças-de-bagre, mas, pelas “frestas de um bar fechado”, também introduz personagens como Dom Afonso, “tão disposto quanto um centauro que chega de uma longa cavalgada” e “cujo principal hobby é permanecer numa mesa com uma garrafa de dois litros de Guaraná e um maço de Hilton, devidamente definhado ao longo da jornada”. Ou Marquinhos, “o craque do bairro” que faz o cronista conduzir o leitor a um passeio noturno por sua cidade natal, Cachoeirinha.

Ceconello enxerga o mundo sem perder de vista suas raízes e referências culturais, que aparecem de tempos em tempos em seu texto, com tamanha naturalidade que o leitor menos atento pode nem percebê-las. Destaco, de todas, uma recorrente, que diz respeito aos faroestes que tão bem combinam com sua narrativa: “Porque o Inter se portou como um facínora de um bang-bang clássico que mata a vítima e ainda confere os bolsos em troca de uns derradeiros trocados”. Clint Eastwood, por supuesto, tem seu nome impresso no pé da página, de maneira quase furtiva.

Cada qual em sua metrópole, Douglas e eu encaramos as descobertas e os mistérios da adolescência nos efervescentes anos 1990, e compartilhamos todo o zeitgesit daquela época. Foi um período difícil para o Inter dele, às voltas com elencos pouco confiáveis e com um rival que ganhava de tudo um pouco. O meu Palmeiras, de outra parte, viveu uma de suas fases mais gloriosas a partir de 1993. Mas muitas foram as frustrações e eu igualmente me permito acariciar memórias de derrotas inesperadas em tardes nubladas de outono.

Pois eu mencionei no início um certo trauma palmeirense em relação ao Inter, e então sinto que o leitor merece uma explicação melhor. Pois eu julgava que o bloqueio psicológico se devesse à dificuldade histórica que o Palmeiras sempre teve para se impor diante de tão duro rival, mas o mergulho nessas crônicas me permitiu encontrar a origem de tudo em uma jornada de novembro de 1992.

Capa de “História universal da angústia”, do jornalista Douglas Ceconello, publicado em 2016 (Crédito: Editora Zouk)

Foi minha primeira decisão em um estádio. Do alto de meus 11 anos, compartilhava com milhares de alviverdes a convicção de que quatro partidas nos separavam do fim da fila de 16 anos sem títulos. Era o jogo de ida da semifinal da Copa do Brasil e, em meio à fumaça verde que tomava o céu paulistano, subiram a campo 11 camisas encarnadas. O uniforme colorado parecia se sobressair na iluminação de boate do antigo Palestra Itália. A dupla Elson e Gerson, com um gol em cada tempo, decretou a derrota que ficou ainda maior porque coroada com um pênalti defendido por Gato Fernández. Entendi, naquela noite, que as 11 camisas cor de sangue deveriam ser recebidas sempre com enorme respeito.

Douglas sabe que medo e respeito andam de mãos dadas, e que grandes rivais se reconhecem à distância. Histórias sobre o Gre-Nal são recorrentes durante todo o livro, apesar de, segundo ele, nenhum gremista ou colorado gostar de Gre-Nal: “Porque ninguém gosta de sentir medo. E o Gre-Nal é movido essencialmente pelo medo”. E ele sabe (ou espera), por fim, que, a despeito das arenas multiuso e das cadeirinhas numeradas, o bom e velho concreto haverá de resistir à tentativa de enquadrar os torcedores como se consumidores fossem:

“Se a relação com o teu clube nada mais é que uma sucessão de hábitos, físicos e emocionais, está muito perto o momento em que tu serás mais torcedor estando fora do estádio do que frequentando esta nova modalidade de espetáculo, com a qual os bárbaros ainda precisam se adaptar, mas que tende a durar apenas até o momento em que teu time precisar se livrar da segunda divisão na base do grito, da demência, do cigarro e, se preciso, com torcedores correndo incendiados no meio do campo”.

Há livros que pedem um bom vinho tinto — ou algum “veneninho” mais forte. Outros imploram por um café bem tirado no balcão de um bar centenário de Buenos Aires. E o de Ceconello? Bom, é justo deixar o autor propor uma combinação que muito me agrada: “No começo da noite de sexta-feira, ingressei em um mercado disposto a comprar o que se precisa para um começo de noite de sexta-feira: latas de cerveja e um pacote de Doritos”. Justo.

O jornalista Rodrigo Barneschi já foi a 1.014 partidas de futebol em 79 estádios de dez países diferentes. Para ele, o que une torcidas rivais é muito maior do que aquilo que as separa. Sua experiência de décadas na arquibancada vai ser contada em um livro a ser lançado nos próximos meses

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Rodrigo Barneschi
Futebol Café

Autor do livro “Forasteiros” (Editora Grande Área). Torcedor. 1132 vezes arquibancada em 81 canchas pelo mundo. livroforasteiros@gmail.com/ Twitter @barneschi