Crônicas gremistas para quem vive a arquibancada

Publicação independente sobre o Tricolor tem o mérito de colocar a perspectiva do torcedor em evidência

Rodrigo Barneschi
Futebol Café
3 min readMar 2, 2021

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“Gremismo crônico”, acompanhado da Negresco, camisa usada em 1996 pelo clube gaúcho (Crédito: Futebol Café)

Renato, para os gaúchos, nunca foi Gaúcho. Renato, para os gaúchos, sempre foi Portaluppi. Para Tiago Magalhães Ribeiro, autor de Gremismo crônico - Glória e fracasso de um torcedor de futebol, o nome do maior ídolo gremista vem acompanhado de uma série de complementos: barão, comendador, conde, deus, duque, doutor, gênio, ilusionista, mago, mestre, papai, professor e visconde, em um desfile de referências elogiosas ao personagem mais recorrente do livro.

A adoração pelo longevo treinador atinge o ápice em um trecho revelador do espírito da obra.

“Se eu pudesse encontrar Renato em uma esquina do Bom Fim, após pedi-lo em casamento, tentaria extorquir algumas respostas a esses questionamentos filosóficos-especulativos”.

Singelo.

Se Renato é apresentado como entidade infalível, seu contraponto é o meio-campista Douglas, que tem a forma física e a fama de peladeiro ressaltadas em vários trechos.

“O Grêmio B terminou o jogo tocando a bola, dando olézinho, movimentando-se no ritmo da barriga sensual de Douglas, que, aos 56 anos, comandou a meia cancha tricolor. (…) [Ele] quebra a lógica ao meio, coloca dentro de um pão e degusta, à guisa de lanchinho da tarde. Depois dá umas assistências, confere para as redes e vai tomar uma bira no sujão da esquina”.

No decorrer de 232 páginas, Ribeiro transita bem entre o humor autodepreciativo, a ironia e o autoflagelo, com a ressalva de que esta última variante acaba perdendo a força em função da repetição de um discurso sobre o tal “gremismo crônico”. O texto, de um estilo hiperbólico, agrada pela espontaneidade e pela inserção de elementos que evidenciam o nível intelectual do autor, mas, por vezes, cansa o leitor pela falta de respiro: as frases são longas e os parágrafos, mais ainda.

A exaltação a um único clube pode afastar leitores não-gremistas, o que é de se lamentar, dado que o escritor apresenta reflexões muito bem-vindas (em especial sobre a imprensa esportiva), críticas sociais bem fundamentadas e uma rara sensibilidade para enxergar o outro, seja ele o torcedor adversário ou os tantos motoristas e taxistas que o conduzem até a Arena do Grêmio.

Talvez não fosse possível fugir dos caminhos que levam ao extremo norte de Porto Alegre, e então o objetivo de Ribeiro parece ter sido alcançado. A publicação independente, lançada em 2019, é um eficiente relato da paixão clubística (a rigor, a vibração e o sofrimento do gremista em nada diferem dos sentimentos de quaisquer outros torcedores), tendo como pano de fundo a relação do autor com o pai. As descrições dos encontros entre os dois são particularmente inspiradas, perdendo apenas para a crônica da traumática derrota para o River Plate na semifinal da Copa Libertadores de 2018.

Por sinal, tomo a liberdade de deixar algumas sugestões para uma eventual reedição ou para um próximo livro do escritor gaúcho: focar apenas nas experiências vividas dentro do estádio, bem mais instigantes do que as mediadas por uma transmissão televisiva, e definir um intervalo de tempo maior para que a narrativa não fique tão datada.

Em um país que valoriza tão pouco a literatura de futebol e que quase não dá voz para o frequentador da arquibancada, Gremismo crônico é um achado não apenas para gremistas, mas para quaisquer outros torcedores — sim, inclusive os colorados, que são tratados com o respeito possível em um contexto de tamanha rivalidade.

No momento em que nos aproximamos de um ano sem poder ir a estádios, sonho com o dia em que poderemos voltar a girar a catraca. E então, quando for permitido retornar à Arena do Grêmio, deixo aqui o convite para encontrar o Tiago antes do jogo na Lancheria Cleusa. Com cervejas por minha conta, como agradecimento pela agradável leitura.

O jornalista Rodrigo Barneschi já foi a 1.014 partidas de futebol em 79 estádios de dez países diferentes. Para ele, o que une torcidas rivais é muito maior do que aquilo que as separa. Sua experiência de décadas na arquibancada vai ser contada em um livro a ser lançado nos próximos meses

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Rodrigo Barneschi
Futebol Café

Autor do livro “Forasteiros” (Editora Grande Área). Torcedor. 1132 vezes arquibancada em 81 canchas pelo mundo. livroforasteiros@gmail.com/ Twitter @barneschi