Celso Unzelte, por um futebol (mais) à esquerda: ‘Os jogadores não questionam’

Jornalista da ESPN Brasil assina o prefácio da edição em português de “Futbolistas de Izquierda”, recém-lançado no Brasil

Bruno Rodrigues
Futebol Café
6 min readSep 19, 2017

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Sócrates, Lucarelli e Caszely: esquerdistas convictos, futebolistas de esquerda (Crédito: Futebol Café)

Ao longo de toda a história do futebol, poucos jogadores tiveram a coragem de se posicionar politicamente. Tão poucos que caberiam em um livro. Essa foi justamente a ideia do jornalista espanhol Quique Peinado, que em 2013 publicou “Futbolistas de izquierdas”, uma obra que reúne histórias de boleiros que quebraram o protocolo e agiram em prol daquilo em que acreditavam, de suas convicções. Convicções de esquerda, é claro. E se você, leitor, já tinha interesse ou ficou curioso sobre a obra, o Futebol Café traz uma boa notícia: o livro ganhou uma edição em português que chega às livrarias neste mês de setembro, publicado pela Editora Mundaréu.

Com o título Futebol à esquerda, a Mundaréu traz ao mercado seu primeiro livro sobre futebol. Segundo eles, apesar da falta de futebol no catálogo, a escolha pela obra de Quique Peinado está alinhada ao perfil da editora. “‘Futebol à esquerda’ se encaixa perfeitamente em nossa linha editorial, mais dedicada à chamada ficção literária, mas que tem um viés bem claro de reflexão sobre contexto, história, identidade ou posicionamento. Basta ver nossos títulos como ‘O Senhor Presidente, de Miguel Ángel Asturias, ‘Montaigne’, de Zweig, ‘Uma juventude na Alemanha’, de Ernst Toller, ‘O súdito’, de Heirich Mann”, diz Silvia Naschenveng, uma das sócias da Mundaréu, em entrevista ao Futebol Café.

O contato inicial com o livro se deu pelo outro sócio da editora, Tiago Tranjan, fanático por futebol e que se interessou não só pela parte futebolística, mas pelos contextos político e social retratados nas histórias. Conhecido do jornalista Celso Unzelte, Tranjan fez o convite para que Unzelte escrevesse o prefácio, o que foi prontamente atendido. O jornalista da ESPN Brasil e da TV Cultura diz que sua principal motivação ao contribuir com a obra foi a crença no projeto e no bom conteúdo, mais do que qualquer opção política particular.

“Não me defino como de esquerda. Sou o que antigamente era um social-democrata, antes de virar o que é o neoliberal de hoje (risos). Me identifico com os ideais de igualdade”, afirma Unzelte em entrevista ao blog. “Como falo na apresentação, o livro não fica na mesmice, traz muitas histórias até raras. Eu trabalho muito com futebol e não tinha ouvido falar dessas mais de 50 histórias do futebol mundo afora”, revela.

Futebol à Esquerda contempla jogadores de vários países e conta episódios interessantes da ação política de algumas figuras do mundo da bola, desde atletas do país basco ligados ao ETA, organização separatista da região célebre pelos atos terroristas praticados na Espanha, a outros que, por exemplo, foram importantes na fundação de sindicatos e associações de atletas profissionais, lutando para melhorar a situação trabalhista da classe.

O ponto alto entre os personagens do livro são as páginas dedicadas ao italiano Luciano Lucarelli. O centroavante, torcedor fervoroso do Livorno desde criança, conseguiu convencer seu empresário a deixar um bom dinheiro de lado em troca da oportunidade de jogar pelo clube do coração, cuja cidade e torcida estão historicamente ligados ao Partido Comunista Italiano. A história não só é valiosa como o relato de Quique Peinado vai além da simples transcrição dos feitos de Lucarelli. O jornalista foi a Livorno e conversou com o próprio jogador, trazendo ao leitor uma narrativa muito mais próxima e pessoal da relação do jogador com sua gente.

Capas das edições brasileira e espanhola (Crédito: Futebol Café/Divulgação)

Para Celso Unzelte, a história de Lucarelli, além de ser a mais interessante em sua opinião, lança luz à questão da falta de envolvimento de jogadores do futebol mundial com causas como a do italiano. “O Lucarelli é o principal personagem porque ele é atual, é dos anos 2000, não fala do velho mito do amor à camisa lá dos anos 50. A gente vive num momento em que os jogadores não questionam. Você imagina um Neymar, um Ronaldo questionando? Eles são beneficiados disso tudo. Então eles ficam míopes. Antigamente a grande pressão era a ditadura política. Hoje a ditadura é econômica, tão ou mais covarde do que aquela”, opina.

Unzelte também sente falta de novas histórias de jogadores brasileiros que tenham levantado a mão para temas relevantes como fizeram Afonsinho, Reinaldo e Sócrates. Contudo, esses episódios já estão ficando para trás. “Infelizmente os brasileiros são poucos, e estão longe, são dos anos 80. Cito o exemplo do Bom Senso FC, que é totalmente diferente de outros movimentos como a Democracia Corintiana, que era libertária, contestadora. O Bom Senso pregava a conciliação e foi totalmente ignorado pela CBF. Até o patrocinador estava incluso, um movimento quase de entrega ao neoliberalismo. É um espelho dos tempos em que vivemos”, diz o jornalista.

Por falar nos tempos em que vivemos, “Futebol à esquerda” corre o risco de suscitar algumas manifestações contrárias ao livro por falar de futebolistas com uma visão política bem definida. Conforme aconteceu, por exemplo, com a biografia de Sócrates, lançada recentemente pelo jornalista escocês Andrew Downie, que diz ter recebido mensagens não muito positivas de alguns seguidores nas redes sociais sobre a obra. Para Silvia Naschenveng, sócia da Editora Mundaréu, essa não é uma preocupação.

“Vivemos um momento de certa tensão política e intolerância. Mas essa não foi uma questão considerada quando da escolha do título. Como sempre, nos preocupamos essencialmente com a qualidade do texto, nossa afinidade com ele e sua adequação à nossa linha editorial. Também temos as nossas ressalvas, sem deixar de achar valiosa a reflexão que elas trazem”, conta Naschenveng.

Em relação ao trabalho, a visão da editora encontra semelhança no olhar de Celso Unzelte, entusiasta da ideia da publicação de um livro como esse no Brasil. O jornalista, porém, é pessimista em relação às pessoas e às reações que elas possam ter mesmo sem entrar em contato com a obra. “As pessoas estão muito míopes, inclusive a esquerda. Tem miopia para todos os gostos. Elas gostam do que elas gostam. Quem tiver preconceito e continuar pensando desse jeito, não vai ter o desprendimento de dar uma chance”, crê.

O mercado editorial brasileiro tem importado algumas obras interessantes sobre futebol recentemente. Mas a produção nacional, especialmente títulos com a profundidade de “Futebol à esquerda”, ainda parece engatinhar — a nível comercial, especialmente. O livro, então, será capaz de gerar algum tipo de debate sobre essa produção e sobre o tipo de literatura futebolística que queremos produzir? Ou mesmo ler? “É uma situação bem complicada. O que se produz em termos de futebol para a grande massa é de muita baixa qualidade. Eu mesmo sou uma vítima disso. Tenho o sonho de um dia acontecer isso, que o futebol seja um instrumento de debates”, diz Unzelte.

Independentemente do tipo de debate e da repercussão que possa causar, a chegada do livro de Quique Peinado é uma boa notícia para o fã de futebol. Afinal, por que não dar uma chance a um time que conta com Lilian Thuram, Doutor Sócrates, Carlos Caszely e Cristiano Lucarelli, treinado ainda por Vicente del Bosque? O único problema vai ser o desequilíbrio dessa equipe, atacando sempre pelo lado esquerdo, obviamente.

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