Entrevista com os livros: a história de Julio Libonatti, o primeiro argentino a jogar pela seleção da Itália

Atacante, campeão sul-americano em 1921, inaugurou a era dos ‘oriundi’ na Azzurra e se tornou ídolo do Torino

Bruno Rodrigues
Futebol Café
7 min readMay 31, 2022

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Libonatti com a camisa da seleção argentina, antes de se naturalizar italiano (Crédito: Wikimedia Commons)

Diz o meu amigo Marcos Guedes, com quem trabalhei na Folha, que as melhores entrevistas são aquelas que fazemos com os livros. “Entrevistar gente? Credo!”, costuma brincar o Marcos. Cada vez mais tendo a concordar com ele. Os livros nunca te respondem com má vontade e a entrevista (leitura) dura o quanto você quiser que dure.

No último fim de semana, comecei a ler Sueños de la Euro, livro de Miguel Lourenço Pereira sobre a história da Eurocopa. Nas primeiras páginas, o autor traça o histórico dos torneios de seleções do Velho Continente que antecederam a Euro. Um deles foi a Copa Internacional da Europa Central, que reunia países centro-europeus como a Itália, a Áustria, a Hungria, a Suíça e a Tchecoslováquia.

Descobri que a Itália foi a campeã da primeira edição, em 1930, e que na equipe treinada por Vittorio Pozzo se destacou um atacante nascido em Rosario, na Argentina, mas naturalizado italiano: Julio Libonatti, o primeiro jogador sul-americano a defender a Azzurra na história, inaugurando a era dos oriundi e também as transferências futebolísticas entre a América do Sul e a Europa.

Curioso o fato de essa leitura coincidir com a semana em que Argentina e Itália se enfrentam pela Finalíssima, a decisão entre o campeão da Copa América e o campeão da Eurocopa, em Wembley. No time de Roberto Mancini, há três brasileiros naturalizados: o zagueiro Luiz Felipe, o lateral-esquerdo Emerson Palmieri e o meio-campista Jorginho.

Contudo, a história dos oriundi está intimamente ligada aos argentinos. Em 1934, a Itália conquistou o título mundial com quatro atletas nascidos no país em seu elenco: Enrique Guaita, Attílio Demaría, Luis Monti e Raimundo Orsi. Mais recentemente, em 2006, a Azzurra se sagrou campeã do mundo com outro representante proveniente do Rio da Prata, Mauro Camoranesi.

O primeiro oriundi, porém, foi Julio Libonatti. E na entrevista com os livros (contando também com a ajuda da Revista El Gráfico), pude conhecer um pouco mais sobre o atacante, campeão com a Argentina e ídolo do Torino.

Nascido em 1901 na cidade de Rosario, província de Santa Fe, Libonatti foi revelado pelo Newell’s Old Boys. Com apenas 16 anos, fez sua estreia na liga rosarina. O atacante atuaria por oito anos em La Lepra e formaria parte do recordado quinteto ofensivo “Celli, Badalini, Libonatti, Saruppo e Francia”, campeão da Copa Ibarguren de 1921, competição que colocava frente a frente o campeão rosarino com o vencedor da liga argentina (composta por clubes de Buenos Aires).

Na final contra o Huracán, Libonatti, já apelidado de El Matador, marcou o terceiro da vitória por 3 a 0 para que o Newell’s ficasse com o título.

“Foi um adiantado, porque em uma época de posições fixas, ele podia atuar em vários postos do ataque, ainda que normalmente jogasse como entreala-direito, com a mesma eficácia e qualidade. Aqueles que o viram jogar, sobretudo em sua Rosario natal, colocam-no entre os grandes futebolistas surgidos dessa escola. Era veloz, muito inteligente, certeiro para definir e possuía uma habilidade inata”, escreve Julio Macías em Quién es quién en la Selección Argentina.

As atuações de Libonatti pelo Newell’s o levaram para a seleção argentina. Sua primeira convocação foi em 1919, para um amistoso contra o Uruguai, em Buenos Aires. Os albicelestes golearam por 6 a 1 e o Matador marcou três.

A trajetória do atleta pela equipe nacional registrou 15 jogos e 8 gols, com destaque para a participação na conquista da Copa América de 1921, a primeira dos argentinos no torneio. Libonatti anotou três gols (no 1 a 0 contra o Brasil, no 3 a 0 sobre o Paraguai e no 1 a 0 diante do Uruguai) e terminou a competição como artilheiro.

“Essa foi a sua consagração em Buenos Aires, e uma lenda popular conta que após o último jogo contra os charrúas, que a Argentina venceu por 1 a 0, os torcedores o carregaram nos ombros do estádio do Sportivo Barracas até a Praça de Maio, no centro portenho. Dado que há quase quatro quilômetros de distância entre ambos pontos da cidade, a veracidade do relato é duvidosa, mas sua menção é útil para entender a importância que foi dado ao seu gol em anos posteriores”, diz texto publicado na El Gráfico.

A seleção argentina campeã sul-americana de 1921. Libonatti é o segundo da esquerda para a direita entre os agachados (Crédito: Site da Associação do Futebol Argentino)

A fama de Julio Libonatti atravessou o oceano, e, durante uma visita à Argentina, o Conde Marone Cinzano, dono da empresa de bebidas Cinzano e presidente do Torino, ficou maravilhado com o futebol do atacante.

Filho de italianos que emigraram para a América do Sul, o jogador tomou o caminho inverso e desembarcou na Itália para iniciar uma caminhada de sucesso não só em Turim, mas também com a camisa da Azzurra. Com sua transferência, tornou-se o primeiro atleta a ser vendido de um clube sul-americano para um europeu.

Libonatti passou nove temporadas no Torino e marcou 150 gols em 239 partidas pelos grenás, 21 deles na temporada 1926/1927, na qual o Torino conquistou um título italiano que, ao fim da temporada, seria revogado por um escândalo de manipulação de resultados.

No clássico contra a Juventus, diretores do Torino teriam pago ao zagueiro rival Luigi Allemandi para que ele entregasse o jogo, que acabou com vitória de 2 a 1 para o time granate.

“Semanas após a partida, com o Torino já campeão, começou a ser filtrado para a imprensa o rumor sobre um possível escândalo. Lo Sport, um jornal de Milão, falou sobre o tema, e depois Il Tifone, uma publicação fascista de Roma, soltou a história completa”, diz John Foot, que chama o episódio de “A mãe de todos os escândalos, no livro Calcio: A history of Italian football.

“Uma investigação da federação descobriu que Allemandi foi subornado por um diretor do Torino antes do clássico. A quantia mencionada foi de 50 mil liras. Allemandi negou tudo.”

Inicialmente, o zagueiro da Juventus foi banido do futebol para sempre. Entretanto, em 1928, foi concedida uma anistia e, após um ano afastado dos gramados, Allemandi pôde voltar a jogar. Ele integrou, ao lado dos oriundi argentinos, a equipe italiana campeã mundial na Copa de 1934.

Apesar da revogação do título por conta do escândalo, o Torino voltou forte para a temporada seguinte e confirmou, no campo e sem subornos, o título nacional da temporada 1927/1928. Julio Libonatti marcou 35 gols em 34 jogos e se consagrou como o artilheiro do campeonato.

“Foi um adiantado, porque em uma época de posições fixas, ele podia atuar em vários postos do ataque. Era veloz, muito inteligente, certeiro para definir e possuía uma habilidade inata”

— Julio Macías, ‘Quién es quién en la Selección Argentina’

A essa altura, o Matador já era um italiano mais. Filho de pais nascidos na Calabria, foi naturalizado a pedido do técnico da Azzurra, Vittorio Pozzo.

“Pozzo havia detectado uma carência de talento em comparação com seus rivais centro-europeus, e indagou o Ministério do Esporte do governo Mussolini sobre a opção de naturalizar os esportistas estrangeiros que pudessem ter antepassados italianos, sobretudo aqueles cujas famílias tinham emigrado para a América do Sul no início do século”, escreve Miguel Lourenço Pereira em Sueños de la Euro.

“Pozzo era um apaixonado pelo estilo de jogo de Libonatti, e pressionou nos escritórios para que lhe dessem a nacionalidade italiana a tempo de disputar a Copa Internacional da Europa Central. A decisão não pôde ser mais acertada. Libonatti não foi somente o goleador do torneio, com seis gols, mas também foi o que deu mais assistências.”

No dia 11 de maio de 1930, a Itália confirmou o título ao golear a Hungria por 5 a 0, no estádio do Ferencváros. Três dos cinco gols foram anotados por um jovem Giuseppe Meazza. Libonatti não enfrentou os húngaros, mas sua participação decisiva na campanha já havia sido suficiente para colocar o seu nome na história da seleção italiana. Campeão da América com a Argentina, ele agora colecionava uma nova taça, desta vez pela pátria que lhe adotou.

Em 1934, Libonatti se despediu do Torino para jogar na Serie B com a camisa do Genoa. Aos 34 anos, ajudou a equipe a conseguir o acesso, e pendurou as chuteiras na temporada seguinte, com os genoveses na elite do futebol italiano.

O argentino chegou a arriscar uma carreira como treinador, mas que não vingou, com uma primeira e única experiência à frente do Rimini, na terceira divisão do país. Comandar um grupo de jogadores parecia responsabilidade demais a quem só queria desfrutar dos prazeres da vida.

“Sempre alegre e predisposto a uma taça, era amante das gravatas chamativas, das mulheres e da boa vida. Outra de suas debilidades eram as camisas de seda, e nunca diversificou as receitas que havia conseguido jogando futebol. Em um par de anos, gastou todo o seu dinheiro, e teve que voltar à Argentina. Em seu retorno, estabeleceu-se em Rosario, onde trabalhou nas inferiores do Newell’s. Faleceu aos 80 anos, em 9 de outubro de 1981”, completa reportagem de Matías Rodríguez na Revista El Gráfico.

Quando era jovem, Julio Libonatti, seu irmão e seu pai ajudaram a construir uma das arquibancadas do estádio do Newell’s Old Boys. Por anos, o setor ficou conhecido entre os hinchas leprosos como Tribuna Libonatti, até que em 1971 a antiga arquibancada foi demolida para a construção de uma nova.

Hoje, no local, encontra-se a Tribuna Diego Armando Maradona, homenagem a um dos tantos que, assim como Libonatti, deixaria a Argentina para brilhar no Calcio e em outras ligas europeias. Foi um jovem de Rosario, muito antes de Lionel Messi, o primeiro a estabelecer essa rota.

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