Mais bilardista do que antes

Impressões do livro “Bilardo — Menotti: La verdadera historia”

Futebol Café
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8 min readFeb 8, 2021

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Livro foi publicado pela Editora Planeta, da Argentina, no ano passado (Crédito: Reprodução)

O jornalista Alex Sabino foi a Buenos Aires em novembro de 2020 para a cobertura da morte de Diego Armando Maradona. Da capital argentina, trouxe alguns livros futeboleiros, como a obra dedicada à rivalidade dos dois treinadores campeões do mundo com la selección. Sabino, bilardista inveterado, publica no Futebol Café as suas impressões sobre o livro de Nicolás Cajg e Néstor Lopez

Por Alex Sabino

Em antiga entrevista de Carlos Salvador Bilardo publicada no livro “Bilardo - Menotti, la verdadera historia”, um jornalista não identificado lhe pergunta quem, entre técnicos da nova geração argentina, é bilardista.

“Todos”, ele responde.

Começa a explicar em seguida. Os treinadores hoje em dia analisam adversários e viajam para vê-los. Dão atenção às atividades de bola parada. Praticam linha do impedimento. Marcam homem a homem. Fazem pré-temporada.

Estratégias que, segundo o próprio Bilardo, ele já fazia na década de 1970 e era contestado.

Na sua vez de ser inquirido, César Luis Menotti responde com um muxoxo a tudo o que Bilardo acredita. Prefere falar em quatro ações necessárias para decidir uma partida: defender, recuperar a bola, “gerir jogadas” (seja lá o que isso significa) e defini-las.

A obra dos jornalistas Nicolás Cajg, o Cayetano, e seu colega Néstor Lopez tenta ir a fundo na maior rivalidade entre dois técnicos na história do futebol sul-americano. Uma dupla com tanto em comum que se tornou dois polos opostos, yin-yang da bola, Batman e Coringa em albiceleste.

Nesta última comparação, vocês resolvem quem é quem. Eu já tenho a minha decisão.

Dois campeões mundiais com diferenças de filosofia que ultrapassaram o esporte e entraram na cultura argentina.

Menotti vestiu, em grande parte pelo próprio esforço em se passar por intelectual, a capa do futebol arte. Bilardo está na história como o resultadista a todo custo. Algo que ele nunca escondeu ser verdade, mas lhe rendeu crítica que sempre o magoou: a do anti-futebol.

Edição especial da El Gráfico sobre o título de 78 (Crédito: Futebol Café)

As duas imagens são mentirosas. Para quem sempre se considerou um virtuoso do futebol, César Luis teve poucos trabalhos em que seu time jogou bonito de forma consistente, como quer fazer acreditar. Obteve o título pelo histórico Huracán em 1973, que o catapultou à seleção campeã mundial em 1978. Uma equipe (aquela de Parque Patricios) que, sim, se tornou histórica pela beleza do jogo. Mas foi só. O sonho dourado de César Luis durou apenas sete meses.

A Argentina vencedora da Copa que organizou chegou à final graças a uma goleada suspeita diante do Peru. Os jogos na íntegra, disponíveis em fóruns de torcedores, mostram uma equipe que teve momentos de brilho, mas esteve longe de ser o tempo todo ofensiva e bela como o próprio Menotti sempre argumentou.

O técnico fracassou em sucessivos trabalhos depois disso, mas ganhou também o Mundial Sub-20 de 1979. No Barcelona, não conseguiu vencer a liga. Levantou duas copas nacionais em uma passagem que mereceu registro em outro livro (“Barça”, de Jimmy Burns) e a lembrança do conselho dado pelo demissionário argentino ao seu substituto, o inglês Terry Venables.

“Não marque treinos para a manhã. Apenas para a tarde. A noite de Barcelona é fantástica.”

Em “El Ultimo Mundial”, de Cune Molinero y Alejandro Turner, está registrada a frase de Julio Grondona, histórico presidente da AFA, morto em 2014, sobre o trabalho de Menotti antes da Copa de 1982, quando a Argentina defenderia seu título na Espanha:

“Ele é o melhor, de longe. Mas está cada vez mais preguiçoso”.

Bilardo, o resultadista para quem a vitória era a única coisa que importava, venceu pouquíssimo como técnico. Claro, foi campeão mundial de 1986, no que se iguala ao inimigo.

Se Menotti chegou à seleção por causa do seu trabalho do Huracán (e o impulso da revista El Gráfico), Bilardo foi levado para a AFA por pressão da mesma publicação após o título metropolitano com o Estudiantes em 1982.

Os defensores de Menotti registrados no livro de Caetano e López contestam essa visão. Dizem que seu mestre criou uma escola que tem como principal seguidor o catalão Pep Guardiola.

Os bilardistas ressaltam que a Argentina, mesmo com uma montanha de suspensões e lesões foi à final da Copa de 1990 e perdeu apenas por causa da desastrosa arbitragem do mexicano Edgardo Codesal. Carlos (ou “Carlo”, como o chamam vários de seus ex-comandados) também levou o Deportivo Cáli à decisão da Libertadores de 1978. Um time colombiano jamais havia chegado tão longe.

Como o próprio Bilardo sempre defendeu, o vice pouco importa. Ou você ganha ou não é nada.

O livro é interessante porque bem escrito e dividido entre um menottista (Caetano) e um bilardista (López). São dois os prefácios: o de Ángel Cappa defendendo o campeão de 1978 e o do narrador Victor Hugo Morales, exaltando o líder de 1986.

O início de cada capítulo registra diálogo dos autores sobre o assunto a ser abordado, em tom jocoso. Divertido e original.

Dito tudo isso, a obra pende para o lado de Menotti. Não se trata de crítica porque imparcialidade não existe. Os autores fazem de tudo para tentar a neutralidade, mas os tropeços de Bilardo são sempre os mais visíveis.

Nenhum trecho fica mais claro do que o dedicado a reproduzir entrevistas concedidas pelos dois treinadores no passado.

As de Bilardo são uma guerra verbal, com idas e vindas entre entrevistador e entrevistado. As de Menotti são quase exercícios de relações públicas.

Há também os relatos dos confrontos como jogadores e técnicos entre os dois personagens. O que recebe maior espaço é o último. O Boca Juniors de Bilardo enfrentou o Independiente de Menotti em La Bombonera pelo Apertura de 1996. Partida em que os bosteros criaram as melhores chances e tiveram pênalti não marcado a seu favor. O Rojo fez um gol de bola aérea (ah, a ironia…), mas o livro retrata os 90 minutos como os de um time de toque de bola e que dominou as ações (Independiente) contra outro que apenas apelou aos chutões.

Episódio do podcast “No Cabaré de Blas Giunta” dedicado ao Boca x Independiente de 1996

A publicação vale a pena como documento sobre o nascimento de divisão tão profunda no futebol argentino. Conta o jantar que os rivais dividiram em 1976 na casa de Roberto Saporiti, assistente de Menotti na seleção e amigo de Bilardo, além da última vez que conversaram frente a frente, em 12 de março de 1983, no Hotel Arena, em Barcelona, e a irritação subsequente que essa reunião deixou.

Ficou combinado que a conversa seria apenas entre eles. Nada seria passado para a imprensa. Bilardo chegou ao local acompanhado por um jornalista da El Gráfico. Menotti desconfiou, com razão, que seu substituto na seleção vazaria o conteúdo da charla. Também se aborreceu porque aconselhou o colega a insistir com Alberto Tarantini (“quanto mais briga com a mulher, melhor joga”) e foi ignorado.

A guerra começou pouco depois. Menotti criticou a seleção de Bilardo por causa de um resultado em Toulon, na França, e disse que a Argentina perdia a credibilidade. Bilardo considerou isso uma traição. Lembrou ter se calado durante todos os anos em que seu antecessor comandava o time.

Quando respondeu, Carlos apertou o botão nuclear. Listou as derrotas de Cesar Luis após 1978 e concluiu:

“Não entendo os que se dizem homens de esquerda e andam em abraços com os militares.”

A imagem de Menotti cumprimentando o ditador Jorge Rafael Videla após a Argentina conquistar o título mundial de vez em quando aparece em redes sociais para fustigar os menottistas. Os defensores do técnico lembram que ele apenas permaneceu porque não houve interferência em seu trabalho.

Para citar de novo “El Ultimo Mundial”, Beto Alonso declara não ter sido convocado por Menotti em 1978, e sim pelo almirante Carlos Lacoste, torcedor do River Plate (clube do meia-atacante), presidente do Ente Autárquico Mundial (EAM, o Comitê Organizador da Copa), integrante da ditadura e que depois teria longa carreira em altos postos na Fifa. Alonso era uma das dúvidas entre quem poderia ficar e ser cortado do elenco. Ele ficou. O escolhido para ir para casa foi Diego Maradona.

Diego, treinado por ambos, foi campeão com Bilardo em 86 (Crédito: Futebol Café)

O livro de Caetano e López registra os jogadores que foram dirigidos pelos dois para ressaltar as diferenças de estilo, as influências no futebol e quem é bilardista ou menottista no mundo dos técnicos.

Mostra até mesmo em que assuntos os dois vendem humo, para usar uma expressão argentiníssima. Menotti e a defesa de que todos os seus times sempre jogaram bom futebol. Bilardo ao se proclamar inventor do 3–5–2, esquema que já havia aparecido na década de 1950 e voltou à moda com Sepp Piontek, o alemão que comandou a Dinamarca na primeira metade dos anos 1980.

Quem gosta de Bilardo pode ler o livro e não vai se arrepender. Os menottistas ficarão satisfeitos. Os indecisos ou sem lado na história devem devorá-lo para entenderem essa fascinante história que abriu uma fenda no futebol argentino que é impossível de fechar.

Claro, há também Maradona, cortado por Menotti em 1978 e campeão mundial com Bilardo em 1986. Em um livro de tantas incoerências e idas e vindas, não poderia faltar ele. Diego critica Menotti, chama Bilardo de “fenômeno” e depois dá guinada de 180º. Chega ao ponto de dizer em 1996 que, se Bilardo estivesse no Boca, ele não jogaria pelo clube.

No fim, aceitou se unir novamente com o técnico, mas em sua biografia “Yo soy el Diego”, constatou:

“Com Bilardo foi tudo bem. Ele estava mais louco do que nunca, mas foi tudo bem.”

Publicado no ano passado, “Bilardo - Menotti: La verdadera historia” não registra os últimos passos dos dois protagonistas. César Luis criou uma escola de treinadores e foi nomeado diretor de seleções da AFA. Por não acompanhar a equipe de Messi ao Brasil na Copa América de 2019, foi chamado ao vivo na TV pelo ex-zagueiro Oscar Ruggeri, um bilardista de carteirinha, de “preguiçoso”. Não era a primeira vez que ouvia tal acusação.

Bilardo deixou casa de repouso no ano passado e voltou para seu apartamento em Buenos Aires. Com síndrome de Hakim Adams, doença neurodegenerativa conectada ao Alzheimer, está longe do futebol, que acompanha apenas pela televisão. O aparelho foi desligado para que não soubesse da morte de Maradona, em novembro do ano passado.

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