A minha livraria ideal

Ela ainda não existe, mas devemos perseguir a utopia

Bruno Rodrigues
Futebol Café
6 min readSep 28, 2020

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Libros del Pasaje, ótima livraria de Buenos Aires, mas onde precisei da escada para acessar os livros de futebol, quase no teto (Crédito: Bruno Rodrigues / Futebol Café)

Recentemente, em uma das pouquíssimas vezes que saí voluntariamente de casa nesta quarentena, fui à Livraria da Tarde, em Pinheiros, recuperar um pouco da vida perdida na pandemia. Admiro quem visita uma boa livraria e resiste à tentação de comprar livros —não consigo. Comprei dois: Meninos de Zinco, de Svetlana Aleksiévitch, e Contra Amazon, de Jorge Carrión.

Mônica Carvalho, proprietária da Livraria da Tarde, me viu namorando o livro de Carrión. Olhei a capa, peguei na mão, li a contracapa, devolvi à mesa, andei pela livraria, comentei com a Bruna e, no fim das contas, depois de uma longa paquera, decidi apostar na leitura. Atenta, Mônica comentou isso comigo quando fui pagar, e me explicou qual era o teor da obra, que tem na força do título, vamos reconhecer, um grande poder de atração.

Além de um manifesto contra a gigante de tecnologia, Contra Amazon é um tratado sobre a humanidade dos livros. Carrión escreve sobre a relação do leitor com o bom livreiro, a importância física e histórica da biblioteca, a comunhão entre a livraria de bairro e a editora independente, que enxergam a roda do negócio como uma máquina da qual todos devem participar e tentar prosperar, juntos. O oposto do que Jeff Bezos enxerga com a sua empresa, que usou a literatura como isca para arrecadar prestígio e passar a vender tudo o que vende atualmente.

Com o valor que ele pratica em um livro, você acha mesmo que ele gera lucro vendendo literatura? Claro que não, ele só impede que você o faça direto das editoras ou das livrarias. É o tal do dumping, uma prática desleal. E a cada compra dessas, damos um pequeno golpe em um mercado que já está na lona.

Mas também não sejamos hipócritas. Eu mesmo, na semana em que fui à Livraria da Tarde, recebi em casa o primeiro de dois livros que pedi pela Amazon recentemente — e disse isso a Mônica. Ambos sobre futebol, ambos importados. São obras que eu não vou encontrar aqui, fisicamente. Recorri à Amazon também porque esses dois livros, se importados, me custariam uns meses de parcelas salgadas no cartão de crédito.

E que fique claro, eu vou à Livraria da Tarde ou a qualquer boa livraria de rua sem esperar por isso. Não posso exigir que os meus gostos, e aqui se trata de uma prateleira bastante peculiar, sejam contemplados por todos esses espaços. É uma questão de adequar a expectativa à realidade.

“Cada leitor tem sua própria livraria, sua própria coleção, suas próprias lembranças”, diz Jorge Carrión.

Hoje, na cidade de São Paulo, com exceção dos sebos (que são sempre imprevisíveis, e por isso tão legais), não há um lugar onde eu possa me surpreender com o que vou encontrar futebolisticamente falando.

Quando comecei a ler sobre futebol, cada visita à Livraria Cultura rendia uma nova compra ou, no mínimo, uma nova vontade. Foi assim durante um tempo. Como o Futebol Explica o Mundo, Futebol & Guerra, lembro até de um livro do Bielsa, em espanhol, que namorei por um tempo, mas foi amor de verão, que não sobe serra. Voltei algumas vezes lá e nunca mais o encontrei. Alguém mais rápido que eu fez o favor de comprá-lo.

As novidades se esgotaram em pouco tempo. Foi preciso expandir as fronteiras. E aqui é preciso dizer que, sim, sou um privilegiado. Tive a oportunidade de viajar ao exterior algumas vezes nos últimos anos. Fui para Montevidéu e Madri, a trabalho. Estive em Buenos Aires duas vezes e voltei a Montevidéu, a passeio. Em todas essas viagens, comprei alguns livros (menos do que eu gostaria) e mostrei outros tantos para os leitores do blog.

Esse privilégio foi o que me permitiu trazer tanta novidade à minha própria biblioteca e, consequentemente, ao Futebol Café. E acredito que isso se traduziu em um reconhecimento muito legal de quem acompanhou e acompanha o trabalho. Assim cresceu o blog, e espero que siga crescendo.

Voltando ao cenário local, veio a Editora Grande Área para diminuir a nossa distância com relação ao que há de principal na produção literária, especialmente na Europa. Com ela, chegaram Pep Guardiola, Jürgen Klopp, A Pirâmide Invertida, tudo em português. Mas a Grande Área é uma só, e vale ressaltar o seguinte: é uma editora, de futebol, no Brasil. Atuar e prosperar nesse nicho é como tentar furar o catenaccio do Helenio Herrera. Todo mundo atrás da linha da bola e você com três expulsos, precisando marcar o gol que vai te livrar do rebaixamento.

Há outras pequenas editoras que estão se movimentando e tornam a perspectiva, ao menos para o leitor (que não está envolvido no negócio e não se arrisca com isso), mais interessante. Dolores Editora, essa jovem cheia de sonhos e coração e que tem novidades muito legais para lançar em breve; a Corner com seu braço literário e um olhar para o que está sendo feito além daqui; a Primeiro Lugar, que lá do Rio Grande do Norte vai ganhando o seu espaço em diversos rincões do Brasil; e o Ludopédio, que já começa a colocar em prática, com sua aposta nos livros, o carimbo de qualidade e seriedade que o consagrou como a casa da produção acadêmica sobre futebol no país.

É preciso comemorar esse momento e apoiar ativamente essas empreitadas. Em dois anos, teremos Copa do Mundo e podemos esperar que, até lá, boas novidades surgirão nessas editoras e em outras que vão aproveitar o embalo mundialista para emplacar obras e vendas. Separemos o joio do trigo, claro, mas teremos mais opções, mais livros, mais futebol.

O que ainda não temos, e para mim é a utopia tão sonhada, é um espaço físico que reúna essa produção e que traga outras novidades. Que coloque em evidência a luta das editoras daqui, trabalhando para manter a bola rolando, e incorpore uma parte do que, lá fora, já ocupa as prateleiras, incluindo algumas das melhores revistas publicadas pelo mundo, uma cena cada vez melhor e mais rica. Essa livraria é o sonho de muitos, imagino.

Um espaço onde haverá a humanidade relatada por Carrión. Um lugar no qual o leitor interessado em futebol, mas ainda iniciante, descobrirá um mundo a ser explorado. Ao já iniciado no tema, o livreiro ou a livreira poderão guiá-lo a partir dos seus interesses, abrindo caminhos para novas relações entre os diferentes livros. E ao ávido leitor futeboleiro, o desafio de apresentá-lo ao desconhecido, fazer com que ele se surpreenda ao encontrar determinada(s) obra(s), reconhecendo o valor do que está sendo feito nesse espaço.

Ainda, se possível, que tenha cadeiras e poltronas onde as pessoas possam se sentar para ler e tomar um bom café, que talvez não seja cobrado, pois o espaço é diminuto e não cabe uma cafeteria, mas oferecido com carinho ao visitante. Assim aumentam as chances de que essa pessoa volte, nem que seja apenas pelo café e pela conversa. Já terá valido a pena.

O mais perto que eu cheguei dessa ideia de livraria ideal para o fanático foi a Librería de Fútbol, que é uma utopia também para o próprio dono, o Mateo. Sua livraria de futebol é na verdade um espaço, um cantinho dedicado à literatura futebolística dentro da Bonhomía, uma livraria charmosa de Pocitos, em Montevidéu, que vende todo tipo de livro.

Em Buenos Aires, o Esteban toca a Entre Tiempos, uma livraria, esta sim, dedicada exclusivamente ao futebol. Ele vende revistas antigas, livros sobre clubes das divisões de acesso do futebol argentino, muita coisa que não vai ser encontrada nas grandes redes, como a Ateneo. É louvável, assim como no caso do Mateo, o que faz o Esteban com o seu espaço, onde ele também promove cursos de pesquisa relacionados ao futebol.

Talvez, juntando o cantinho da Bonhomía, que reúne uma boa e atual seleção de livros sobre o tema, com a coragem e o conhecimento do Esteban na Entre Tiempos, eu estaria mais perto do que imagino ser o ideal. Mas ainda não conseguiria chegar lá. Falta ir além, sabendo que é difícil.

A utopia é como a perfeição. Se não vamos conseguir alcançá-la, que ao menos cheguemos perto dela, sempre olhando em sua direção.

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