O início do fim

Um momento emblemático para pontuar a decadência de um ídolo

Pedro Reinert
Galo de Kalsa
4 min readFeb 7, 2020

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Nem faz muito tempo que sentei aqui pra falar dele. Disse que, enquanto o corpo lhe permitir, Vertonghen vai continuar fazendo o trabalho mais sujo do esporte com a elegância de um Rolls-Royce. E, em minha defesa, não tinha como ser diferente. A gente tende a se lambuzar numa ingenuidade quase infantil depois de ganhar um jogo com gol no finzinho.

Nem faz muito tempo, também, que me peguei olhando torto para ele. Vi que aquele futebol, que até outro dia era futebol de primeira prateleira, parecia se atrofiar num misto de indignação e receio. E, em defesa dele, não tinha como ser diferente. Poucos corpos de mais de trinta anos são possantes o suficiente pra resgatar um time em crise jogando lá atrás.

Bem como o do próprio time, o auge de Vertonghen já passou, e agora degringola para um retrato desconhecido

Jan sempre pareceu seguro até demais de si mesmo. Florescia fora de posição, crescia quando jogava sozinho e puxava o jogo para si quando nenhum dos cinco, seis, sete craques ao seu lado não eram capazes de fazê-lo. E é claro que era craque também. Mousa Dembélé não foi o único a dizer que nunca viu um defensor tão bom assim com a bola no pé. Só não se provou como bom centroavante porque faltou oportunidade.

Por tudo isso é que, num primeiro momento, foi tão chocante vê-lo sair de campo inconsolavelmente abatido na última quarta-feira. A vergonha carregada em seus passos rumo ao banco era nítida como uma espinha cutucada, antes mesmo de eu rever o close da TV. E não era, claramente, a vergonha de ser substituído — aquela que tanto jogador acusa toda vez em forma de chilique. Vertonghen queria era cavar um buraco até o subsolo do velho White Hart Lane para não ter que arcar com as consequências de mais um péssimo desempenho pelo clube que defende — o fato da partida ser eliminatória, aliás, afiou ainda mais sua aflição.

O belga é um dos integrantes mais longevos da equipe, titular absoluto desde seu primeiro suspiro no CT em 2012, então imaginei que sair do inferno ao céu com passagens de ida e volta fosse parte de sua rotina. Por que ele ficou tão triste sendo que já vivemos momentos piores? Por que ele se maltrataria tanto por uma má atuação? Por que ele não ligou em expressar sentimentos tão gritantes ao público no meio de um jogo decisivo?

Nenhum jogador serve tão bem de espelho do torcedor quanto um ídolo. No Tottenham de hoje, só Harry Kane está acima de Super Jan na grade de idolatria, e acredite: o que nos incomoda também os incomoda. A crise de identidade, a insatisfação com a pobreza de ideias em campo e a falta de títulos são dores compartilhadas por toda a comunidade envolvida, não só eu e você.

Da mesma forma que nós nos mordemos a cada grande partida mal jogada, o zagueiro também remói cada mínima chance perdida de virar o quadro negativo do avesso. A comemoração descontroladamente passional com a marcação do pênalti que nos classificou para a próxima fase da FA Cup foi um símbolo do alívio na hora em que o peso do mundo caiu de seus ombro. Ali, virou um bom egoísta como todo torcedor.

Aos 32 anos de idade e já estabelecido entre os maiores atletas de sua posição nesse século, Vertonghen dá sinais claros de que sente que já não está bem o suficiente para jogar no nível em que está alocado. A insegurança em cada bote, que nunca antes esteve presente, agora é parte integrante do roteiro. Ele sabe, e sabe que nós sabemos. Acontece. Mas há pouca coisa mais triste do que vê-lo encarar sua própria derrocada enquanto tenta equilibrar seu senso de responsabilidade para com a grande equipe que ajudou a construir.

Se vai se aposentar em Londres ou vai aproveitar o charme de seu declínio em um time à altura, não sou capaz de dizer. Mas digo que único título restante que poderia chegar perto de coroar sua lendária passagem pelo Tottenham deveria ser conquistado agora, logo na época em que seu desempenho já não reflete mais o que seu nome representa. As taças vestem uma cultura ingrata pra caralho.

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