Super-herói de outros dias

Vertonghen mantém-se vigilante para salvar sua idolatria

Pedro Reinert
Galo de Kalsa
4 min readDec 16, 2019

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Quase que aquela sapatada sem ângulo do Lucas acaba sem valer nada, e que pena seria. Pois mesmo que o gosto ruim de ver o valor de um gol bonito sendo cancelado não seja nada novo, parece que agora vai arder um pouco mais. Afinal, não se espera (tanto assim) uma derrocada do enérgico Mourinho em seus primeiros dias como se esperava do letárgico Pochettino em seus últimos.

Visivelmente o time resgatou um espírito briguento e meio carrancudo que, lá pra 2015, fazia cada jogo parecer um filme. Foi incrível rever Eric Dier, a antítese do darwinismo, distribuindo carrinhos tão estúpidos quanto estratégicos, ou até Harry Kane, que vinha sério como uma torre de vigilância, dando peitadas e trancos em cada dividida disputada. Mas a história da equipe que reencontrou seu âmago foi nada além de apoio da narrativa principal por um dia.

É que, olha, eu realmente odeio filme de herói. Sou fã do Batman e de Watchmen, mas acho os Vingadores um enorme saco. Acho que é por causa da intensidade, que é cansativa desde o primeiro suspiro, e a coisa toda vira super forçada. O Batman não salva a humanidade todo ano (só Gotham, e olhe lá, a cada cinco anos?) e os personagens de Zack Snyder (Alan Moore, na verdade) só voltaram à ativa lá por medo de morrer (não, ainda não vi toda a série da HBO). Gosto mais quando uma história surreal de herói ainda tem um quê de realidade. Fica tudo mais interessante — e relacionável — quando você não tem certeza se o protagonista vai vencer no final.

Bom, pelo desenrolar de domingo, imaginava-se que o Tottenham acabaria derrotado em território inimigo, e Jan Vertonghen vinha sendo o protagonista do jeito errado: cagando praticamente tudo o que tocava. Deu bola no pé de atacante, atrasou interceptações, deu bote no vácuo e perdeu metade dos desarmes que tentou. Aí foi lá, nos acréscimos, em seu esplendor loiro com olhos de gelo, e fez o gol da vitória debaixo daquela chuva de final de filme que dramatiza e romantiza absolutamente qualquer lancezinho.

O camisa 5, que é dos mais altos do time, estranhamente não tinha subido pra área em nenhum outro escanteio ou lance de bola parada ao longo da partida. Apareceu só no último e derradeiro, surgindo de um canto despretensioso que a marcação adversária parecia nem dar notícia, e cabeceou a bola do jogo completamente sozinho, sem precisar sair do chão, como se estivesse brincando com o filho no quintal. Desfecho cinematográfico que sublinha nos créditos o nome de quem merece tudo o que veio, vem e virá de bom.

Super Jan é ídolo em todos os gostos e em todas as óticas. Da erupção precoce comandada por AVB no Old Trafford à canonização integral frente ao Borussia Dortmund no Wembley, o belga é um protagonista nada discreto, sempre adepto de métodos não muito ortodoxos de improviso em cena (ver aqui e ver aqui). E como o tipo de herói que eu gosto, não salva o dia todo dia: seus atos vêm em pitadas, separadas por um intervalo às vezes doloroso de tão longo (#GetJanAGoal já foi trending topic), mas são sempre mais gostosos de assistir do que os dos outros.

Em seu último ano de contrato no clube que defende há sete anos, o zagueiro opera entre a incerteza sobre seu futuro profissional e a vontade de carregar o progresso da equipe — no qual tem mais méritos do que quase todos os outros — adiante, para além dessa nova zona cinza.

Quer dizer, Jan não é nenhum super herói moderno — é super herói de outros dias que já passaram -, mas por ter sensos de responsabilidade e liderança aflorados (como todo bom Super Alguma Coisa do passado), mantém-se vigilante até que outro tome seu posto. Enquanto o corpo permitir, vai continuar fazendo o trabalho mais sujo do esporte com a elegância de um Rolls-Royce.

32 anos. Jogando com a sabedoria de um veterano em amistoso de caridade e a destreza de um moleque com fome de mostrar serviço. Vertonghen está cada vez mais estabelecido entre os maiores atletas de sua posição nesse século — e não por um gol contra o Wolverhampton, não, mas por cada vez que encarnou o super-herói que gosta de ser, mesmo sem precisar abrir a camisa imaginária no peito estufado.

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