O sucesso ricocheteou

Despedidas dignas ainda são necessárias

Pedro Reinert
Galo de Kalsa
5 min readNov 21, 2019

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“Todo nos dijo adiós, todo se aleja.

La memoria no acuña su moneda.

Y sin embargo hay algo que se queda.

Y sin embargo hay algo que se queja.”

Jorge Luis Borges, ‘Son los ríos’

A beleza das despedidas engrandeceram ocasiões que já eram imensas por si só, e (também) por isso, diferentemente de Daniel Levy, acredito no poder de bem-tratar estes fins. Acho que todo desfecho deve ser devidamente celebrado para que crie-se um legado, um patrimônio ou só uma boa memória a partir de qualquer ocasião que seja minimamente importante para alguém — como essa é. Creio que seja dessa forma que, a partir dos eventuais términos, conseguimos construir algumas coisas valiosas na vida.

Argentino, Guevarista e Bielsista, Mauricio é tão romântico quanto eu gosto de pensar que sou. E de certo, carregando esse sentimentalismo como virtude, perdeu noites em claro procurando formas de exercitar a autoestima de um time que tanto apanhou das circunstâncias (e dos rivais). Porque a obstinação por si só não é suficiente para estimular o desejo de inverter concepções. Não é fácil tornar temido e atrevido quem por tanto tempo foi olhado e julgado com desdém e desalinho.

O Tottenham é, sim, um time grande. Só ficou muito tempo sem se comportar como um. E por isso ainda é tão notável o desconforto do clube (e da torcida) em ser bom de fato. Culpa total do treinador que guiou seu grupo para além das próprias expectativas.

Das eliminatórias da Europa League para uma final de Champions League; Pochettino orquestrou uma revolução além de qualquer prognóstico

Nossa voz ainda soa engraçada e meio descrente quando vamos contar que, lá pra 2017, a gente acordava cedo se preocupando não com a vitória, mas com como ela viria. A inquietação vinha por conta da briga pela artilharia, do recorde doméstico de invencibilidade, da vontade em ver Dele Alli dar mais assistências num ano que Özil e David Silva juntos, e não pelo resultado. O resultado viria, afinal. O jogo era (quase sempre) nosso. Gozamos do luxo de poder se atentar aos detalhes.

No fundo (às vezes bem no fundo), esperávamos um estraçalho todo final de semana, e pelas primeiras vezes em uma eternidade, não seríamos o time a ser estraçalhado. Dilaceramos equipes jogando um futebol tão espetacular e cativante que até o mais pessimista dos torcedores traumatizados e o mais cético dos críticos rivais acreditou que tudo aquilo era pra valer.

Quer dizer, não importa qual é o seu jeito de torcer ou qual é a sua relação com disputas de título em grandes campeonatos; eu sei que em pelo menos um instante deliciosamente assustador dos últimos cinco anos você se pegou pensando “caralho, a gente vai ser campeão”. E eu sei que poucos momentos da sua vida foram tão gostosos quanto aquele breve momento. Pois saiba, e não se esqueça, que Mauricio Pochettino é o pai daquele seu sorriso. E de praticamente todos os outros que vieram depois.

É bom que a revolução do clube tenha nome e sobrenome. O futebol é uma cultura ingrata até sem querer. Nos últimos meses de comando, a inteligência tática e a mentoria técnica de outrora deram lugar à esquizofrenia e dissimulação, carregadas até anteontem por decisões do VAR e lampejos individuais, então é importante que essa derrocada seja só um detalhe indigesto ao invés de foco da história. O que o argentino fez com o clube é impossível de ser replicado em qualquer nível.

A virada surreal diante do Ajax foi grande a ponto de ofuscar as tantas outras histórias que a fizeram possível, e Poch merece créditos por cada uma delas

A cada minuto de futebol disputado pós-Madrid, porém, dava pra ver com clareza a drenagem total do brilho e da magia da equipe que reluzia como poucas até outro dia. O choque de realidade veio em porções; raios fatais de luz e calor para quem voava a caminho do Sol com os olhos fechados.

Como eu já disse, essa é a grande merda de subir o sarrafo: o ar lá de cima é gostoso a ponto de viciar, te deixar mal acostumado, sem querer voltar para o que noutro dia era rotina. Depois de dezenas de apitos finais cheios de ressentimento e a dias da última vitória fora de casa fazer aniversário, as energias se enxugaram tanto que nem os limões foram capazes de contornar.

O sucesso ricocheteia. E o maior pecado de Pochettino, portanto, foi ter levado seu time tão longe mesmo depois do auge (que, diga-se, foi atingido no exato momento do gol de Eriksen contra o Real Madrid, no Wembley, e dali em diante tudo o que veio foi um misto de sorte e resiliência). Tentando restabelecer a pose, o argentino tentou dar continuidade a uma narrativa ilusória, que é aquela na qual o Tottenham ainda é um time jovem, elétrico e espirituoso, e naturalmente falhou, porque nada disso é verdade depois de meia década.

Só que foi essa meia década que definiu o tom da prosa. Foi aquele Pochettino, o dos cinco anos antes, que definiu o que esse Pochettino, o dos cinco anos depois, deveria ser. Foi seu trabalho audacioso e impecável que permitiu ao clube se elevar tanto e se sentir tão cheio de si a ponto de crescer sobre seus novos alicerces e achar que poderia tratá-lo como qualquer outro treinador.

Pochettino ficou sozinho e o rojão ficou maior do dia pra noite. Quem vai segurá-lo agora, porém, tem mãos mais calejadas

Por mais justa que fosse sua demissão em centenas de outros contextos, Mauricio sequer teve a oportunidade de se despedir propriamente de seus comandados. Daniel Levy, segundo maior careca filho da puta de todos os carecas filhos da puta e famoso mesquinho, coordenou as ações com filha da putice e mesquinhez ímpares até para seus padrões. O homem que nos carregou das eliminatórias da Europa League para a final da Champions League foi desligado numa noite de terça-feira com a casa vazia, sem um puto de um repórter do lado de fora da grade para registrar a maior escarrada na história recente do clube.

O fim também é parte de todo ciclo. Faz mal quem briga para evitá-los a qualquer custo — pois à mesma medida em que novas coisas precisam começar, outras tantas devem terminar — e se engana quem crê que todo ponto final é negativo. Ainda assim, é seguro dizer que o próximo ponto final terá o mesmo impacto que este. Pois quando Mourinho for embora, as mensagens até podem vir com aquele emoji de troféu, mas não terão esse mesmo tom que faz toda lágrima encontrar uma pontinha de sorriso, inspirando gratidão e orgulho em suas formas mais nuas. É o tal do sentimentalismo como virtude. Assim sabemos que qualquer conquista adiante terá cheiro de mate.

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