Não há nada tão ruim…

Quando um não quer, dois não brigam, mas o Tottenham precisa é de uma briga para sair do buraco

Pedro Reinert
Galo de Kalsa
6 min readOct 29, 2019

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Eu sei que você se lembra do refrão. Time mais jovem do campeonato, futebol vistoso e agressivo, solidez defensiva sem precedentes, identidade e cultura celebradas gastando pouco, presente e futuro concebidos em casa. Duas finais, duas (?) disputas de título, novo estádio subindo e a Nike amarrando a história com a tagline mais precisa possível em sua campanha inaugural, “Watch us rise”.

É que agora, quem não gritou, não grita mais. Acabou o passeio. Precisam colocar outra moeda para brincar outra vez. Mas ninguém separou outro centavo porque ninguém sabia quanto tempo durava a volta. E ninguém se tocou o bastante, porque ninguém tinha noção do tamanho do buraco. E ninguém viu o cabelo arrepiando devagar, porque o principal culpado não tem cabelo para arrepiar.

Também merece um punhado de culpa quem, bem como na última rodada (e em duas centenas de outras antes), atentou-se aos problemas e optou por tentar corrigi-los só a cinco minutos do fim. A questão é que quando se está em desvantagem, o apito final vem à galope, sem tempo de asfixiar. E já o que se aplica ao campo se aplica à vida e vice versa, é justo dizer que, em todos os contextos, Lo Celso entrou tarde demais.

Sabemos melhor do que muitas outras torcidas que não há nada tão ruim que não possa piorar. O Tottenham sempre se encaixou na narrativa como um lembrete de existe alguma beleza no fracasso; problema disso é que os revezes são parte intrínseca da nossa identidade — temos derrotas mais celebradas que vitórias e campanhas de vice mais memoráveis que as de títulos. Mas essa é a grande merda de termos subido o sarrafo flertando com títulos: o ar lá de cima é gostoso a ponto de viciar, te deixar mal acostumado, sem querer voltar para o que noutro dia foi a realidade.

A virada sofrida em Liverpool, no domingo, não seria motivo para perder o sono em outros tempos. Fomos superados pelo melhor time do campeonato — talvez do continente — jogando longe de casa. Mas doeu o tanto que doeu porque Eriksen, Dele, Rose e Alderweireld, entre tantos outros, nos catapultaram para outro nível. E porque Eriksen, Dele, Rose e Alderweireld, agora, são parte do pepino.

Nenhum ponto foi conquistado onde nenhum ponto era esperado. Ou era?

Fefo e Nino já trouxeram essa questão pra cá. Lembro com um azedume na garganta que, lá pra 2015 ou 16, para exercitar a arrogância que ainda descobríamos, publiquei no finado One Hotspur o provocativo título: “Liverpool virou um Tottenham? Ainda não, falta melhorar”. Como dizem, life comes at you fast. Eles melhoraram, melhoraram, melhoraram e nos venceram no maior palco do planeta. Nós, em contraste, não quisermos evoluir; nos agarramos cegamente na primeira fórmula de sucesso que encontramos até a fonte esgotar. E agora que esgotou, perambulamos como um vira-lata perdido na madrugada, com medo de apanhar e sem ter a quem recorrer.

Nem um eventual empate (ou até vitória) fisgado em Anfield teria sido realmente satisfatório, porque não somos mais um time que levanta o queixo antes de entrar na briga. Perdemos o apelo, o vigor, a energia e o brio. Pouco inspirada, anti-propositiva, acanhada e sem nenhum capricho nas execuções, a equipe tem penado para trocar três ou quatro passes em sequência contra adversários um pouquinho mais organizados, e não é essencialmente por falta de qualidade. É como se Mauricio Pochettino tivesse passado o verão num estágio intensivo com Mano Menezes.

Boa parte do plantel lilywhite já deu o que tinha que dar; carregaram o clube para a prateleira de cima e hoje estão em busca de novos ares ao invés de explorarem novos limites vestindo branco e azul — e não há nada de errado nisso. O problema é fazer dos atletas conformados uma parte da solução desse sufocante quebra-cabeças.

O grande ponto dessa verborragia desesperada não é clamar por novas contratações ou escancarar a estratégia falida de montagem do plantel. O recrutamento não é o passo primordial da manutenção do elenco. Mais urgente é desovar a carne podre do elenco atual, afastando determinados atletas do time titular e, em seguida, se Deus quiser, e Ele quer, do clube.

Dele Alli ter ouvido o apito final de dentro de campo é a prova cabal de que Pochettino perdeu a completamente a cabeça. O príncipe nigeriano destoa completamente das outras figuras do ataque, com reflexo vagaroso, movimentação pouco contundente e uma pobreza (ou covardia) criativa frustrante para quem o via solucionar os mais complicados imbróglios com um só toque na bola há pouco tempo atrás. Sua simbiose com o resto da equipe nitidamente morreu.

De outro lado, com oitenta e oito minutos e dez meses de atraso, Christian Eriksen saiu de campo, e sentiu a substituição como se fosse mais um gol sofrido pelos Spurs: ou seja, não ligou muito. Agora, não é contornando os feitos do dinamarquês em campo para dimensionar sua atuação, porque ele de fato não fez muito. O que fala mais alto é o fato de Paulo Gazzaniga, o goleiro, ter criado mais chances (1) do que o meia (0) na partida, ou de Giovani Lo Celso, que esteve em campo por míseros seis minutos, ter dado dez passes a menos que o armador titular ao longo de todo o jogo.

Fechando a lista dos supracitados, Alderweireld e Rose são dois que ainda mantém uma média razoável de bons jogos, mas claramente apagam em momentos cruciais, porque é isso que acontece com quem não está mais com a cabeça onde deveria estar. Além destes, Aurier, Walker-Peters, Dier e quiçá até Lloris são ingredientes de uma receita que já apodreceu.

O próprio Pochettino já parece estar sem saber que semblante mostrar às câmeras. Sem as reflexões explosivas de outrora, fica impossível saber se o mister está acomodado, submisso, paciente ou descrente. De saco cheio, pelo menos, é certeza. A apatia do argentino de sangue quente enfurnado no banco de reservas diante de um resultado adverso diz mais do que qualquer reclamação em voz alta.

Talvez o Fim esteja mesmo chegando

Para o mal e para o bem, a transformação deve sempre começar por dentro. Assim como a reconstrução da equipe pelas mãos de Poch em 2015 se fez olhando antes para a própria casa, o clube precisa se desfazer dos atletas nocivos antes de correr o risco de contaminar novos recrutas. É como querer plantar flores num jardim com ervas daninhas; implorar pra dar merda.

Antes que você ensaie sentir alguma esperança, lembre-se do time que escolheu pra torcer: ainda temos dois longos meses adiante até que algum suspiro de mudança possa ressoar, e até lá, o elenco curtíssimo, a teimosia do treinador, o braço curto do presidente e as cláusulas de bônus por partida não vão permitir que muita coisa seja diferente.

A maré mudou de vez e não há águas calmas à vista. Espero que seu estômago já esteja preparado.

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