MSX, Kojima, Death Stranding

Emmanoel Ferreira
Game Clube
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10 min readApr 19, 2020

Dando continuidade à série Os game studies em tempos de quarentena, inicio este texto retomando uma plataforma computacional que me é muito cara, o MSX[i]. Lançada no Japão em 1983 e desenvolvida por Kazuhiko — Kay — Nishi, à época presidente da ASCII Corporation, editora e distribuidora Microsoft naquele país, o MSX tinha como base “filosófica”, se assim podemos chamar, o fato de ser uma plataforma que privilegiava a compatibilidade de software e hardware, independente da empresa que fabricasse seus computadores, bastando que seguissem especificações técnicas standard, determinadas pela MSX Association. No Japão, muitas empresas produziram seus próprios modelos de MSX, como Sony, Sanyo, Panasonic, Canon, entre outras. Além do Japão, o MSX também seria lançado em alguns países europeus, em alguns países árabes, na extinta URSS, e, last but not least, no Brasil, através das empresas Gradiente e Sharp/Epcom, no ano de 1985. Além do uso como computadores pessoais, para finalidades de programação, por exemplo, um dos grandes usos do MSX foi como plataforma de jogos, devido às suas configurações que propiciavam esta aplicação.

Folheto do MSX Turbo R (Panasonic FS-A1ST), última linha de computadores MSX, lançada em 1990

Dentre as diversas empresas que desenvolveram jogos para o MSX, talvez a mais importante tenha sido a cinquentenária Konami, bastante conhecida entre os gamers de hoje por séries como Castlevania, Silent Hill, Pro Evolution Soccer e Metal Gear Solid. Sua história com o MSX começa cedo, no mesmo ano de lançamento da plataforma, e vai até 1993, quando o último modelo de MSX deixou de ser fabricado. Nesses dez anos, foram mais de 70 jogos lançados, incluindo aquele que seria o “primogênito” de uma das mais bem sucedidas franquias da história dos videogames: Metal Gear, desenvolvido por Hideo Kojima e lançado no ano de 1987 para o MSX2[ii].

Esse texto faz parte de uma série de conteúdos sobre o jogar em tempos de quarentena. Fique de olho em nossas redes: novos textos serão publicados todas as semanas!

Além do Metal Gear original, Kojima desenvolveu outros quatro jogos para o MSX: Penguin Adventure, um platformer lançado em 1986; Snatcher, um adventure gráfico cyberpunk lançado em 1988; SD Snatcher, um RPG lançado em 1989; e Metal Gear 2: Solid Snake, lançado em 1990. Aqui, uma nota se faz importante: não devemos confundir Metal Gear 2: Solid Snake com Snake’s Revenge: Metal Gear 2, lançado para a plataforma NES na América do Norte em 1990 e que não contou com a participação do game designer. Kojima permaneceu na Konami até o final de 2015, quando anunciou que sua in-house developer, Kojima Productions, deixaria sua “casa” — a própria Konami — para se transformar num estúdio independente.

À esquerda: Tela de abertura de Penguin Adventure, primeiro jogo de Hideo Kojima (à direita) para a o MSX

Hideo Kojima é notório por jogos que desenvolvem sentimentos e emoções bastante antagônicas, do tipo “ame-o ou deixe-o”, sendo a série Metal Gear Solid um bom exemplo deste perfil. No entanto, em novembro de 2019, depois de muita espera e muitos rumores, um novo candidato a ocupar o posto da série Metal Gear foi lançado em todo o mundo: Death Stranding, o primeiro jogo de Kojima após ter deixado sua “terra natal” Konami. É justamente sobre Death Stranding que gostaria de conversar daqui por diante. Peço ainda licença ao caro leitor para que eu realize uma mudança brusca de chave gramatical (e estilística), da terceira para a primeira pessoa, já que em tempos de quarentena e distanciamento social as interlocuções deste gênero acabaram ficando por demais reduzidas, e um toque de pessoalidade vem bastante a calhar.

Desde que fomos forçados a evitar sair às ruas por conta da pandemia causada pelo novo coronavírus, o até então simples fato de “ficar em casa” tem se tornado um desafio de criatividade, resiliência e novas descobertas. Para mim, a data inicial desta quarentena foi (mais ou menos) o dia 16 de março. De lá para cá, retomei os estudos de violão de forma mais metódica (instrumento que pratico, de forma muito intermitente, confesso, desde os 10 anos de idade), comecei a leitura de alguns livros, “maratonei” algumas séries de TV, além de trabalhar em atividades acadêmicas e demais afazeres cotidianos. E os tão queridos games? Que espaço ocuparam neste primeiro mês de quarentena?

Por incrível que pareça, não conseguia encontrar nenhum título que me “prendesse” de forma efetiva. Foi quando, após muitos questionamentos e ponderações — e, claro, uma “promoção de Páscoa” da Sony — resolvi adquirir Death Stranding, há exatamente uma semana. Fato é que já tinha lido diversos reviews sobre o jogo, desde seu lançamento, com opiniões bastante divergentes (lembram-se do “ame-o ou deixe-o”?), o que de certa forma atrasou meu contato com o jogo. Hoje, após cerca de 10 horas de gameplay (o que é pouquíssimo para um jogo desta amplitude), gostaria de tecer algumas considerações, spoiler-free, sobre a mais recente obra de Kojima que, ao menos para mim, ganhou novos sentidos em tempos de uma real pandemia mundial.

Coincidentemente ou não, profeticamente ou não (em relação à atual situação mundial), Death Stranding tem como plot narrativo a saga de Sam Bridges (personagem controlado pelo jogador), um “entregador” de pedidos numa América do Norte devastada por um grande acontecimento que fez com que seus cidadãos remanescentes vivessem isolados uns dos outros, em espécies de “bunkers” que servem de proteção contra chuvas que, quando em contato com o corpo humano, aceleram rapidamente seu processo envelhecimento; ou ainda contra outros agentes nocivos aos seres humanos. A missão de Sam (resumidamente, para evitar spoilers) é realizar entregas de itens essenciais para que os cidadãos norte-americanos (e a humanidade, como é dito no jogo), possa se reestruturar e se “reconectar”. Apesar de parecer um mote bastante banal ou ordinário, é justamente nesta simplicidade que está, ao meu ver, a grandiosidade de Death Stranding.

Cena da primeira missão (Prólogo) de Death Stranding (screenshot do autor)

Ao contrário da literatura ou do cinema (juro que não queria fazer esta comparação, já tão batida em textos sobre games), em que boa parte de seu repertório reside em histórias e acontecimentos cotidianos e “banais”, ao menos desde o realismo literário ou o neorrealismo cinematográfico, poucos são os games que têm como foco ações “ordinárias” que os seres humanos realizam diariamente. Destes, grande parte está entre o que chamamos de indie games, jogos desenvolvidos por equipes pequenas e independentes, e alguns poucos entre os Triple-A, jogos desenvolvidos por grandes empresas, como Konami, EA e Blizzard. Dentre os jogos Triple-A, alguns títulos vêm à mente (a maioria no gênero simulador), como as séries The Sims, Eurotruck Simulator e Street Cleaning Simulator. Dentre os indies, podemos citar Every Day the Same Dream, Homeless, Papers, Please, Bury Me, My Love, entre diversos outros. Deste modo, um dos motivos de Death Stranding ter causado certo espanto, desde que seu conteúdo foi anunciado ao público, foi o fato de sua mecânica girar em torno de entregas de pedidos através da América do Norte. Não foram poucas as piadas feitas em torno deste fato, tendo o jogo recebido rótulos como Sedex Simulator. Também não foram poucos os reviews a taxarem o jogo de entediante, cansativo ou repetitivo. É justamente sobre esse aspecto que gostaria de me aprofundar, encaminhando-me para o final deste post.

Desde pelo menos a “primeira revolução industrial”, no século XVIII, as dinâmicas de trabalho, sobretudo para os operários, tornaram-se cada vez mais divididas e repetitivas. Com a recente informatização de processos produtivos, esta divisão tornou-se ainda mais acentuada, e as atividades profissionais mais socialmente reconhecidas e bem remuneradas ficaram cada vez mais concentradas — via de regra — naquelas em cuja essência o trabalho intelectual é o principal capital. Atividades profissionais cujo foco está no trabalho “braçal” acabaram por ser as menos reconhecidas socialmente e, infelizmente, menos remuneradas, como por exemplo operários da construção civil, trabalhadores de limpeza e serviços gerais, motoristas (incluindo de aplicativos), e… entregadores. Sobre essas últimas duas categorias, tem sido recorrente, nos últimos anos, a discussão sobre a precarização de suas atividades, no mais das vezes destituídas de direitos trabalhistas, dentro do que se convencionou chamar de economia de plataforma, ou ainda, gig economy.

No entanto, em tempos de pandemia e lockdown, serviços de delivery têm sido cada vez mais requisitados em todo o mundo, assim como no Brasil. Estimativas falam de 30% de crescimento desta atividade desde quando cidades brasileiras adotaram medidas de isolamento social e fechamento de seus comércios[iii]. Ao mesmo tempo, muitas das empresas proprietárias das plataformas de delivery demoraram a fornecer equipamentos de proteção individual (EPIs) aos seus entregadores, como máscaras e álcool em gel, assim como auxílios financeiros para eventuais afastamentos por conta da COVID-19, deixando assim o “elo mais fraco” — e, vale ressaltar, o elo essencial da atividade de entrega — em situação de vulnerabilidade. Entregadores que se arriscam diariamente a contrair o novo coronavírus e ainda contagiar seus familiares, já que dependem deste trabalho e não podem se dar “ao luxo” de estar em isolamento social, pois encontram-se desprovidos de proteções trabalhistas.

Retornando para Death Stranding, logo nas primeiras horas de jogo já é possível perceber o mesmo padrão de comportamento por parte dos proprietários, chefes, governantes, ou quaisquer “elos mais fortes” dentro do que restou de América do Norte: trancados em seus bunkers altamente protegidos, nas “cidades nós” das Cidades Unidas da América, dependem dos entregadores — no jogo, chamados de porters — para realizar o que talvez seja a missão mais importante naquele cenário: reconectar a humanidade, retirando-a do isolamento. E, assim como na vida “real” (fora do jogo), esses porters deverão arriscar suas vidas para levar suprimentos aos seus destinatários, protegendo-se de chuvas tóxicas, agentes contaminantes e ainda outros seres humanos, chamados de mulas, que poderão roubar sua carga e deixá-lo em maus lençóis junto aos seus superiores. Assim como na vida real, a culpa recairá, por suposto, ao porter, ao entregador, a Sam Bridges. Assim como na gig economy, é Sam quem deverá conseguir seu meio de transporte, caso não queira fazer suas entregas a pé, machucando seus pés após quilômetros e mais quilômetros de caminhadas, escaladas, travessias de rios, com cargas que podem chegar aos 120 Kg sobre suas costas.

Sam Bridges durante uma de suas entregas (screenshot do autor)

Ao longo de sua história, a tendência dos games foi majoritariamente a de colocar o jogador no controle do personagem forte, habilidoso e com acesso a recursos como armas, poderes mágicos, entre outros, numa jornada imponente, épica. Talvez a grandiosidade de Death Stranding esteja justamente na quebra deste paradigma, ao colocar o jogador no controle de um personagem “abandonado”, “encalhado” em sua situação nada confortável (daí uma das acepções do Stranding do título do jogo), contando apenas com sua força corporal e alguns escassos recursos, numa jornada repetitiva, mundana, banal e pouco valorizada de fato. Jornada esta que tem como responsabilidade apenas a salvaguarda da humanidade. Obra do acaso ou genialidade de Kojima, nunca uma obra de vídeo game fez tanto sentido em sua relação entre mundo do jogo e mundo “fora do jogo”, no exato momento em que interajo com seu gameplay.

Outro aspecto significante desta obra (acho que já é hora de chamarmos os games — ou ao menos alguns deles — desta forma) é sua belíssima trilha sonora, disponível no álbum intitulado “Death Stranding: Songs from the Video Game” (Masterworks, 2020). Das suas 22 faixas, 18 foram compostas e são performadas por Low Roar, nome do projeto de música eletrônica/post-rock de Ryan Karazija, músico californiano que atualmente vive em Varsóvia, Polônia, após ter vivido em Reykjavík, Islândia, onde o projeto foi iniciado no ano de 2010. Sobre sua terra natal, é Ryan a dizer: “É onde eu cresci, é onde passei uma grande parte da minha vida. Mas não sinto falta do custo de vida, e acho que não teria conseguido realizar o projeto [Low Roar] do jeito que estou fazendo se eu tivesse ficado preso por lá”[iv]. Mais uma vez a relação, fortuita ou não, de se estar preso, encalhado, stranded. Mais uma vez o percurso, os entrepostos, as passagens, como forma de disjunção e reconexão, ao mesmo tempo.

Sei que ainda é cedo para dar uma opinião final sobre Death Stranding, pois meu tempo de jogo ainda é pequeno tendo em vista a expectativa de duração de seu gameplay completo (entre 50 e 80 horas em média, de acordo com o site howlongtobeat.com). Todavia, até onde joguei, posso dizer que é uma obra que ficará marcada na história dos videogames. Por fim, gostaria de citar uma conhecida frase do designer e arquiteto Charles Eames (1907–1978) e que, ao menos para mim, faz bastante sentido no contexto deste post: “Eventualmente, tudo se conecta”.

Emmanoel Ferreira é professor do Departamento de Estudos Culturais e Mídia e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFF. Líder do mediaLudens: grupo de pesquisa em mídias digitais, experiência e ludicidade e coordenador do Game Clube UFF. E-mail: emmanoferreira@midia.uff.br.

[i] MSX é um acrônimo para Machines with Software Exchangeability (Máquinas com Intercambialidade de Software).

[ii] A plataforma MSX teve três upgrades em seus dez anos de manufatura: o MSX2, lançado em 1985, o MSX2+, lançado em 1988, e o MSX Turbo R, lançado em 1990, este último tendo sido fabricado apenas pela Panasonic.

[iii] Cf. https://www.huffpostbrasil.com/entry/delivery-comida-coronavirus_br_5e6fcd76c5b63c3b6482a20a/. Acesso em: 18/04/2020.

[iv] Cf. https://48hills.org/2019/12/meet-low-roar-hideo-kojimas-favorite-bay-bred-indie-rocker/. Acesso em: 18/04/2020.

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