Rosamonte: O futebol movido à erva-mate

Bruno Núñez
Gandulla
Published in
12 min readMar 25, 2019
Plantel campeão do Club Deportivo Rosamonte. O clube da companhia de erva-mate ganhou o título da Liga Apostoleña.

Ilex Paraguariensis, mais conhecida como erva-mate. Chimarrão, mate ou tereré, a infusão e o jeito de beber essa planta ganhou diversas denominações na América do Sul. A origem vem dos povos originários do continente, inicialmente pelos guaranis até chegar aos caingangues, mapuches, charrúas e quíchuas, que consumiam e aproveitavam seus benefícios desde períodos pré-colombianos. Nem as invasões e colonizações europeias terminaram com este ritual, que resiste e cresce a cada dia. As sociedades da Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Paraguai e Uruguai adotaram — alguns de maneira regional e outros nacionalmente — e industrializaram esse costume. A folha ganhou o mundo e virou peça importante da economia do continente. Em uma pequena cidade argentina, parte desses rendimentos ajudaram a fomentar outra prática popular deste lugar do mundo, o futebol.

Mapa que mostra a localização de Apóstoles, na Argentina, perto da fronteira com o Brasil.
A localização da cidade da Província de Misiones, Argentina.

Apóstoles é uma pequena cidade argentina de aproximadamente 25 mil habitantes, localizada na província de Misiones, um território espremido pelas fronteiras brasileira e paraguaia. O município é a capital da erva-mate da Argentina. O título não é pouca coisa, já que o país é o principal produtor da planta no mundo, à frente do Brasil e do Paraguai. “A importância desse produto para a cidade é muito grande, já que as empresas exportam para diversas partes do mundo, principalmente Europa e Ásia”, explica Jorge Esteban Fernández, radialista local da FM BAND NEWS 89.7. O lugar abriga várias ervateiras — companhias do setor — e é sede da Festa Nacional e Internacional da Erva-Mate. Lá, Demetrio Hreñuk, filho de imigrantes ucranianos, fundou um negócio dedicada à colheita da Ilex Paraguariensis em 1936. No ano de 1966, ele adquiriu seu primeiro engenho e iniciou a comercialização da erva-mate elaborada, o que marcou o nascimento de uma gigante do segmento, a Rosamonte.

Instalações da Rosamonte, grande companhia de erva-mate na Argentina.
As instalações da Rosamonte em Apóstoles (Divulgação)
Ramón Hreñuk, el Nene Hreñuk, fundador da Rosamonte, gigante empresa da erva-mate na Argentina.
‘’Nene’’ Hreñuk, um apaixonado pelos esportes e responsável pelo império Rosamonte. Ao seu lado, as emblemáticas embalagens da marca (Divulgação)

Um dos filhos do fundador da companhia era Ramón Eduardo “Nene” Hreñuk, um fanático do esporte, principalmente do futebol e do automobilismo. Chegou a jogar pelo Tuyuti da capital da erva-mate quando jovem, mas ele preferiu ajudar a patrocinar esportistas e agremiações, tanto profissionais quanto amadores, quando assumiu a presidência da Rosamonte. O sucesso da empresa é outorgado a ele, que transformou o negócio familiar em um império. Ele aproveitou o bom momento do negócio para fundar seu próprio clube em Apóstoles. Quem ajuda a contar a história da equipe é o atual técnico do time, Luciano Rodríguez, de apenas 22 anos.

Em abril de 1981, foi fundado o Club Social y Deportivo Centinela, um time de policiais de Apóstoles, onde alguns funcionários da ervateira jogavam. Com o tempo, a agremiação passou a representar a empresa de “Nene” Hreñuk. Em dezembro de 1992, passou a se chamar Club Deportivo Rosamonte, elenco que vestiria as mesmas cores das embalagens da marca: vermelho e preto. A equipe passou a ser respeitada na cidade e na província de Misiones com grandes elencos e ganhando títulos da Liga Apostoleña de Fútbol — o campeonato do município e arredores que dá uma vaga ao Torneio Provincial de Misiones (responsável por definir os representantes da região em certames nacionais) — mas o elenco da erva-mate tinha ambições maiores na Argentina.

Logo do Club Deportivo Rosamonte.

O auge do yerbatero (ervateiro, em português), apelido que ganhou por sua relação com a indústria da erva-mate, veio nos anos 90. A equipe de Apóstoles fez parte do Torneo del Interior, na época a terceira divisão do futebol argentino, e ficou perto do acesso para a B Nacional. Na edição de 1994–95, o clube chegou às instâncias decisivas com um grande apoio da empresa e protagonizou duelos épicos no estádio General Manuel Belgrano. O técnico desse elenco era Jorge Maldonado, o capitão do Independiente multicampeão da Copa Libertadores e famoso por eternizar o movimento de saudação com os braços para cima em direção à torcida. Até um brasileiro fazia parte do plantel, Jorge Waldir da Silva, mais conhecido como Jorginho da Silva. O Rosamonte passou por três fases até chegar ao quadrangular final, mas o clube foi superado por apenas três pontos pelo campeão San Martín de San Juan.

Equipe posada do Club Deportivo Rosamonte que disputou o Torneo del Interior 1994–95.
O elenco que quase fez história no Torneo del Interior 1994–95

Em 1998, o Rosamonte mudou sua denominação para Club Deportivo Yerbatero, que até então era o seu apelido. “Como era uma empresa, muita gente não gostava do nome. Mudaram para incluir todos os trabalhadores ervateiros da região, porque Apóstoles é a terra da festa da erva-mate e tem muitas empresas do ramo, mas basicamente era o mesmo clube com as mesmas cores”, explica Luciano Rodríguez. O clube participou do Torneo Argentino B — quarto nível da Argentina — de 1998 a 2000 com o novo nome.

Mas a mudança não durou muito tempo, já que em 2011 o clube voltava a se chamar Rosamonte. “O clube jogou o Torneo Argentino C — quinta divisão da Argentina para clubes do interior na época — de 2010 e 2011. Em 2012 disputou o Argentino B, mas em 2013 renunciou sua vaga”. Essa foi a última vez que o time de Apóstoles deu as caras em competições nacionais.

Entre 2012 e 2014, a equipe foi tricampeã em Apóstoles e bicampeã da província de Misiones, mas depois a situação mudou de figura. “O clube decaiu porque a empresa deixou de apoiar economicamente, desde então foi tudo na base do pulmão”, afirma o atual técnico do Rosamonte. Diferente de outras agremiações surgidas de empresas, como Bayer Leverkusen, PSV e Sporting Cristal, o time de Misiones ficou sem rumo.

O técnico Luciano Rodríguez, do Rosamonte.
O técnico Luciano Rodríguez

Em 2017, o Rosamonte quase foi rebaixado da Liga Apostoleña. É aí que entra Luciano Rodríguez, nosso guia pela história da equipe. Filho do presidente Juan Carlos Rodríguez, dirigente do clube desde 2007, ele ganhou a oportunidade de treinar o elenco principal com apenas 22 anos de idade. “Eu era da base do time e tinha acabado de me formar como jornalista esportivo. Eu gostava da ideia de ser técnico, conhecia os jogadores, então meu pai me deu essa chance. Deu certo, o plantel foi o campeão de 2018 depois de quatro anos sem títulos. Espero que em 2019 possamos repetir a dose”, afirma. Além de ser o estrategista do yerbatero, o jovem administra um campo de futebol society, um negócio familiar, e também é o responsável pelas redes sociais da agremiação.

A equipe já teve jogadores que atuaram em equipes grandes, como Adrián Guillermo, formado no Boca Juniors de Carlos Bianchi e companheiro de Juan Román Riquelme, Nahuel Iribarren, atualmente no Platense da B Nacional, e Claudio Daniel González (leia mais abaixo sobre sua trajetória em Apóstoles). Porém, o momento do Rosamonte é outro. “Atualmente, muitos membros do plantel são funcionários da empresa”, explica Rodríguez. É o caso do meio-campista Matías Pascua.

“Eu trabalho no setor de frigorífico da empresa, onde realizo a tarefa de expedição. Estou há três anos na Rosamonte”, conta Pascua, natural de Apóstoles. Antes de chegar ao clube yerbatero, Matías atuou por Centinela e Tuyuti, um dos rivais da cidade. Com 25 anos, o atleta acha difícil que possa se tornar um profissional do futebol. “Por conta da idade, eu vejo esse sonho longe. Mas espero poder jogar torneios importantes com o nosso time”, afirma.

O jogador Matías Páscua, do Rosamonte.
Matías Pascua, meio-campista do Rosamonte.

Trabalhar na empresa e no clube pode causar problemas no calendário de um atleta amador. “Muitas vezes os horários de serviço coincidem com os treinamentos e não consigo ir. Em uma ocasião adquiri uma autorização para jogar uma partida, sair antes da labuta, mas no dia seguinte tive que compensar essas horas”, revela Matías Pascua sobre os sacrifícios que teve que fazer em prol do futebol.

Mas trabalho e futebol não são distantes para essas pessoas. Pense que depois de passar horas na empresa, os jogadores consumem o principal produto da Rosamonte na hora dos exercícios esportivos. “No vestiário e nos treinos nunca falta o nosso mate e um som com boa música”, diz Pascua. “Aqui se toma quente. Amargo ou doce já é uma questão pessoal”, revela o radialista Jorge Esteban Fernández. O futebol e a Ilex Paraguariensis têm mais semelhanças que imaginamos. Em Apóstoles, esses dois costumes se misturam e não podem ser distinguidos um do outro.

O jogador que leva o clube no apelido

Claúdio González, o Yerbatero González, com a camisa do Rosamonte.
Claudio González com a camisa do Yerbatero

Claudio Daniel González ganhou fama no futebol argentino como atacante. Porém, seu sobrenome vinha acompanhado do apelido ‘’Yerbatero’’, o ervateiro, por onde chegava, seja em Avellaneda, Córdoba ou Calama. Sua alcunha deve-se à sua passagem pelo Club Deportivo Rosamonte, quando ainda não era reconhecido entre os grandes times da elite sul-americana.

“Eu jogava no Mitre de Posadas, nessa época era o Torneo del Interior, e disputei diversos partidos contra o Rosamonte. Fui bem nesses jogos. ‘’Nene’’ Hreñuk (o dono da empresa) sempre estava no estádio e um dia me comentaram que ele queria que eu fosse para o clube dele. Eu lembro o dia em que ele me ligou, até a hora e tudo (risos), umas seis da tarde. Atendi o telefone e era ele, no começo achei que era um trote de um amigo (risos). Ele me perguntou se eu queria fazer parte do plantel do time de Apóstoles. Eu respondi que sim porque era um passo importante na minha carreira”, conta o ‘’Yerbatero’’ González.

“Na verdade, foi muito bom para a minha carreira. Eu tive em duas etapas no clube, na primeira fase joguei com Alejandro Maggio, Miguel Salinas e o brasileiro Jorginho da Silva”, relata o Yerbatero, que chegou ao Rosamonte no ano de 1994. Porém, a primeira passagem foi curta, pois logo chamou a atenção do Estudiantes de La Plata treinado por Miguel Ángel Russo e foi embora de Apóstoles. A experiência no pincharrata foi curta.

Yerbatero González e os elencos do Rosamonte e do Estudiantes de La Plata, respectivamente (Acervo Claudio González)

“Depois fui pro Patronato, onde fui dirigido por Gustavo Alfaro, atual técnico do Boca Juniors. Eu tenho uma longa história com esse profissional. Ele me quis levar pro Atlético Rafaela posteriormente, só que eu decidi ir para o Quilmes. Infelizmente não consegui fechar com o clube e pedi a oportunidade de fazer parte do plantel dele, mas ele não quis por eu ter negado anteriormente, entendi a situação por ele ser um cara muito correto. Apesar disso, temos uma boa relação”, revela o ex-jogador.

González voltou para Misiones e acertou novamente com o elenco de Apóstoles. Porém, o nome já havia mudado. O Rosamonte se chamava Yerbatero. O jogador fez parte do plantel que disputou o Argentino B em 1998 e, então, retornou ao Patronato. Essa mudança de denominação da equipe foi fundamental para o resto da carreira do atleta de Posadas.

“Eu estava no Patronato e o clube queria pagar um valor pelo empréstimo, e o pessoal do Rosamonte queria outro montante. Teve um par de dias de negociações. Aí um dia eu fui treinar e um jornalista de Paraná (cidade argentina) me perguntou: ‘o que acontece com o Yerbatero que não cede?’ Referindo-se à questão com o clube de Apóstoles. E desde então, toda vez que ele me via me chamava de Yerbatero, e aí ficou. Foi esse jornalista de Paraná que me batizou”, revela González.

Claudio González, o Yerbatero González, com a camisa do Independiente de Avellaneda.
“Yerbatero” no Independiente

Como ‘’Yerbatero’’ González, o ex-jogador chegou à primeira divisão da Argentina em 2001, aos 25 anos, algo que era muito complicado e raro para um atleta vindo de torneios interioranos. “Na época era difícil. Hoje pelas redes sociais é mais fácil chegar a um clube de elite. Claro que nesse ano eu fui bem. Um dos meus companheiros no Patronato era Gerardo ‘’La Vieja’’ Reinoso, ele me perguntou a idade, de que lugar eu vinha e me fez o contato com Enzo Trossero, o técnico do Independiente. Era um caminho longo do Argentino A até a Primeira, mas superei. No ano que cheguei joguei a Copa Mercosul de 2001. Foi um passo enorme na minha carreira e uma grande satisfação por todo o sacrifício que tinha feito”, conta.

Depois do Independiente, ‘’Yerbatero’’ González foi para o Talleres de Córdoba em 2002, onde ganhou destaque, principalmente com os técnicos José Omar Pastoriza e Sergio ‘’Checho’’ Batista. Lá, fez gols importantes, como um dos tentos contra o San Martín de Mendoza pela Promocción 2003 — duelo que valia o rebaixamento –, que garantiu o time cordobês um ano mais na elite argentina.

O ‘’Yerbatero’’ depois foi para o Rosario Central, em 2004. Novamente dirigido por Miguel Ángel Russo, ele fez parte do elenco que foi eliminado pelo São Paulo nas oitavas da Copa Libertadores daquele ano. Em 2005, González deixou a Argentina e acertou com o Cobreloa do Chile, onde sua carreira sofreria um grande baque.

Em 14 jogos, González havia marcado 10 gols com a camisa do Cobreloa, mas o destino foi cruel com o atacante misionero. “Distanciei-me dos gramados por conta de uma lesão de tíbia e perônio que sofri no Chile”, revela ‘’Yerbatero’’. Ele chegou a retornar ao Talleres em 2006, mas já não era o mesmo.

Seu último clube foi o General Paz Juniors, de Córdoba, aos 31 anos. “Em 2007, ano que deixei o futebol profissional, um dia me levantei e o corpo e a cabeça me disseram que até aqui tinham chegado”, explica.

Atualmente, ‘’Yerbatero” González vive em Villa María, na província de Córdoba. Seu filho Nacho, de 10 anos, já segue os passos do pai e faz parte da base do Talleres. Já o ex-atacante ensina os futuros craques da região. “Falei com o pessoal do Talleres, que colocaria uma filial de uma escolinha deles aqui em Villa Maria. Deu certo, estamos jogando campeonatos com crianças de 6 a 11 anos. Inclusive temos seis garotos formados aqui nas camadas juvenis do clube cordobês. E eu gosto disso, ensinar desde o começo, como o bebê que precisa engatinhar antes de andar. Prefiro os moleques do que os jogadores feitos. Os mais velhos já têm muitas manhas”, finaliza.

As diversas imagens da carreira do ‘’Yerbatero’’: Talleres, Mitre de Posadas, Rosario Central e Cobreloa (no sentido horário).

Patrocinador do esporte argentino

A paixão de Ramón ‘’Nene’’ Hreñuk pelo esporte não ficou limitado ao clube de sua empresa. A Rosamonte ficou famosa na Argentina por patrocinar grandes clubes de futebol. O maior deles foi o Racing de Avellaneda, entre 1991 e 1994. O Chacarita Juniors também recebeu ajuda da marca da erva-mate e contou com o logo estampado da companhia entre 1993 e 1995. O Belgrano de Córdoba foi outro apoiado pelos apostolenhos entre 1991 e 1992.

Chacarita, Racing e Belgrano foram apoiados pela empresa de Apóstoles

Em Misiones, a Rosamonte patrocinou o clube mais tradicional da região, o Guaraní Antonio Franco, de Posadas. O Crucero del Norte, de Garupá, foi o último time da província a disputar a elite do Campeonato Argentino e contou com a marca apostolenha em sua camisa no ano de 2015. Na vizinha Corrientes, a companhia de ‘’Nene’’ Hreñuk apoiou o Deportivo Mandiyú nos anos 90.

Camisas do Guaraní Antonio Franco, Crucero del Norte e Deportivo Mandiyú, todos patrocinados pela Rosamonte.
As camisas de Guaraní Antonio Franco, Crucero del Norte e Deportivo Mandiyú, respectivamente.

A outra paixão de ‘’Nene’’ era o automobilismo. Ele ajudou a reformar o Autódromo de Posadas e o tornou umas das principais pistas da Argentina. Agora, batizado de Autódromo Rosamonte, o recinto recebe corridas de Turismo Carretera e Turismo Nacional, categorias importantes no país. Além disso, a empresa é proprietária da Rosamonte Racing Team, equipe que compete no Superbike Argentino.

O grande incentivador já não está. Ramon ‘’Nene’’ Hreñuk faleceu em fevereiro de 2019, aos 72 anos, mas deixou um legado esportivo enorme na Argentina.

Artículo en español: https://medium.com/gandulla-es/rosamonte-el-f%C3%BAtbol-movido-a-yerba-mate-1790249faaed

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Bruno Núñez
Gandulla

Jornalista formado na Faculdade Cásper Líbero. Chileno-brasileiro.