Porquê algo? (Parte 1)

GBU Portugal
Por Linhas Tortas
Published in
4 min readNov 29, 2018

Estes artigos da autoria do matemático Henrique Guerreiro acompanham o episódio “Porque existe algo em vez de nada” do podcast RazoávelMente, que pode ser ouvido no YouTube e no SoundCloud. Lê a segunda parte aqui.

Talvez uma das maiores questões que tem assolado as mentes humanas, das mais simples às mais sofisticadas, é saber a razão da sua própria existência. Não só da sua existência em particular, mas também de toda e alguma coisa em geral. Afinal de contas, porque estamos aqui? Porque existe algo em vez de nada? Dizia Heidegger[1] que esta é mesmo a “primeira das questões”:

“Porque há algo em vez de nada?” Essa é a questão. Presumivelmente não é uma questão arbitrária: “porque há algo em vez de nada” — esta é claramente a primeira das questões. Claro que não é a primeira no sentido cronológico. Tanto indivíduos como povos fazem muitas questões ao longo da sua passagem histórica pelo tempo. Eles exportam, investigam e testam todo o tipo de coisas até chegaram à questão: “porque há algo em vez de nada?”. Muitos nunca chegam a esta questão de todo, se chegar à questão significa não apenas ouvir e ler a interrogação, mas também perguntar a questão, ou seja, tomar a posição acerca dela, colocá-la, coagir-se até ao estado deste questionamento.”

Nós, humanos, temos o costume de encontrar perguntas cuja análise apenas nos vai acrescentar cabelos brancos à cabeça. Temos o costume de procurar o conhecimento, o que é talvez uma das características que nos diferencia do resto do reino animal.

Pode dizer-se que uma das tarefas do filósofo é pegar nestas grandes questões e, através de ferramentas sistemáticas e rigorosas, procurar uma resposta. A série de artigos que aqui se inicia tem como objetivo, de uma forma acessível, iniciar a fascinante análise desta simples mas profunda questão.

(…) a primeira questão a ser colocada é: “porque existe algo em vez de nada?”. Pois o nada é mais simples e fácil do que o algo. Além disso, suponhamos que alguma coisa tem de existir, devemos então dar uma razão pela qual elas existem e não o contrário [ou seja, não existirem]. — Gottfried W. Leibnitz[2]

O primeiro passo consiste em compreender exatamente o que significa a nossa questão e que tipo de resposta podemos encontrar. Talvez possa parecer surpreendente mas é um passo frequentemente esquecido. Ao perguntarmos “Porque existe algo em vez de nada”, devemos começar por definir “algo”, “nada” e saber que tipo de resposta queremos ao perguntar “porquê”. Imaginemos um grande vazio no espaço, seria esse grande vazio “nada”? Não no sentido desta questão. Para esta questão é preciso definir “nada” num sentido mais profundo, “mais último”. Um grande vazio no espaço não seria “nada”, porque nomeadamente existia o espaço que estava vazio. Por “nada” entende-se a ausência de toda e qualquer coisa, física ou metafísica, e por “algo” qualquer coisa em geral. Assim, espaço vazio ou outras entidades físicas nunca poderão ser “nada”. Vários cientistas têm afirmado encontrar a explicação de “algo” a partir de “nada” utilizando uma definição errada da palavra “nada”. Observem-se as seguintes citações do físico Lawrence Krauss[3]:

A mecânica quântica não só nos diz que o nada se pode tornar em algo, mas que o nada se torna sempre em algo.

O nada é instável. O nada produz sempre alguma coisa na mecânica quântica.

No seu livro, “A Universe from Nothing”, Krauss não utiliza a palavra “nada” no sentido que a questão da existência no seu sentido mais profundo exige. Em vez disso, Krauss utiliza o termo no sentido de expressar um certo estado físico do Universo, com propriedades físicas específicas. Seguidamente utiliza este estado para, de forma especulativa, explicar o Universo que observamos. Finalmente equivoca o termo e afirma ter respondido à nossa grande questão da existência. Foi por esta razão que o livro de Krauss foi amplamente criticado por vários cientistas como David Albert[4].

Ao perguntar “porquê”, o tipo de resposta que procuramos é uma explicação. Ou seja, um conjunto de verdades que expliquem o facto de que existe algo em vez de nada. Ao fazer este tipo de pergunta devemos estar abertos para a possibilidade de não haver resposta, isto é, poderá não haver nenhuma explicação para o facto de “algo” existir em vez de “nada”. O nosso primeiro passo deve ser portanto averiguar a existência desta mesma explicação.

Finalmente, devemos perguntar-nos que “algo” é que estamos certos de que existe. Poderá ser difícil agradar a todos (por exemplo, os solipsistas apenas acreditam na sua própria existência) mas a entidade que acolhe maior consenso na votação da existência é o nosso Universo físico. Talvez se conseguirmos averiguar o porquê do nosso Universo existir, podemos explicar a nossa existência (pelo menos a nossa parte física) e possivelmente encontrar pistas para a explicação de tudo o que existe em geral.

Agora, com a nossa questão rigorosamente definida, estamos preparados para começar a construir uma resposta. Esta será a tarefa do próximo artigo nesta série: averiguar se o Universo tem ou não uma explicação.

  1. Heidegger, Martin — “An Introduction to Metaphysics”, Yale University Press, New Haven and London (1959), pp. 7–8.
  2. Leibnitz, Gottfried W. — “Principles of Nature and Grace” (1714), Artigo 7º.
  3. Debate contra William Lane Craig, Sydney, 2013.
  4. Albert, David — “On the Origin of Everything”, The New York Times Sunday Book Review (25 Abril 2012).

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