Doenças infecciosas emergentes na fronteira do desmatamento

Rodrigo Abreu Carvalho
GEMA IE/UFRJ
Published in
8 min readMay 2, 2020
Animais apreendidos pelos fiscais do Ibama, jacaré, veado e tatu. Créditos: Hermínio Lacerda / Ibama

A pandemia do coronavírus da síndrome respiratória aguda grave 2 (SARS-CoV-2) é, como o nome sugere, o segundo surto da doença causada pela família de vírus coronaviridae em menos de 20 anos. Entre 2002 e 2004 mais de 8000 pessoas foram infectadas e 774 morreram em 29 países e territórios de todo o mundo [1]. O novo coronavírus, batizado de COVID-19, já infectou quase 3 milhões de pessoas em 212 países, contabilizando mais de 202 mil mortes [2] - números que certamente subestimam o alcance do vírus [3] em apenas alguns meses após o começo de sua transmissão entre humanos.

As doenças infecciosas emergentes [4] (EIDs, na sigla em inglês) como a SARS, são cada vez mais comuns. De acordo com o relatório de 2007 da Organização Mundial da Saúde (OMS)[5], desde a década de 70, cerca de 40 novas doenças infecciosas foram descobertas. Dentre as mais conhecidas e danosas encontram-se a Chikungunya, a Zika, a Dengue, a gripe aviária, a gripe suína e o Ebola, além de uma outra variação do coronavírus denominada pela sigla MERS (Middle Eastern Respiratory Syndrom); todas estas são zoonoses, isto é, doenças infecciosas que têm origem no contato dos seres humanos com outros animais. A relevância das zoonoses para a saúde humana é notória, como aponta o estudo “Global trends in emerging infectious diseases”, publicado em 2008 pela revista Nature. Partindo de uma base de dados com 335 surtos de EIDs entre 1940 e 2004, o estudo aponta que estes eventos são dominados pelas zoonoses (60,3% dos casos), dos quais 71,8% têm origem na vida selvagem [6].

Causas Ambientais

Existem diversos fatores que influem na emergência de novas doenças infecciosas ou no ressurgimento de outras, já antes conhecidas. Algumas epidemias resultam diretamente de processos evolutivos naturais dos patógenos ao longo do tempo. Há, porém, aquelas que surgem como consequência da ação humana, mais especificamente como consequência da degradação do meio ambiente. Num estudo de 2015 apresentado no Fórum Econômico Mundial, em Davos, pesquisadores da Ecohealth Alliance estimaram que nos 17 anos anteriores 31% dos surtos epidêmicos (e.g., Nipah [7], Ebola e Zika) estavam ligados ao desmatamento [8], isto é, ligados à perda de habitats naturais e a redução da diversidade biológica. Na Amazônia, o desmatamento cria condições, para a proliferação do Anopheles darlingi — o mais importante transmissor de malária na região. As larvas desse mosquito se proliferam em poças d’água parcialmente abrigadas do sol, como as que se formam nas estradas abertas dentro da floresta e no limite entre a mata e a área recém desmatada.

Espigão do Oeste (RO) — Garimpo ilegal “Do Lage” dentro da TI Roosevelt, território dos indígenas da etnia Cinta Larga, em outubro de 2015. Foto: Marcela Bonfim/Amazônia Real

Na contramão, a maior diversidade biológica dos ecossistemas não degradados proporciona um “efeito de diluição” [9], como é conhecido na biologia [10], da transmissão de patologias. Naquelas comunidades onde há uma maior variação das espécies suscetíveis a infecção por um determinado patógeno, o impacto em uma dada espécie é menor. A presença de predadores e competidores na cadeia trófica alteram o comportamento e a densidade dos hospedeiros, reduzindo sua proliferação.

Esse efeito de diluição pode ser exemplificado com um caso recente de surto da febre maculosa. São Paulo é o estado brasileiro com a maior ocorrência dessa doença transmitida pelo carrapato-estrela. A taxa de letalidade da doença no ano passado alcançou impressionantes 56% — dada a dificuldade de diagnóstico — superando até mesmo as mortes por dengue no estado. O pesquisador Marcelo Bahia Labruna, da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da Universidade de São Paulo (FMVZ/USP), estuda a doença e nos explica em que circunstâncias ela ocorre [11]. O carrapato-estrela pode se proliferar nas populações de capivaras e foi justamente o que aconteceu num condomínio na cidade de Itu que serviu de estudo de caso para Labruna. A construção do condomínio alterou a paisagem e promoveu condições excepcionais de reprodução das capivaras, grama fresca e água em abundância, afastando predadores e outros animais que competem pelo alimento, isto é, eliminou o “efeito de diluição”. O estudo demonstrou que a presença da bactéria só ocorre onde há uma população muito acima da média dos carrapatos-estrela que, por sua vez, depende do tamanho da população de capivaras. A explicação disso é que apenas 0,02% dos carrapatos carregam a bactéria que causa a febre maculosa e, portanto, a doença só se torna uma ameaça onde há um desequilíbrio ambiental. A capivara infectada atua como hospedeiro-amplificador e é justamente o crescimento populacional explosivo da capivara em função da alteração das condições naturais que permite o crescimento da população de carrapatos-estrela. O controle reprodutivo das capivaras em ambientes não naturais erradica a bactéria na região em apenas alguns anos.

Não faltam exemplos da emergência e ressurgimento de doenças infecciosas como resultado do desequilíbrio ambiental. Especialistas observam um rápido crescimento dessas doenças nas últimas décadas conforme avançamos sobre os remanescentes de vegetação nativa e fazemos uso indiscriminado da vida selvagem. Ao ocuparmos áreas antes preservadas, reduzindo a biodiversidade, patógenos adaptados aos ciclos da vida selvagem passam a coevoluir com as populações humanas. Não é por menos que muitos pesquisadores apontam para a alta probabilidade da emergência de uma nova doença infecciosa tropical na Amazônia, conforme avança o desmatamento [12].

Economia das Doenças

Para melhor entendermos a atual pandemia de COVID-19 devemos lembrar ainda de outra prática condenável, o tráfico de animais silvestres. O tamanho dessa indústria surpreende: “Atualmente, o comércio ilegal de vida silvestre, o qual inclui a fauna e seus produtos, movimenta de 10 a 20 bilhões de dólares por ano É a terceira atividade ilícita do mundo, depois das armas e das drogas. O Brasil participa com cerca de 5% a 15% do total mundial.”[13]

A captura e o consumo em larga escala de animais silvestres é a causa da extinção de muitas espécies nos trópicos [14]. Produtores rurais frequentemente dependem desses animais para subsistência, mas também, de forma crescente, encontram na comercialização destes uma fonte de renda que pode superar em muito os ganhos obtidos pelo trabalho no campo. Esses mercados, na China e em outros países, são defendidos por autoridades locais como uma forma de saída da pobreza para muitas populações rurais. Isso porque esses “produtos” são altamente demandados pelos seus supostos benefícios medicinais ou simplesmente pela sua raridade, o que lhes confere um preço bastante alto [15].

A desigualdade econômica e social amplifica também às consequências das pandemias e dos desastres socioambientais [16]. Não resta dúvidas da maior vulnerabilidade dos 12 milhões de moradores de favelas às doenças infecciosas, como é o caso bastante conhecido da alta incidência de tuberculose na Rocinha [17]. A ausência de serviços e infraestrutura pública à disposição dessas populações se reflete ainda de forma mais clara nas diferenças impressionantes de expectativa de vida [18] que variam em mais de 15 anos entre populações vizinhas. No contexto de uma pandemia, aqueles que podem se isolam e ainda demandam a continuidade das atividades essenciais (inclusive aquelas que possibilitam o isolamento em si) mas, que expõem os trabalhadores ao contágio sem nenhuma contrapartida em termos de direitos e melhores remunerações. Em suma, as questões ambientais e epidemiológicas estão estritamente vinculadas à desigualdade social, tanto na origem como nas consequências, algo reconhecido pelos principais pesquisadores e instituições internacionais [19].

Pelo exposto, entendemos que quaisquer medidas preventivas ou combativas devam incluir a dimensão econômica. Para tanto, economistas e biólogos, cada vez mais, fazem uso do conceito de serviços ambientais, uma forma de se referir aos benefícios econômicos provenientes do meio ambiente. A lista é infindável, obviamente, pois em última instância a nossa vida depende diretamente dos ciclos biogeoquímicos e da diversidade biológica que os sustenta. Entretanto, procuramos isolar alguns desses serviços, passíveis de quantificação, com o intuito de realizar uma análise parcial de custo-benefício dos empreendimentos econômicos. Com isso, podemos apontar mais claramente as deseconomias que surgem da degradação ambiental, isto é, podemos demonstrar que os custos de atividades que agridem o meio ambiente superam seus benefícios - em termos estritamente econômicos.

Partindo desse entendimento, alguns pesquisadores vinculados a iniciativa EcoHealth Alliance recentemente iniciaram um projeto em parceria com governos locais para implementar programas de compensação para produtores rurais. As compensações são oferecidas como forma de incentivo para a preservação dos ambientes naturais o que, por sua vez, contribui para reduzir a proliferação e a emergência de doenças infecciosas. Em outras palavras, propõe-se incluir a contenção de doenças na lista de benefícios dos serviços ecossistêmicos: “A equipe vem trabalhando na parte malaia da ilha de Bornéu para avaliar o custo exato da malária, item a item, colocando na ponta do lápis cada leito hospitalar e cada seringa utilizada pelos médicos. Descobriram [20] que, em média, o governo malaio gasta cerca de US$5 mil para tratar cada novo paciente com malária na região — em algumas áreas, isso é muito superior ao que gastam com o controle da malária.” [21]

O prejuízo econômico supera os ganhos que podem ser obtidos ao longo do tempo com a devastação dos remanescentes de vegetação nativa. Esse fato pode ser usado como argumento financeiro convincente para a preservação ambiental. Espera-se que, com isso, possamos incluir a motivação econômica na preservação da vida como um todo.

Referências

[1] https://www.businessinsider.com/deadly-sars-virus-history-2003-in-photos-2020-2

[2] https://covid19.who.int/, acessado em 28.04.2020

[3] https://www.dw.com/pt-br/subnotifica%C3%A7%C3%A3o-dificulta-combate-%C3%A0-covid-19-no-brasil/a-52919120

[4] De acordo com o glossário da Baylor College of Medicine, doenças infecciosas emergentes são novas infecções que surgem nas populações humanas ou aquelas cuja incidência ou dispersão geográfica estão em franca expansão ou ameaçam expandir no futuro próximo. https://www.bcm.edu/departments/molecular-virology-and-microbiology/emerging-infections-and-biodefense/emerging-infectious-diseases

[5] https://www.who.int/whr/2007/en/ (p.10)

[6] https://www.nature.com/articles/nature06536

[7] O surto do vírus Nipah, altamente letal, foi consequência do desmatamento das florestas tropicais na Indonésia, que forçou a população nativa de morcegos a migrar para áreas de ocupação humana na Malásia, infectando suínos e seus criadores. https://www.nationalgeographicbrasil.com/meio-ambiente/2019/12/desmatamento-esta-causando-aumento-de-doencas-infecciosas-em-humanos

[8] https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC4507309/ ; este ano já registramos um aumento do desmatamento na Amazônia em relação ao ano passado, sobre isso ver: http://terrabrasilis.dpi.inpe.br/app/map/alerts?hl=pt-br

[9] O mesmo princípio do efeito de diluição é aplicado na agropecuária através do controle biológico de pragas, que faz uso da biodiversidade para evitar perdas nas lavouras, nas pastagens e até na piscicultura. Não faltam exemplos de sucesso nessa área e o setor tende a crescer, conforme as pragas tornam-se resistentes aos agrotóxicos que as combatem.

[10] https://www.nature.com/articles/srep31314; https://jeb.biologists.org/content/213/6/961

[11] https://teses.usp.br/teses/disponiveis/10/10134/tde-27062019-101117/en.php

[12] http://conexaoplaneta.com.br/blog/o-proximo-coronavirus-vira-da-amazonia-com-o-avanco-do-desmatamento/?fbclid=IwAR29hS5tC_YBBTFLG4hrif24-tpGi7YcP3MJiCDd4N7-_ZEzYbgJj7tMwC4

[13]http://www.IBAMA.gov.br/on line/artigos/artigo18.html

[14] https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S016953470300123X?casa_token=vIqnbFImJ2gAAAAA:d29c4fD0tuilHwaGXjcqaF_sYzOwPbYcUJyq-eJzeZahmVF6pfV3qvKat1mC09yobL7aNThXH6y4

[15] https://saude.estadao.com.br/noticias/geral,mercados-de-animais-silvestres-na-china-podem-estar-ligados-ao-coronavirus,70003178557

[16] https://medium.com/gema-ie-ufrj/o-desastre-nada-natural-da-covid-19-91ff4de4a262

[17] https://brasil.elpais.com/brasil/2015/09/01/politica/1441120198_053979.html

[18] http://www.data.rio/datasets/%C3%ADndice-de-desenvolvimento-humano-idh-municipal-por-ordem-de-idh-segundo-os-bairros-ou-grupo-de-bairros-no-munic%C3%ADpio-do-rio-de-janeiro-em-1991-2000-

[19] https://nacoesunidas.org/desigualdades-ameacam-sustentabilidade-das-economias-alerta-unesco/

[20] https://www.ecohealthalliance.org/wp-content/uploads/2019/09/IDEEAL_report_final.pdf ; https://www.nationalgeographicbrasil.com/meio-ambiente/2019/12/desmatamento-esta-causando-aumento-de-doencas-infecciosas-em-humanos

[21] https://www.nationalgeographicbrasil.com/meio-ambiente/2019/12/desmatamento-esta-causando-aumento-de-doencas-infecciosas-em-humanos

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