O Capital de Costa-Gavras e o surrealismo de Maguma
Seguindo as linhas de seu cinema político (Adultos na Sala, Amém, O Quarto Poder, dentre outros), o cineasta grego Costa-Gavras lançou em 2012, na esteira da Crise na Zona do Euro, um dos seus melhores filmes, O Capital, que narra a estória do banqueiro Marc Tourneuil (interpretado por Gad Elmaleh) e sua guerra em busca do poder absoluto no banco fictício Phenix. Após a indicação de Marc como sucessor pelo então presidente da instituição (que precisa se afastar do cargo devido à “descoberta” de uma câncer de próstata), passamos a acompanhar as tramas, os conluios e as traições protagonizadas pelo novo presidente e sua alta cúpula de diretores, sedentos pelo poder e pelo dinheiro como fim em si mesmo.
O engraçado (e trágico) ao assistir a película é que a busca pelo topo parece ser construída pelos próprios personagens, ditada pelas escolhas e pelo livre-arbítrio de todas aquelas figuras pequenas e mesquinhas, mas o que de fato Costa-Gavras quer nos mostrar é que tal como na grande obra literária O Cortiço de Aluísio Azevedo, temos a presença de um personagem maior, para além das atuações. Se o cortiço ganha vida entre os encontros e desencontros de João Romão, Rita Baiana e Jerônimo, temos também no filme um personagem onipresente e imanente à vida de todos, Gavras nos apresenta tal ator como força potente e imaterial, em um contexto de financeirização extrema, fruto do Capitalismo Tardio¹. Em uma análise superficial, por mais que Marc pareça ser o único personagem digno dos holofotes, mas ele não é, temos na verdade dois protagonistas, e me arrisco a dizer que um é mais importante que o outro: o criador e sua criatura, ou em outras palavras, o Capital e sua marionete gestora Marc Tourneuil.
1.Ernest Mandel define o Capitalismo Tardio (ou Neocapitalismo) como o momento pós-Segunda Guerra Mundial (1939–1945), período esse marcado pela expansão do processo de acumulação (via finanças), da aceleração das inovações tecnológicas e do acentuamento das contradições internas capitalistas.
Esse Capital (ou O Deus Dinheiro), tão belamente ilustrado em um mundo surrealista² pelo artista espanhol Maguma, é o protagonista maior que dita a estória, os rumos, as escolhas e os objetivos alcançados pelos personagens da obra cinematográfica, ignorantes (talvez, excetuando-se Marc em alguns momentos de consciência) de seus papéis como marionetes, peças de um contexto, de uma conjuntura muito maior do que suas ambições jamais conseguiriam conceber.
2.O surrealismo foi uma das vanguardas artísticas europeias que surgiu em Paris no início do século XX, em reação ao racionalismo e ao materialismo da sociedade ocidental. O surrealismo propõe a valorização da fantasia, da loucura e a utilização da reação automática. Nessa perspectiva, o artista deve deixar-se levar pelo impulso, registrando tudo o que lhe vier à mente, sem se preocupar com a lógica.
O Deus Dinheiro ditando o jogo
O filme apresenta fundamentalmente dois atos principais, o primeiro se refere à necessidade do banco Phenix em maximizar os lucros de seus acionistas, e para isso, Marc decide criar, como roupagem, um programa de denúncia de assédios cometidos por funcionários e diretores (aconselhado por sua mulher que lhe diz para agir como Mao- Tsé Tung (Mao Zedong) na Revolução Cultural “utilizando as bases para acabar com seus rivais”). Na vitrine das boas intenções capitalistas, Marc se coloca em uma posição de responsabilidade social, preocupado com as transgressões ocorridas dentro de seu banco.
A demissão de milhares de funcionários, que irão aumentar a taxa de desemprego na França e no mundo não importa, em contraste, as ações subiriam de preço, pois o que realmente importa é a maximização do lucro dos acionistas, já balbuciava Milton Friedman há algumas décadas. Em um outro post escrito aqui no blog, trato das responsabilidades sociais das empresas no capitalismo moderno, em uma visão um pouco mais otimista, admito, pesando prós e contras acerca da existência de empresários mais palatáveis (Luíza Trajano) do que outros (Luciano Hang), mas também reconheço que não devemos nos enganar tanto, em maior ou menor grau, Marc Tourneuil é quase que como um estereótipo radical de figuras com as quais convivemos hoje em dia. As atitudes de Marc — em praticamente todas as questões do filme — podem ser resumidas com as palavras ditas por ele na cena em que o personagem concede uma entrevista no evento/exposição elitista de nome “O Luxo é um direito”. Ao falar sobre a importância da democracia (e da democracia do lucro), Marc nos vomita seus pensamentos:
“Eu não sabia que dizer bobagens era divertido. Daqui pra frente, aceitaria todas as entrevistas”
Não menos importante — e talvez o mais profundo — , o segundo ato trata das chantagens de um grupo de investidores americanos majoritários com o Phenix, que exigem a compra do obscuro banco japonês Mitzuko, em uma jogada antecipada por Tourneil, que percebe a armação (não quero me aprofundar nos detalhes, para não estragar a experiência de quem ainda não assistiu ao filme). Independente das maquinações mesquinhas, que visam sempre o dinheiro e o lucro, e por mais incrível que possa parecer, dado o ego e a empáfia de Marc, o mesmo entende que não passa de uma figura descartável, decorativa, a trabalho não apenas do “capitalismo cowboy” americano, mas também do incontrolável, que solapa o mundo em uma torrente de consumismo materializado em inúmeros brinquedos e equipamentos eletrônicos que enchem o porta-malas de seu carro, algo que o próprio Tourneuil percebe após fugir do jantar em família, por conta de um embate ideológico entre ele e seu tio Bruno (a figura crítica, o sabotador das reuniões familiares, aquele que causa o climão). No jantar em família, Bruno acusa Marc pelas demissões maciças feitas pelo Phenix e por perpetrar a tripla sangria dos bancos para com os cidadãos:
- A Bolsa quer sangue, você realoca, os funcionários perdem o emprego.
- Você os sangra como clientes.
- Pressiona os Estados endividados, e quem paga é o cidadão. Como o funcionário é cliente e cidadão, você os ferra três vezes.
Confrontado, Marc rebate o tio com um sarcasmo hedonista, ao frisar que o sonho de juventude do tio foi de fato concretizado, a internacionalização chegou, o dinheiro e o trabalho não possuem fronteiras, vangloriando-se dos benefícios perversos de etapas das cadeias produtivas, que se “talvez” se utilizam do trabalho infantil, ao mínimo (e de alguma forma) também as estão alimentando, independente da precariedade e da exploração. Um aspecto interessante do personagem de Marc diz respeito às suas repentinas tomadas de consciência, seja quando seus sogros lhe perguntam de quanto vai ser o seu salário na presidência do banco ou quando um funcionário demitido que anda passando por dificuldades lhe pede ajuda. Parece existir dentro de Marc um animal, pronto para invocar o homem cordial³ do fundo de suas entranhas, que o domina em rompantes imagéticos de fúria ou de amor.
3.Um homem dominado pelo coração, ou seja, muito afável por um lado, mas, por outro, também muito impulsivo e por vezes até violento.
Tais ações intempestivas se restringem apenas à cabeça de nosso protagonista secundário (ou menos importante), dada a sua incapacidade de exercer uma ação para além de suas funções administrativas e catalisadoras.
Para além do tio de Marc, temos também outra figura importante, em certa medida menos crítica/combativa e mais idealista, Maud Baron, diretora de projetos do Phenix, especialista em Ásia e Japão, que parece ser a única que consegue levar Marc ao que vemos de mais sincero na película, ao fazê-lo confessar seus sonhos da fase estudantil: ensinar economia e ganhar um Prêmio Nobel. Tudo antes de passar a “enriquecer os ricos e empobrecer os pobres”.
Maud tenta convencer Marc a escrever um livro, denunciando toda a podridão do sistema bancário, a submissão dos bancos aos acionistas predadores, a ditadura do mercado e da especulação, as agências de qualificação inimigas do poder político e da desigualdade, os Estados democráticos que não conseguem governar e controlar os bancos que os asfixiam. Marc (que até se deixa seduzir minimamente em certa altura), conclui o rompimento da relação com Maud com uma resposta quase que niilista por excelência:
“É um jogo, só um jogo, um jogo as vezes injusto e cruel, mas um jogo planetário. Ninguém pode dizer: “Não quero mais jogar”. Nos jogos há ganhadores e perdedores, os ganhadores podem perder tudo e os perdedores podem ganhar. Essa é a beleza do jogo”
Da ascensão do neoliberalismo (com a subida ao poder de Margaret Tatcher no Reino Unido (1979) e Ronald Reagan nos EUA (1980)) e o estabelecimento do Hiper capitalismo (com a queda do Muro de Berlim (1989) e o esfacelamento da URSS, o “fim da história” preconizado pelo cientista político Francis Fukuyama), observamos aquí o discurso meritocrático por excelência, um dos gerentes ideológicos do Deus Dinheiro.
A Conjuntura planetária
No diálogo transcrito abaixo, extraído de uma das últimas cenas do filme, o banqueiro Marc Tourneuil (que teve que sair da presidência do Phenix e que se prepara para uma grande reunião com os acionistas principais) explica para a sua esposa, Diane Tourneuil, o que seria “A conjuntura”.
— Agora que não é o presidente, quem dirige tudo isso?
— A conjuntura.
— E quem é “a conjuntura”?
— Uma prostituta gorda que dirige tudo, em todo lugar.
Uma entidade que independe de um intermediário para o seu pleno funcionamento, a conjuntura é onipresente, não precisa necessariamente de seus gestores para existir, mas necessita deles para acelerar o seu processo de crescimento, adaptação e deglutição, comandando a tudo e a todos.
Os filósofos franceses Gilles Deleuze e Félix Guattari, na série de livros Capitalismo e Esquizofrenia, definem o capitalismo (ou a conjuntura) como uma espécie de potencialidade sombria que assombrou todos os sistemas sociais anteriores ao seu estabelecimento, uma “coisa inominável”, uma entidade monstruosa e infinitamente plástica (tal como o Deus Dinheiro de Maguma).
Nos atos finais, de frente para os acionistas, Marc declama uma frase jocosa, que costumamos ouvir de vez em quando, aquela sobre os Robin Hood modernos, que roubam dos pobres para dar aos ricos. Dispensável pelo clichê meio caricatural? Talvez, mas o importante mesmo é a frase que encerra de fato o filme. Ao observar o deleite dos acionistas com suas palavras, Marc quebra a quarta parede por uma última vez para nos alertar:
São umas crianças, crianças crescidas, se divertem. E continuarão se divertindo, até que tudo se exploda.
Lembre-se da crise do subprime, muitos se divertiram durante anos com as inovações financeiras criadas e aceleradas em um ambiente de avanço da desregulamentação bancária na segunda metade do século XX, e vimos, infelizmente, as suas consequências para a economia mundial O filme de Costa-Gavras, para além de uma mera peça dramática envolta em maniqueísmo, se torna fundamental em nos advertir sobre a importância de barrarmos a volta do clima lúdico que embalou o ritmo do jogo capitalista no período que antecedeu a Crise de 2008. Quando tudo explode, os poucos que continuam se divertindo são sempre os mesmos.
Referências
Fisher, M., Realismo Capitalista, ed. Autonomia Literária, 2019