O universo de Arthur Vieira

Jhonattan
Hipercubo
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9 min readNov 1, 2018

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Vocalista da Vieira revela os segredos do seu universo criativo, dá sua visão sobre o cenário musical em João Pessoa e Nordeste e fala sobre desafios da carreira

Pedro Chico, Arthur Vieira e Marcus Menezes. Imagem: Marcelo Rodrigues

Três horas em ponto chego na UFPB para me encontrar com Arthur Vieira, vocalista, guitarrista e principal compositor da banda à qual empresta o sobrenome, a Vieira. Estou chegando em cima da hora marcada e corro preocupado em evitar destratar o entrevistado. Me programei mal e de praxe não contei com a compreensão do transporte coletivo pessoense. Encontro Arthur na Praça da Alegria, ponto de encontro do pessoal mais alternativo da UFPB, e lá o encontro, sentado, tranquilo entre amigos, alguns deles músicos.

Arthur é um cara grande e encorpado, com uma barba crespa e aparada a lhe encobrir as bochechas, escondendo sua mocidade de 22 anos. Dreads lhe caem sobre pescoço e compõem um estilo despojado, de camiseta com ilustração colorida, calção jeans rasgado, sandálias e um óculos escuro de armação mesclada à tira colo. Eu começo vasculhando seu passado e o questiono sobre as origens de sua relação com a música. “Acho que minha trajetória musical começa, talvez, desde antes de eu nascer, com a minha família. Duas gerações passadas, meu avô e bisavô eram músicos do interior de Pernambuco”, inicia. “Aí rolou esse êxodo da minha família do interior para cá para a capital da Paraíba, a partir da minha mãe e minhas tias. Minha família é de Pernambuco, mas eu nasci na Paraíba e minha mãe sempre flertou muito com música diariamente, como coleção de discos, e até no fato de colocar meu nome como o de um pianista que ela gostava muito, chamava Arthur Moreira Lima”.

Arthur, que hoje toca guitarra, teclado e diversos tipos de percussão, começou com o violão aos 9 anos, quando se viu matriculado em um curso na igreja. As aulas não duraram muito. “Era através de partitura e eu não estava muito a fim. Eu tinha 9 anos de idade e eu queria tocar, tá ligado? Eu abandonei o curso e passei a estudar em casa mesmo, sozinho”.

O fim da infância

Com o fim da infância, o garoto Arthur entrou na “doidera da adolescência” e descobriu o rock. Trocou o violão pela guitarra, dada pela mãe, com a qual, ele diz, toca até hoje, reformada. Ele passou por algumas bandas de colégio influenciadas pelo emo, na época em que o estilo estava no auge, como a Game Over (mais tarde Sindical), que ele formou aos 14 anos. Mas a segurança enquanto compositor e cantor veio com outro projeto, o Blackand Martinni, banda que Arthur fundou por volta dos 18 anos. A banda possuía ainda resquícios da influência do hardcore e do emo, mas nessa época, ele diz, começou também a experimentar novas sonoridades. “Eu comecei a tocar muito guitarra limpa, comprei outros pedais. Isso influenciou muito também no meu som. Comprei um chorus, nem sabia o que era um chorus”.

Coisas da vida, o Blackand Martinni se fragmentou por volta de 2013. Nessa época Arthur reencontrou Ernani Sá (que hoje toca na Banda-Fôrra) na Praça da Paz, nos Bancários. Os dois se conheceram ligeiramente em uma banda anterior, a Elvo, e Ernani, empolgado com uma música que Arthur lhe mostrou e que se ofereceu para gravá-la. A música seria um single para o Blackand Martinni, mas com o fim da banda, no entanto, o vocalista decide lançar a música sozinho, e assim Astrüd se tornaria a primeira música do Vieira.

O Vieira faz um som cheio de vivacidade e energia, recortando pedaços de um ou outro estilo musical, tornando difícil a tarefa de encaixar o Vieira em rótulos. E isso é bom.

A banda já trocou algumas vezes de formação e contou com a parceria de muita gente da cena pessoense, como o baixista Jonathan Beltrão e o guitarrista Pedro Chico, que estiveram na gravação do último EP da banda, Parahyba Vive, sendo os membros fixos atuais Arthur Vieira e Marcus Menezes (bateria). O Vieira faz um som cheio de vivacidade e energia, recortando pedaços de um ou outro estilo musical, tornando difícil a tarefa de encaixar o Vieira em rótulos. E isso é bom. Uma característica interessante dessa nova cena que surge em João Pessoa é que cada banda e artista possui sua particularidade, sendo a ligação entre elas o constante diálogo, que, intencionalmente ou não, acaba movimentando a cena cultural da cidade. As bandas não estão unidas por uma ideologia formal, a não ser a vontade de fazer arte.

Baseando-se apenas nos instrumentos básicos, guitarra, baixo e bateria, fazendo um som limpo que se apoia na voz potente de Arthur e no excelente trabalho entre baixo e bateria, com adicional de um ou outro efeito na guitarra responsável pela dose de psicodelia presente na banda. Psicodelia provinda dos Mutantes, Beatles e Tame Impala, os quais Arthur confessa ser fã.

Universo Marvel

A banda em com os prédios de João Pessoa ao fundo: a cidade é o cenário do universo imaginário de Arthur. Imagem: Marcelo Rodrigues

Nos dois EP’s lançados pela banda — Comercial Sul (2015) e Parahyba Vive (2018) — Arthur trabalha suas letras em cima do que ele brinca chamando de “universo Marvel”: um mundo conceitual que liga todas as suas músicas; um universo interno, reflexo da cidade de João Pessoa. Uma Marvel sem super heróis ou vilões, mas pessoas que ele vê nas ruas, com quem ele conversa, vive — gente comum. “A música do Vieira fala muito sobre situações corriqueiras que falam com pessoas normais. Coisas que a gente vive normalmente, coisas que a galera quer ouvir. A gente quer ouvir a nossa vida, eu particularmente como ouvinte de música […] Eu acho que isso tem a ver com esse lance do universo que eu vivo, que eu vivi, a partir do momento em que eu senti e quis compor, isso para mim foi muito importante, o fato de se situar geograficamente, mas também uma geografia social e cultural”.

Esse universo de Arthur não é propriamente João Pessoa, mas Parahyba. E não à toa. Assim era chamada a capital paraibana até a década de 30, quando nome e bandeira da cidade foram alterados para homenagear o ex-presidente do estado João Pessoa, cujo assassinato foi estopim da Revolução de 30. É do entendimento de certas pessoas e movimentos na cidade que o nome atual é uma homenagem que pouco representa a urbe.

“Eu acho que o Brasil em si está passando por uma fase muito grande de ‘leiguismo’ crônico, a galera não está se propondo a saber quem são os personagens. Tanto na eleição hoje, tanto na vida, em João Pessoa/Parahyba, saca?”

Para o cantor, a descoberta desse fato — a troca de nome da cidade — foi uma revelação. Ele acredita que, de certa forma, isso “matou nosso amor próprio como paraibanos” e tenta expressar essa ideia através de suas músicas. “Depois que eu fui sacar que existe, assim como em minhas canções, um universo ali de loucuras políticas, de golpes […] E isso me fez interessar por querer mostrar nas minhas músicas o meu universo no pano de fundo da cidade que de certa forma morreu há 80 anos atrás, que seria nossa cidade”.

Esse universo aparece indiretamente através de citações a bairros, ruas, bares conhecidos da paisagem urbana pessoense. Comercial Sul, por exemplo, se refere ao Shopping Sul, localizado no bairro dos Bancários, enquanto Parahyba Vive expressa essa vontade que o vocalista tem de conscientizar seus conterrâneos sobre suas origens. “Eu acho que o Brasil em si está passando por uma fase muito grande de ‘leiguismo’ crônico, a galera não está se propondo a saber quem são os personagens. Tanto na eleição hoje, tanto na vida, em João Pessoa/Parahyba, saca? Eu acho que a galera deve se conscientizar mais. Eu tento, além de fazer música, conscientizar a minha cultura.”

São Paulo e além

A banda esbanjando o estilão em São Paulo, com Pedro Chico e Jonathas Beltrão (os dois últimos da esq. para a dir.), que participaram da gravação do Parahyba Vive. Imagem: Felipe Gabriel

O EP Parahyba Vive foi gravado na Red Bull Studios em São Paulo, fruto da vitória da banda no concurso Red Bull Breaktime Sessions. A Vieira foi a mais votada entre bandas de todo o país. A banda conseguiu a oportunidade ao ganhar o concurso Red Bull Break Time Sessions, concorrendo com bandas do Brasil inteiro. A banda passou cinco dias regados à muito Red Bull em São Paulo, com tudo pago e com direito a mimos, como um LP do Jardim Elétrico, dos Mutantes, e ingressos para o Rock in Rio — fora também trocar uma ideia com Gustavo Bertoni, da Scalene.

Arthur não esconde a animação ao falar sobre a viagem. “Foi o momento mais foda da minha vida”, diz ele. Importante tanto no âmbito pessoal, quanto para a banda. “No aeroporto com as guitarras e todo mundo junto ali, e a galera olhando, foi muito foda. Foi aí que a gente viu nosso potencial. Foi a maior conquista da minha vida até agora, porque eu tava conseguindo realizar meus sonhos de quem eu queria ser. Músico sofre um certo preconceito na sociedade. Ser vagabundo, não dá dinheiro, não-sei-quê, passei isso por anos, tentando, insistindo em uma coisa que muitas vezes só eu acreditava e eu via uma galera torcendo por nós. A gente levou o nome da Paraíba também”.

É longa a narrativa de artistas que tiveram de tentar a vida em São Paulo ou no Rio, enredo que perpassa gerações. Arthur acredita que as regras do jogo podem mudar um dia, mas não será amanhã. É fato que a internet e a ascensão e a possibilidade dos home studios facilitaram e pluralizaram muito o mundo da música, as megalópoles, na visão de Arthur, ainda se fazem necessários para o artista que quer investir na carreira. “A galera tem noção que a gente está prestes a explodir. Não só a Paraíba, mas o Nordeste em si. A galera aprecia (a cena do Nordeste) porque vêem que é muito original, muito autêntico […] Mas o problema de ser remoto acaba dificultando os encontros, as possibilidades e oportunidades. A gente perde as inscrições em festivais, as amizades, os links, tudo. E pra conseguir estourar você tem que conseguir morar lá em algum momento, pelo menos passar um tempo, três meses, dois meses”.

“Aí que vem: estar no limite ou ultrapassar o limite? É isso que faz a gente ficar meio mal, os músicos, porque a gente vive entre o limite e a loucura.”

A experiência de gravar com uma grande produtora foi uma espécie de comprovação para a banda de sua potencialidade, e Arthur sonha mais alto agora, com projetos mais ambiciosos, como gravar um álbum pela Natura, na casa dos milhares de reais. Ocupado atualmente em um conceito bem interessante sobre doenças da modernidade, como depressão e paranóia, para um álbum cujo futuro é incerto — ele não sabe se será para o Vieira ou o Ervas&Gunjahpop, outro projeto do músico — Arthur está colhendo os frutos da recente vitória da banda, e vai no seu ritmo, ponderando suas escolhas.

Mas ele sabe estará em breve diante da pesada porta que sela nossos limites, e se verá confrontado pela dúvida: cruzá-la ou não? “Aí que vem: estar no limite ou ultrapassar o limite? É isso que faz a gente ficar meio mal, os músicos, porque a gente vive entre o limite e a loucura. A gente tem que se entregar uma hora, uma hora eu sei que vou ter que me desvincular da minha namorada e passar um tempo fora. E ela sabe disso também. Ela é minha namorada, um pouco mais velha que eu, tem noção um pouco mais do que eu”, reflete o músico.

Dono de um complexo universo interior, o cantor quer agora abraçar o universo além de si. “Sou muito jovem”, atestou Arthur mais de uma vez, deixando claro nessa repetição sua ciência do amadurecimento que ainda está por vir e das escolhas que terão de ser feitas. Mas se mostrava ali também uma autoconfiança, fruto da compreensão do potencial que ele pode atingir. Ainda há muito a trilhar. “São lances de muitas escolhas, e eu estou indo mais leve para fazer as escolhas certas. Muita gente se perdeu em droga, muita gente se perdeu em timing, e eu sinto que se eu não me perder nisso posso ir mais longe, acho que é muito de onde você pode chegar, todo mundo tem jogar no seu limite”.

O Hipercubo fez também uma resenha sobre o EP Parahyba Vive, que você pode conferir clicando aqui.

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Jhonattan
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Amante de música e escritor; jornalista nas horas vagas