Meditação e isolamento

Não fosse a quarentena, você pensaria em um isolamento autoimposto?

Murilo Papantonio
indō
4 min readMay 26, 2020

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Caverna de Lascaux | Fonte: Mnarqueologia Ipmuseus

A prática da meditação pode ser considerada, entre outras coisas, como uma forma de isolamento autoimposto. No geral, passamos quase todo o nosso tempo em busca distrações externas, de certa forma fugindo de nós mesmos, sem realmente parar para observar nosso mundo interno e a forma como reagimos aos estímulos do mundo externo. Quando meditamos, temos a oportunidade de inverter esse foco e começar a perceber o que se passa em nosso corpo e mente, o que nem sempre é uma experiência fácil ou agradável, principalmente no início — não é à toa que vivemos fugindo disso ao buscar incontáveis divertimentos.

Com a maior pandemia dos últimos cem anos, milhões de pessoas passaram a experimentar diferentes níveis de isolamento não por escolha própria, mas como uma imposição. O isolamento não opcional, obviamente, tem uma qualidade bem diferente e tende a ser muito mais difícil do que aquele que praticamos por escolha própria, inclusive porque vem acompanhado pela insegurança e ansiedade relacionada à própria sobrevivência e aos rumos cada vez mais assustadores do mundo. Mesmo assim, talvez a prática do isolamento opcional — a meditação — ofereça alguns insights para lidarmos melhor com o isolamento que está além do nosso controle.

Na verdade, a humanidade tem usado o isolamento em rituais há milhares de anos. Algumas das pinturas rupestres mais antigas foram encontradas em lugares escuros nos recônditos mais profundos de cavernas, sugerindo que esses eram locais de práticas xamânicas ou cerimônias religiosas. Há inúmeros relatos de ritos de passagem em diferentes tribos do mundo em que o indivíduo fica isolado durante dias, semanas ou meses em uma oca, no meio do mato ou caverna, período em que tem pouco ou nenhum contato com o resto da tribo.

Ao se isolar dos estímulos e distrações do dia a dia, a pessoa acaba trazendo mais consciência e entrando em maior contato com o seu próprio inconsciente, o que pode ser bastante desafiador, mas também uma grande fonte de aprendizado e insights. Além disso, com a diminuição das distrações, a intuição é fortalecida e os sentidos tendem a ficar mais afiados e aguçados — passamos a perceber com maior nitidez e clareza as cores, tons, sabores, texturas, odores e outras sensações que chegam a nós a todo instante.

Paradoxalmente, ao nos “isolarmos” do mundo (mesmo que apenas sentados de olhos fechados, em nosso quarto, por meia hora), podemos aumentar a consciência ou percepção desse mesmo mundo. Além disso, ao praticar o isolamento por períodos mais longos, como em retiros de meditação, a tendência é a pessoa desenvolver uma maior resiliência e independência emocional.

Retiro de meditação, no zen budismo japonês, é chamado de 接心 (sesshin). O ideograma 接 significa tocar, enquanto 心 significa coração/mente (em japonês, a mesma palavra representa essas duas coisas). O retiro de meditação é, portanto, uma forma de entrar em contato com o coração/mente.

No templo de Antaiji, onde morei por dois anos, nos primeiros cinco dias de cada mês (com exceção de janeiro e agosto) são praticados retiros com sessões de meditação que vão das 4h da manhã às 9h da noite, com intervalos para duas refeições. A instrução básica na meditação é deixar que os pensamentos venham e vão, mantendo o foco no “corpo de carne e osso”.

Em outras palavras, sentados (ou andando) com uma postura estável, conscientes da respiração, batimento cardíaco, sons, cheiros, cores (no zen, os olhos ficam semiabertos), ou da pessoa roncando ao lado, percebemos o surgimento dos pensamentos e emoções, mas deixamos eles irem, sem apego. No entanto, isso é muito mais fácil dizer do que realmente praticar. O retiro, então, tem como objetivo ser um aprendizado “na marra”.

A ideia é que a pessoa, após ficar sentada imóvel, em silêncio, durante quase quinze horas por dia, por dias seguidos, finalmente perceba que viver constantemente perseguindo os próprios pensamentos é algo enlouquecedor, além de extremamente desgastante. Isso soa familiar? Pois é, é assim que geralmente vivemos nossas vidas, e acredito que isso esteja ficando cada vez mais claro para mais pessoas ao longo desse grande período de isolamento.

Durante o retiro (e também na prática diária de meditação), a ideia é ir percebendo, aos poucos, que os pensamentos, afinal, são apenas pensamentos, e que existe um lugar mais calmo e silencioso, que está sempre no momento presente, bastante próximo e acessível: o próprio corpo. A meditação não é algo fácil e exige uma prática contínua, mas pode ser uma escolha libertadora, inclusive nesses tempos de isolamento imposto.

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Murilo Papantonio
indō

Monge que fugiu do monastério, escritor desconhecido, cofundador do institutodo.com