Você não é o que você pensa

Murilo Papantonio
indō
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7 min readMay 4, 2020
Kōdō Sawaki e as motoserras de Antaiji. Por Benkei.

No começo de 2016, deixei uma vida mais estável como servidor público em Brasília para morar num templo zen budista numa região rural e montanhosa no Japão. Rodeado por florestas, animais selvagens e sanguessugas, o templo é conhecido pelos longos e duros retiros de zazen (meditação) e pelo árduo trabalho braçal nas lavouras para manter o lugar relativamente autossuficiente — quase toda a comida consumida é plantada lá mesmo.

Após dois anos de prática intensiva de meditação no monastério de Antaiji, a pergunta que mais ouvi ao retornar era se isso tinha me transformado e de que forma. Sempre achei difícil responder a essa pergunta. Por um lado, a meditação não muda ninguém. Por outro, é claro que estamos em constante mudança, mas é difícil saber exatamente quais fatores (por exemplo, a prática da meditação, a mudança para outro país, a simples passagem do tempo, etc) desencadeiam quais mudanças.

Aconteceram algumas alterações no meu jeito de ser, no entanto, antes mesmo de ir para o templo, que podem ter alguma relação com a prática da meditação. No início da adolescência, era fanático por futebol, ao ponto de brigar por causa disso. Depois que perdi o interesse no futebol, fui fanático por política por um par de anos — adorava uma argumentação e defendia meus pontos de vista de forma apaixonada.

Antaiji.

É claro que largar um emprego para morar num templo nas montanhas pode ser considerado uma forma de fanatismo ou extremismo. No entanto, desde que comecei a me interessar por meditação, percebi que fui me tornando gradativamente menos convicto das minhas próprias crenças (inclusive em relação à meditação), e consequentemente menos combativo em meus argumentos.

O pesquisador em psicologia Mohammed Al-Mosaiwi estuda a inclinação humana em pensar de forma "absolutista", o que tem a ver com uma visão "preto e branco" ou polarizada da realidade, opiniões rígidas e às vezes preconceituosas. Essa tendência é explicada, em parte, pelo fato de que é mais "barato" (em termos de tempo e energia) ter opiniões preconcebidas do que estar constantemente alerta para as sutilezas e complexidades do mundo em que vivemos.

Esse "atalho", no entanto, tem um preço. Além de perdermos parte da riqueza da vida ao ignorarmos as nuances, detalhes e contradições da realidade a que estamos imersos, o pesquisador aponta que pensamentos absolutistas podem levar à depressão, ansiedade e tendências suicidas. Sabemos também que o dogmatismo ou apego a ideias pode desencadear em conflitos e até no derramamento de sangue.

Um exemplo do apego que temos aos pensamentos é a intensidade com que as pessoas muitas vezes se identificam com suas crenças (políticas, religiosas, morais, etc), como se fossem parte da própria carne. Por isso, ao receberem críticas ou questionamentos sobre essas crenças ou pensamentos, sentem-se como se sua existência estivesse de algum modo ameaçada, o que pode resultar em reações agressivas e até na violência física.

Entre os possíveis "remédios" para o modo de pensar absolutista, Al-Mosaiwi cita as chamadas “terapias de terceira onda” da psicologia, como o mindfulness, que preconizam uma “visão flexível da realidade, a aceitação e a liberdade dos apegos”.

Para o pesquisador em psicologia Ausiàs Cebolla, no mindfulness — ao contrário de abordagens mais tradicionais da psicologia, em que o foco é mudar o conteúdo dos pensamentos — ocorre um distanciamento ou desapego dos pensamentos em si (independente do seu conteúdo), graças a uma observação não julgadora do próprio processo de pensar. “Para Teasdale (1995), a longo prazo a prática de mindfulness gera um insight metacognitivo, no qual os pensamentos são percebidos somente como pensamentos e não como descrições da realidade.”

Apesar de nosso apego a eles, os pensamentos não são retratos completos ou fieis da realidade. O monge zen budista Kōshō Uchiyama, que foi abade do templo de Antaiji nos anos 60 e 70, expressa isso da seguinte forma:

“Seria mais pertinente considerar nossos pensamentos como secreções do cérebro, assim como glândulas salivares secretam saliva e o estômago secreta sucos gástricos. De qualquer modo, o eu como ele é percebido pela nossa mente certamente não é o mestre da pessoa inteira.”

Jon Kabat-Zinn, que criou o primeiro curso laico de mindfulness no anos 70, era praticante do zen budismo, e a influência do zen é notável em vários aspectos do mindfulness. O zen budismo, por sua vez, faz parte da tradição mahayana do budismo, que surgiu na Índia mais ou menos no século 2 (700 anos depois do budismo em si).

A vida em Antaiji segue o fluxo das estações. Na primavera, com o derretimento da neve, colhe-se plantas selvagens comestíveis típicas do Japão e é iniciada a plantação. No verão, com o forte calor, o trabalho é reduzido e a colheita é grande. No outono, são feitas novas plantações e as preparações para o inverno rigoroso. No inverno, como o templo fica praticamente inacessível e há metros de neve por todos os lados, não há trabalho externo. Por isso, os residentes revezam-se em palestras diárias — na única sala aquecida do templo, que possui uma espécie de lareira portátil— sobre algum tema do zen budismo. Além disso, têm que escrever um texto de 50 páginas com tema livre.

No meu primeiro inverno em Antaiji, escrevi uma espécie de resenha sobre o calhamaço de mais de 700 páginas The Shape of Ancient Thought, escrito pelo filólogo Thomas McEvilley, especialista em sânscrito e grego antigo. No livro, faz uma comparação das filosofias que se desenvolveram na Grécia e Índia no decorrer de milênios.

Entre as correntes filosóficas semelhantes na Grécia e Índia de antigamente, McEvilley cita os seguidores do pirronismo ou ceticismo na Grécia, que viam no pensamento absolutista ou dogmático uma doença da mente, em parte inspirados pelo filósofo Heráclito, famoso por dizer que um homem não entra duas vezes no mesmo rio, por tudo estar em constante mudança.

Na Índia no final do Século 2, os filósofos do Caminho do Meio, influenciados pelos ensinamentos originais do budismo sobre a impermanência de todas as coisas, também se ocupavam em atacar as diferentes formas de dogmatismo. Sobre essas vertentes, McEvilley afirmou: “Ao invés de oferecer doutrinas próprias, ambas as escolas utilizaram suas atividades filosóficas para desconstruir as doutrinas das outras escolas, sem exceção.”

McEvilley cita Dōgen — monge e filósofo japonês do século 13, fundador no Japão da tradição do zen budismo seguida por Uchiyama — como um dos expoentes do pensamento do Caminho do Meio ou mahayana, iniciado na Índia mil anos antes do seu nascimento. O próprio Uchiyama discorre sobre o Caminho do Meio nos seguintes termos:

“Portanto, o Caminho do Meio no budismo não significa escolher alguma posição intermediária criada em nossas mentes, nem agir de uma forma conciliadora. Ao invés disso, e apesar do fato que de que nos apegamos a ideias de ser e não ser, tomar o Caminho do Meio significa demolir todos os conceitos estabelecidos em nossas mentes e, sem nos fixarmos em algum ponto específico da realidade, abrir mão dos pensamentos, deixando que a vida seja vida.”

Abrir mão dos pensamentos está no coração de práticas como o zazen e o mindfulness, que são uma expressão da visão de mundo em que nada é permanente, portanto nada é absoluto.

Ao invés de levar a uma “mente vazia”, sem pensamentos (o que seria uma forma de morte cerebral), essas técnicas nos ajudam a enxergar os pensamentos pelo que são: interpretações imperfeitas e passageiras da realidade. Isso, em muitos casos, pode ser libertador.

Porém, se não somos nossos pensamentos, quem somos? Uchiyama, novamente, indica uma possível resposta:

“Quando percebemos que nossos pensamentos não podem controlar tudo, e deixamos eles irem, a refeição pesada no nosso estômago é digerida — independentemente do fato de pensarmos sobre isso ou não. Mesmo quando estou dormindo, eu continuo a respirar as respirações necessárias por minuto. É assim que o indivíduo vive. O que diabos é o indivíduo? Não posso deixar de pensar que o indivíduo está conectado com o universo. Na primavera, os brotos nascem; no outono, as folhas caem. Todas essas coisas, incluindo nossa individualidade, são expressões da vida como parte da grande força da natureza.”

Quando estava em Antaiji, li um livro surrado que encontrei na biblioteca do templo, escrito por Arthur Braverman, um americano que viveu por alguns anos em Antaiji nos anos 70. No livro, Braverman relata que, nos longos e às vezes dolorosos sesshins (retiros), descobriu que, ao contrário das suas expectativas, a meditação não era algo muito especial, transcendental ou fora do comum. Através do zazen, simplesmente passou a ver melhor seus pensamentos pelo que realmente eram: pensamentos — e isso foi suficiente.

Pensando bem, talvez eu também possa responder isso quando alguém me perguntar, da próxima vez, o que aprendi durante minha curta estadia no Japão.

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Murilo Papantonio
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Monge que fugiu do monastério, escritor desconhecido, cofundador do institutodo.com