Quem é você?

Capítulo #2 da Kundazine, uma série de artigos relacionados à filosofia e prática da Kundalini Yoga.

Cecília Furlan
indō
4 min readJun 9, 2020

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Alice no País das Maravilhas, Disney (1951)

Conhece-te a ti mesmo, dizem os filósofos gregos, os psicanalistas e, como não poderia deixar de ser, a Kundalini Yoga.

Todas as histórias no mundo são sobre autoconhecimento. O mundo gira ao redor da grande questão “quem sou eu?”. Alice, por exemplo, em sua jornada pelo País das Maravilhas — assim como eu, você e o famoso herói de Joseph Campbell — está, no fim, justamente buscando entender o que faz dela ela mesma.

O que faz de você, você?

Bom, você tem pensamentos [pensas, logo existes, afinal de contas], opiniões, vontades, personalidade. Essas podem ser coisas que te definem. Por outro lado, estudos comprovam que a influência que os estímulos externos exercem em nossas mentes pode chegar a pontos extremos — Dalmo já nos alertou sobre as histórias que nosso cérebro nos conta e Murilo já nos explicou por que nós não somos o que pensamos.

Costumamos dizer que “as pessoas mudam, mas as memórias não”, quando, na verdade, nosso cérebro é capaz de modificar e até mesmo criar memórias, fazendo com que juremos de pés juntos que vivenciamos coisas que simplesmente nunca aconteceram (veja, por exemplo a pesquisa sobre as lembranças que as pessoas têm do dia em que aconteceu o atentado às Torres Gêmeas). Nossa memória de um evento é composta não apenas pelo ocorrido em si, mas por tudo que vivemos, antes e depois, e como relacionamos essas experiências ao evento em questão.

Não podemos confiar no passado, mas tampouco podemos garantir muita coisa sobre o próprio presente. Não somos capazes de processar todas as informações que estamos incessantemente recebendo, para conseguirmos tomar decisões plenamente conscientes. Por isso, criamos atalhos mentais, fazemos associações simples e chegamos a respostas rápidas para, só depois, procurar uma forma de justificar nossas ações. Mesmo que nossas decisões e opiniões sejam inevitavelmente arbitrárias, temos tanto medo de sermos provados errados, de descobrirmos que algo que defendemos por tanto tempo pode não ser completamente verdade, que nos esforçamos mais para criar argumentos e nos convencer de que estamos certos, do que para nos tranquilizar a respeito da possibilidade da verdade ser mais múltipla e incerta do que imaginamos.

Fica então evidente que não tenho nenhum controle sobre as minhas próprias opiniões e pensamentos [eu estou fora de controle!]. Ao contrário do que seria de se esperar, acho isso extremamente libertador. Eu amo ser provada errada. Ao me descobrir equivocada a respeito de algo do qual eu tinha absoluta certeza, fico com a esplendorosa sensação de que qualquer coisa no mundo é possível.

Arte requer verdade, não sinceridade

Quadrado negro sobre fundo branco de Kasimir Malevich (1918).

No início do século passado, o movimento artístico chamado de Suprematismo tentou, a sua forma, argumentar contra a superficialidade estética das artes plásticas e defender “a supremacia do puro sentimento”, abrindo mão dos adornos e das firulas para expressar a sua verdadeira essência com a simplicidade excruciante de um quadrado preto sobre um fundo branco.

Trecho do manifesto do movimento Suprematista, por Kasimir Malevich

Adoramos legitimar nossos posicionamentos afrontosos dizendo que estamos apenas sendo sinceros. Que temos direito a nossa opinião. Isso não passa de uma forma de justificar nossa dificuldade em enxergar o mundo de forma clara, consciente e sem julgamentos. Na Kundalini Yoga, costumamos dizer que antes de tomarmos atitude, precisamos tomar altitude, ou seja, ver a questão de uma posição elevada para poder vê-la como um todo e, assim, nos aproximarmos da real verdade da situação.

Além de serem meras visões unilaterais, nem mesmo nossas opiniões, às quais somos tão fortemente apegados, podemos chamar de verdadeiramente nossas. Mesmo em cima dessas opiniões, ainda usamos máscaras que camuflam até aquilo que não somos. Nossas emoções, que parecem ser tão intrínsecas a nossa existência, não passam de fluxos hormonais que são facilmente alterados por qualquer interferência química, hábitos alimentares e físicos.

Nós não somos nossas opiniões, não somos nossas máscaras, não somos nossas emoções, não somos nossa personalidade.

A filosofia da Kundalini Yoga nos diz que, por baixo de tudo isso, no cerne do nosso ser, está quem realmente somos. É lá que se encontra a nossa verdadeira essência, a nossa verdadeira identidade.

A essa verdadeira identidade, chamamos Sat Nam.

Sat Nam (do dialeto sânscrito Gurmukhi, Sat significa “verdade” e Nam, “identidade”), é o mantra central da Kundalini Yoga. É como nos cumprimentamos, de verdadeira identidade para verdadeira identidade. É como agradecemos e como nos regozijamos.

É um constante lembrete de que nada é definido nem determinante. De que somos livres.

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