Menos dashboards, mais priorização

Porque ser inundado por dados pode causar o mesmo efeito da falta deles

Breno Gouvea
Inovação em governo e no controle
8 min readOct 14, 2020

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Para todo desafio complexo, há uma resposta simples e rápida — mas também errada. A construção de dashboards para resolver qualquer problema é um exemplo. Teoricamente, estes painéis coloridos poderiam agregar valor prático a qualquer gestão; mas, na realidade, seu uso indiscriminado acabou afastando a ferramenta de seus verdadeiros propósitos.

Estamos explorando uma outra abordagem no MPRJ. O projeto Bússola, desenhado pelo Laboratório de Inovação (Inova_MPRJ), propõe alternativas às questões decorrentes do fenômeno já chamado de dashboardização do governo (não sabemos ao certo o autor da expressão).

Este texto é o primeiro da trilogia que discutirá os principais conceitos por trás do Bússola. Nele, apresentamos a visão macro do projeto – a essência de sua existência. Nos outros posts, mergulharemos em questões técnicas ligadas à confiabilidade, registro, arquitetura e apresentação visual de dados.

Quando pesquisamos por dashboards em ferramentas de busca, esta é a primeira imagem que aparece. Será que existe fórmula mágica?

Painéis enciclopédicos não resolvem problemas práticos

Todo bom gestor público deve buscar alcançar a melhor relação de custo-efetividade na implementação de programas de governo e na prestação de serviços públicos. Ainda que com atribuições distintas, esse compromisso também deve orientar a atuação das instituições de controle (i.e. Ministérios Públicos, Tribunais de Contas, Controladorias e Judiciário). Trata-se de uma decorrência do dever constitucional de eficiência (art. 37 da Constituição).

Se há accountability, outro valor essencial de governos republicanos, ela pode ser muito maior com ampla transparência de dados. Em uma era de governo digital, a transparência precisa ser ativa, com disponibilização de dados em formato aberto, atualizações frequentes e confiança no registro das informações. Por isso, parece fazer sentido a construção de painéis de controle, contendo visualizações daqueles dados e tornando-os, em tese, mais compreensíveis.

O problema é que o setor público pode estar seguindo por um caminho mais fácil e menos efetivo: o da criação de dashboards para absolutamente tudo. Caso típico em que a ferramenta, isto é, o acessório, ganha mais importância que o principal. Em todos os níveis de governo e esferas da federação, proliferam painéis que mais se parecem com enciclopédias de dados do que com ferramentas de uso prático.

Será que o percentual de professores suíços é um indicador relevante para melhorar o ensino básico brasileiro? http://portalbi.mec.gov.br/portal-bi/relatorios/censo_educacao_basica/2017.php

Quando painéis começam a aparecer por todos os lados, surge um novo conjunto de problemas. Em sua maioria, ligados à entrega de soluções que não encontram uso efetivo, porque:

  1. não envolvem usuários em seus processos de construção (erram o alvo sobre o que o usuário mais precisa saber e medir);
  2. ignoram a necessidade de priorizar informações;
  3. omitem sérias questões de transparência e auditabilidade (não raro, sequer disponibilizam os dados brutos para download);
  4. eliminam as narrativas, contextos e conceitos por trás dos números que apresentam; e
  5. estão repletas de práticas inadequadas de visualização de dados.

Só entra o que é mais importante

Observar dezenas de indicadores simultaneamente é o mesmo que não conseguir acompanhar nenhum deles. É o que nos mostram estudos sobre os vieses cognitivos de “sobrecarga de informação” e “paradoxo da escolha”. Eles apontam que exibir muitas informações para tomadores de decisão pode tornar mais difícil a tarefa de escolher por onde começar, deixando-os paralisados justamente quando deveriam estar prontos para agir.

Quem quer ver tudo, acaba não enxergando nada.

Assim, o uso de dashboards deveria partir do importante exercício de priorização de temas críticos dentro de cada agenda. É necessário saber por onde começar. Talvez por temas estruturantes, com potencial multiplicador e baixos custos relativos de acesso a dados confiáveis. É o que o Inova_MPRJ faz quando constrói “bússolas”.

Começando pela escolha entre métodos robustos para priorizar problemas. Ou pela combinação de mais de um deles, já que a qualidade da priorização será maior quando ela considerar a diversidade dos atores envolvidos e a existência de múltiplas fontes de informação — associando análises qualitativas e quantitativas.

O método do Laboratório envolve especialistas e futuros usuários (tomadores de decisão) em todas as suas etapas, sem deixar de considerar o que bancos de dados disponíveis têm a dizer. O processo está descrito na trilha azul do Fluxo de Transformação e exemplificado nos casos dos projetos Bússola _ Baía de Guanabara e Bússola _ Gestão Hospitalar.

Em resumo, levantamos bases de dados existentes no MPRJ, obtemos acesso a dados de unidades do serviço público (hospitais, escolas, presídios…) e consultamos especialistas por meio de formulários, entrevistas e atividades colaborativas como o “Lado Sombrio”.

Dessa forma, conseguimos estimar o valor de cada informação (gravidade, frequência de ocorrência e grau de controle por parte da gestão) e a qualidade do dado (formato de armazenamento, grau de dispersão, frequência de atualização e confiabilidade). Assim, utilizamos critérios robustos para ranquear indicadores antes de construir visualizações gráficas e alertas de situações críticas.

Na perspectiva do Executivo, a priorização também pode servir como norte para começar a acompanhar dados ou indicar informações que precisam começar a ser produzidas. No caso das instituições de controle, para orientar o ponto de partida das fiscalizações e de eventuais intervenções. Afinal, se o tema é prioritário, é necessário acompanhar dados sobre ele de forma sistemática.

Uma alternativa, mais modesta, pode ser a utilizar reclamações trazidas pelos canais de ouvidorias como referências para priorização. É melhor do que abordagens totalmente subjetivas, mas traz consigo uma série de vieses. Ouvidorias costumam captar os sintomas mais aparentes dos problemas, ao invés de suas causas-raízes. Um exemplo é a enorme quantidade de denúncias de poluição sonora frente às de poluição atmosférica — obviamente menos aparentes.

No segundo texto desta série discutiremos o que é preciso fazer para garantir boas práticas de gestão e governança de dados em unidades do serviço público. Ou seja, como garantir confiabilidade, registros automatizados, altas frequências de atualização e boas arquiteturas de dados para monitoramento contínuo. Trata-se dos pré-requisitos para começar a trabalhar na comunicação dos dados — que se materializará em visualizações gráficas e alertas automáticos.

Para comunicar, trazemos contexto e boas práticas de visualização

Ninguém quer fazer gráficos ruins, mas acontece com frequência. Na escola, passamos anos aprendendo a utilizar palavras para contar histórias e números para realizar operações matemáticas. Mas raramente as duas disciplinas se entrelaçam como deveriam: não exercitamos a tarefa, cada vez mais exigida, de construir narrativas apoiadas em palavras, números e gráficos.

Como consequência, formamos profissionais que enxergam modelos (templates) como a primeira e melhor opção para traduzir números em visualizações. Aplicações como QuickSight, Microsoft PowerBI e Tableau funcionam perfeitamente para automatizar a criação de painéis. Mas não são capazes de interpretar as histórias por trás dos dados — limitando resultados à gráficos descolados de análises e conclusões.

Para contar histórias com dados, o referencial é outro. Após a priorização, é preciso construir narrativas. E a equipe que trabalha com dados (quanto mais multidisciplinar melhor) deve ser vista como responsável por fazer exatamente o que as ferramentas não fazem sozinhas: dar vida aos dados, visual e contextualmente.

E, como cada visualização tomará forma de modo a facilitar o cumprimento dos objetivos estabelecidos pelo usuário, é necessário novamente envolvê-los em todo o processo de construção. Eles sabem melhor do que ninguém o que precisam saber ou fazer com as informações que recebem.

Em seguida, é hora de misturar ciência e arte. O objetivo de uma equipe que trabalha com dados deve ser combinar as melhores práticas visuais e gráficas com sua criatividade para desenhar visualizações e narrativas contendo apenas o que importa e facilitando a absorção das informações. Histórias repercutem e ficam conosco de maneiras que gráficos descontextualizados não conseguem.

Exemplo de visualização eficaz extraída do, ainda em construção, Bússola _ Sistema Prisional.

No último texto da trilogia, a equipe do Inova_MPRJ contará em detalhes como vem aproveitando sua interdisciplinaridade e ferramentas como Flourish, Figma e Webflow para contar histórias a partir de dados. Enquanto isso, caso se interesse pelo tema, recomendamos a leitura do livro “Storytelling com Dados” da Cole Nussbaumer Knaflic, ex-funcionária do Google.

Uma bússola para a gestão pública

Ciente dos problemas envolvidos nos dashboards do governo e da necessidade de fomentar atuação orientada por dados no Ministério Público, Inova_MPRJ criou o Bússola. A ferramenta e o método por trás dela, também aplicáveis fora do contexto das instituições de controle, consideram a necessidade de produção de dois tipos de inteligência de dados.

O primeiro — de caráter exploratório e voltado para o acompanhamento ativo dos dados monitorados — pode ser disponibilizado em forma de painéis dinâmicos e objetivos, contextualizados com narrativas que interpretam o problema e indicam soluções de intervenção baseadas em evidência. Sempre em formato web e, caso não envolvam informações sensíveis, com livre acesso para a sociedade civil, academia, gestores públicos e outros órgãos de controle.

Já o segundo, tem o objetivo de orientar ações sem que os tomadores de decisão precisem buscar ativamente a informação. Quando os dados apontam situações alarmantes, alertas são encaminhados automaticamente para promotores ou procuradores de justiça.

Os alertas expõem o problema e oferecem ao usuário documentos pré-formatados, como requisições de esclarecimentos e/ou minutas de ações judiciais, prontos para assinatura e encaminhamento. Tudo isso junto de uma seção em formato de linha do tempo, voltada ao acompanhamento da atuação em torno dos principais temas de atribuição de cada órgão.

Ainda em fase de desenvolvimento, a plataforma foi desenhada para dar norte à atuação das Promotorias de Justiça de Tutela Coletiva em temas específicos, como a fiscalização de unidades de saúde, o acompanhamento de obras de saneamento e o monitoramento do sistema prisional. Em cada tema, o processo (de priorização, abertura de dados, monitoramento contínuo e geração de inteligência aplicada) alimenta a plataforma web e vice-versa.

Trata-se também de excelente oportunidade para unir as agendas de transformação digital e uso de evidências no controle de políticas públicas com a estratégia de governo digital 2020–2022. Faz sentido que toda a inteligência de dados do projeto esteja disponível no portal gov.br, que reúne serviços para o cidadão e informações públicas gerais.

Em um futuro próximo, esperamos que as Bússolas transformem a própria lógica de trabalho em procedimentos investigativos. Será o fim da associação entre inquérito civil/procedimento administrativo como uma sequência de papéis ou uma árvore de arquivos em PDF? Cenas dos próximos capítulos.

Ficou interessado? Conheça o protótipo que guiará o desenvolvimento da ferramenta:

Funcionalidades do Bússola

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Com Beatriz Ferreira, Bernardo Chrispim, Daniel Lima Ribeiro, Gabriel Delman, Júlia Rosa, Leonardo Santanna, Letícia Albrecht, Manuella Caputo, Marcelo Coutinho e Matheus Donato.

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