Toda a raiva esconde um medo
Vocês já perceberam?
Toda vez que eu sinto muita raiva, acabo chorando no final. E quando eu choro percebo que aquela raiva toda estava lá só de prelúdio de um sentimento muito maior e mais profundo e por isso, mais difícil de acessar.
Esses sentimentos mais profundos costumam ser medo de coisas diversas. Quando senti raiva de estar fazendo exercícios que “abriam o peito”, estava com medo da rejeição, de mostrar quem eu era e não ser amada. Quando senti raiva por precisar pedir prorrogação de posse em um concurso, estava com medo de ficar sem emprego e sem dinheiro. Quando sinto raiva do meu parceiro por não ter feito alguma tarefa que cabia a ele, tenho medo de ficar sobrecarregada. Quando sinto raiva porque alguém me corta no trânsito, tenho medo de me envolver em um acidente. Quando sinto raiva por alguém votar em um candidato radical, tenho medo, como mulher, de ter minha liberdade cerceada. Quando sinto raiva de pessoas intolerantes, machistas, racistas, homofóbicas, tenho medo de ser perseguida por ser quem eu sou, medo de meus amigos serem perseguidos por serem quem são.
Nem sempre a relação raiva-medo é obvia. Às vezes ela pode parecer até mesmo antagônica. Há estudos que sugerem que pessoas homofóbicas têm é medo de se descobrirem ou se assumirem homossexuais. Os machistas teriam então medo de perder seus privilégios masculinos, por isso a raiva do movimento feminista. Racistas também teriam medo de perder seus “privilégios brancos” ao reconhecer o igual valor de todas as pessoas. E sabemos que se essa raiva é alimentada e ganha força, ela vira ódio e intolerância, o que é muito prejudicial para toda a humanidade (vide o que fez Hitler, por seu ódio e intolerância aos judeus. Vide também cenas dos próximos capítulos de políticos intolerantes no Brasil e no mundo).
Porém, se conseguirmos encontrar o medo escondido por trás de cada sentimento de raiva, essa raiva pode ser benéfica para nós. Ela pode nos mostrar áreas de nossa personalidade que precisam ser trabalhadas (como o medo da rejeição, por exemplo). Ou nos mostrar injustiças que estamos sofrendo (como o medo da sobrecarga, o medo de ser perseguida por ser quem se é, ou o medo de se assumir quem se é) e nos dar forças para lutar contra essas injustiças. Ela pode nos mostrar inclusive nossos próprios defeitos e as injustiças que cometemos com outros (como o medo de perder seus privilégios de “homem branco”).
E sendo assim, reconhecendo os medos por de trás da raiva, podemos sempre enxergá-la como um sinalizador de medo e acolhê-la para chegar no ponto central da questão. Reconhecendo a raiva como esse sinalizador, podemos evitar direcioná-las para as pessoas de modo violento ou alimentá-las até que se transformem em ódio ou intolerância. Mesmo Gandhi disse que sentia raiva o tempo todo e que era isso que o impulsionava a continuar com o seu trabalho e luta contra as injustiças sociais na Índia. Pode parecer contraditório um pacifista sentir raiva todo o tempo, mas a diferença aqui se encontra justamente na consciência que ele tinha de sua raiva e do que causava ela, pois assim ele pode direcionar todas as suas forças para combater as injustiças de modo não violento.
“A raiva, para as pessoas, é como o combustível para o automóvel. Ela nos dá energia para seguir em frente e chegar em um lugar melhor. Sem ela, não teríamos motivação para enfrentar os desafios. A raiva é uma energia que nos impele a definir o que é justo e o que não é.” Gandhi *
Sendo assim, não fuja ou reprima sua raiva. Encontre o medo por trás dela e lute contra o que te causa essa raiva. Mas não alimente-a de modo a virar ódio ou intolerância. Lute contra as injustiças de modo não violento. Entenda qual o medo que está por trás dela e, como disse Gandhi, use-a para direcioná-lo às lutas que importam para você.
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- Gandhi, Arun. A virtude da raiva. Rio de Janeiro: Sextante, 2018.