Não dá mais para ignorar essa moeda

Carlos Cabral
IO Publishing
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9 min readJun 2, 2015

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Porque o Bitcoin pode não só revolucionar o dinheiro, mas também a maneira de nos relacionarmos com outros bens. Inclusive com a democracia.

Quais seriam os sinais de que uma revolução está para acontecer?

Revoluções não necessariamente ocorrem de um dia para o outro. Na maioria das vezes estas seguem um ritmo de "banho Maria" e quando percebemos, tanta coisa mudou que fica até difícil achar o fio da meada, o gatilho que gerou todas aquelas transformações.

Veja, por exemplo a disseminação do uso das redes sociais e as transformações em nosso modo de vida que destas surgiram. É inegável que o mergulho de boa parte da humanidade nessas redes causou uma revolução na forma em que compartilhamos informação, para citar somente uma característica desse fenômeno.

Penso que está em curso neste momento uma transformação que traz consigo novas maneiras de lidar com o dinheiro e, consequentemente novas formas de lidar com diversas outras coisas como contratos, transferências de todo tipo de bens, votação eletrônica e possivelmente novidades até na forma em que praticamos a democracia.

Satoshi

Essa história começa com a publicação de um paper de 8 paginas por Satoshi Nakamoto (um pseudônimo para uma ou talvez mais pessoas) com o propósito de criar um sistema de dinheiro eletrônico batizado de Bitcoin. O maior benefício do sistema seria abrir a possibilidade para que uma pessoa pudesse transferir dinheiro para a outra diretamente e de maneira anônima.

Entretanto, muita gente pode pensar "eu transfiro dinheiro para pessoas diretamente, vou no site do banco, coloco agência e conta, o dinheiro chega no destino e meu sigilo é protegido". Pois bem, essa não é uma transação direta, muito menos anônima. Na realidade os bancos operam como um "terceiro confiável", oferecendo aos seus clientes com a guarda do dinheiro, a comodidade na transferência entre contas e outros produtos de investimento e crédito. Mas qual é o problema então?

A crise financeira que abalou finanças no mundo todo somente aconteceu porque a maioria dos bancos operam de maneira a criar dinheiro do nada. O que não quer dizer que criem riqueza, pelo contrário o sistema financeiro mundial é quase todo baseado em dívida. Hoje existem iniciativas internacionais com o objetivo de por um freio nessa a atividade dos banqueiros.

Também há o problema da privacidade. Os bancos e outras empresas, como as do segmento de cartões ou de crédito, acumulam toneladas de informações sobre o nosso comportamento financeiro. Isso serve para, diminuir os riscos de suas operações de crédito, evitar fraudes e vendê-las a parceiros. Sim. Seus dados financeiros são vendidos no atacado e varejo. Ou como você pensa que as empresas de validação de crédito conseguem dar uma nota de bom ou mal pagador para você?

Embora Satoshi Nakamoto não tenha escrito uma linha de seu paper com algum tipo de conotação política, é impossível deixar de imaginar o Bitcoin como uma alternativa ao sistema financeiro global, que atualmente dita o nosso destino e que opera como um grande motor da desigualdade. Aliás é possível entender os motivos pelos quais o autor (ou autores) do paper quiseram se manter anônimos: primeiro porque quem propõe isso desafia a indústria mais influente nos destinos do mundo e em segundo lugar a estrutura dessa moeda foi desenvolvida para possibilitar o anonimato nas transações.

Esse vídeo é ótimo. Guarde um tempo para ver.

Bitcoin

Imagine que você vai a um café que aceita Bitcoins e paga um capuccino com esta moeda. Se estivéssemos falando de uma troca comum de bytes, ao pagar o dono do estabelecimento você enviaria um conjunto de dados para ele e pronto. Entretanto, um pensamento invariavelmente passearia na cabeça de muitos: "será que há uma forma de burlar o sistema para que ele não considerasse essa minha transação e eu pudesse gastar de novo aquela fração de bitcoin que usei no café?"

Por não existir a materialidade do dinheiro, algo na mão das pessoas, fica difícil confiar se aquele dinheiro realmente existe e se ele vale alguma coisa, pois pode ter sido gasto antes ou não ter lastro.

A história documenta várias tentativas de lastrear o dinheiro em outras coisas, sobretudo em ouro. A última tentativa foi com os acordos de Bretton Woods. Entrentanto, desde 1971 que o sistema financeiro global não usa nada físico para lastrear diretamente as moedas em circulação. Na realidade, seu dinheiro já é eletrônico e sem lastro físico. Isso ajudou a criar as condições sob as quais vivemos hoje: manutenção do alto endividamento como o óleo do motor da máquina da economia.

No entanto, há um componente chave que diferencia o Bitcoin das moedas tradicionais no que se refere ao lastro, seu lastro é matemático baseado na escassez da moeda. O Bitcoin possui um conjunto finito de unidades que pode ser amplamente fracionado. Somente teremos 21 milhões de bitcoins circulando e uso verbo no futuro porque estes não estão completamente liberados pelo sistema. À medida em que a moeda é usada, vai se ajustando à demanda. Nesse link é possível ter uma visão em tempo real da quantidade de Bitcoins em circulação.

Controlar a demanda por moeda pode ser de grande valia quando pensamos em equilibrar a economia. O Nobel de Economia Milton Friedman, já alertava na década de 70 para os problemas do suprimento de dinheiro popularizando a frase de que "Não existe almoço grátis”.

Já a questão do gasto duplo (double-spending) é o que mais coloca a pulga atrás das orelhas das pessoas quando questionadas sobre moedas digitais, pois a ausência dessa garantia acaba demandando que uma entidade central seja estabelecida para validar as transações e identificar quais são autênticas. De novo incorreríamos ao "terceiro confiável" e de novo nos sujeitaríamos ao risco dessa instituição corromper o sistema, abrindo terreno para corporações superpoderosas dominarem a moeda.

Esse problema foi elegantemente solucionado com a descentralização do processamento das transações em um modelo ponto a ponto (peer-to peer — P2P).

P2P

No final da década de 90, os pesquisadores do SETI Institute, organização que procura vestígios de vida inteligente fora da Terra, tinham um problema: existiam volumes imensos de dados para analisar e pouco recurso computacional para dar conta de tanta informação. A alternativa para o problema foi genial; pedir processamento para os entusiastas do programa.

Assim foi criado o aplicativo SETI@Home que nada mais era que um screensaver inteligente. Quando o usuário não estava aproveitando o computador, o screensaver entrava em cena mostrando gráficos bonitos e usando o processador da máquina para analisar dados dos radiotelescópios do SETI. Este foi o primeiro software peer-to-peer, ou ponto a ponto, que usei.

O sistema Bitcoin funciona mais ou menos da mesma maneira. Milhares de maquinas operam usando softwares chamados de mineiradores que cumprem duas funções: a primeira é a de processar as transações checando sua autenticidade e a segunda é a de alimentar um histórico público chamado de blockchain, que contém todas as transações desde o primeiro bitcoin movimentado. Como retribuição por sua concessão de recursos para a mineração (energia elétrica e processamento) o dono da máquina ganha frações de Bitcoin, aumentando o suprimento da moeda. Tudo automático e descentralizado.

O problema da segurança na transação é tratado de maneira muito sofisticada. Na vida nada é totalmente seguro, mas todo o processo usa criptografia forte baseada em chave pública, assinatura digital e hashes.

Se você não sabe o que são essas coisas, basta ter em mente que se trata dos mesmos recursos que bancos e governos usam para proteger informações. Mas se quiser ir fundo no assunto veja essa sequência de vídeos.

Além disso, por ser P2P o desenho da plataforma foi concebido de maneira que um atacante teria que ter um poder computacional maior do que 51% de todo o sistema para realizar um ataque. De modo que é mais fácil colaborar com a rede do que atacá-la diretamente. Mais informações sobre possíveis fragilidades da estrutura aqui.

Transparência é algo muito importante quando falamos de dinheiro. Assim, vale a pena destacar que todo software envolvido no processo possui o código aberto, de maneira que qualquer pessoa pode avaliar sua segurança ou implementar melhorias. Além do mais, a cadeia de transações que citei acima é publica. Mas como uma coisa pode ser pública e ao mesmo tempo propiciar o anonimato?

Público e Anônimo

Para operar com Bitcoins é necessário ter uma carteira eletrônica. Assim como uma mulher pode ter várias bolsas em casa. É possível ter várias carteiras para armazenar Bitcoins e adivinha quais informações são necessárias para abrir uma carteira Bitcoin? Nenhuma. Você pode operar no sistema de maneira completamente anônima.

Alguns desenvolvedores de carteira recomendam que seja fornecido um endereço de e-mail válido para que seja possível reaver alguns detalhes da conta. Mas se o portador da carteira não quiser dar esta informação, não precisa. Uma outra alternativa é criar uma conta em um provedor de email anônimo e vincular esse email à sua carteira.

Aqui mora um o maior perigo para quem tem Bitcoins: se você perder a senha de sua carteira, você perdeu os seus bitcoins para sempre. Seria o mesmo que perder uma carteira física cheia de dinheiro.

Quando você faz uma transação usando Bitcoins o dinheiro sai de sua carteira e vai para outra, após o processamento dos mineradores a transação entra na blockchain em um formato mais ou menos assim:

Carteira de saída -> Carteira de entrada -> Valor (Foto: Reprodução / Carlos Cabral / blockchain.info)

O trunfo do blockchain é tornar toda contabilidade pública e replicá-la em todos os computadores da rede, mas é muito difícil saber quem são os donos das carteiras (caso estes não queiram torná-las públicas). Sem o blockchain teríamos que ter uma instituição que centralizasse esse "balanço" e novamente cairíamos no problema do "terceiro confiável". É no blockchain que reside a coisa mais fascinante de todo sistema.

Blockchain

Confesso que quando li a respeito do blockchain, entendi o seu papel para o funcionamento da estrutura, mas não dei muita bola para suas potencialidades. Entretanto, quando tive contato com as idéias desse livro, as possibilidades de uso da tecnologia se tornaram claras, de modo que hoje vejo blockchains em todos os lugares. Explico:

O raciocínio é muito simples, cada transação é validada por uma rede protegida com criptografia e desenhada de modo a demandar um poder computacional imenso para atacá-la. No entanto, transação pode ser qualquer coisa, não somente transações financeiras.

Então imagine que basta uma pessoa ter algo para passar para a outra que a estrutura processaria isso e tornaria aquele acordo válido e público, mas ao mesmo tempo anônimo.

Pense em qualquer transação envolvendo bens (imóveis, carros, helicópteros, a Milleniun Falcon, etc). Agora reflita um pouco mais e imagine toda a parte de validação de documentos, podendo substituir completamente a função carimbadora dos cartórios. "Free your mind" e você encontrará milhões de outras aplicações para essa tecnologia.

Indo mais fundo. Imagine a possibilidade de usarmos a tecnologia de Blockchain para interagir diretamente nos projetos do legislativo. Esta seria uma oportunidade de revolucionar a atividade política e a forma de praticar a democracia, fazendo Montesquieu se revirar no túmulo, não de raiva, mas de interesse em testemunhar essa transformação. Não sou desenvolvedor de software mas gostaria muito de participar de algo nesse sentido.

Sei que o leitor pode estar se sentindo um pouco cético com relação a essa parte da minha narrativa. Mas, para demonstrar que não estou "viajando" apresentarei alguns fatos:

  • A revista The Economist chama a tecnologia de Blockchain de "The next big thing".
  • Steve Wozniak (aquele que ajudou o Steve Jobs a fundar a Apple) acabou de se tornar diretor de uma empresa de pagamento que está construindo uma plataforma baseada na tecnologia de blockchain.
  • Dois caras estão na luta para conseguir dinheiro com o objetivo de criar uma plataforma (Alexandria) para a transferência de mídia à prova de censura. Só isso já me fez pensar em uma forma completamente diferente de ter acesso a conteúdo na rede.
  • Bastante gente já está pensando em ganhar muito dinheiro com a tecnologia de Blockchain (como já estão ganhando muito com Bitcoin). Várias ideias interessantes sobre isso podem ser encontradas nesse livro.

Ainda é difícil dizer se o Bitcoin terá um papel importante em revolucionar o dinheiro. Eu acredito que sim e mais; penso que é um caminho necessário. Entretanto, debates relevantes estão ocorrendo entre figurões da economia com argumentos tanto contra quanto a favor da moeda.

Independente disso, a tecnologia de Blockchain é algo que em minha opinião será utilizado, adaptado e reaproveitado mesmo que o Bitcoin deixe de existir. Se estes são sinais que determinarão uma revolução em nossa vida, não é fácil prever. Mas se eu fosse você, não os ignoraria.

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Carlos Cabral
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Head of Content Production na Tempest. Escrevo sobre hacking, ataques, vulnerabilidades e outros assuntos do universo da segurança da informação.