90 dias sem chover

Gustavo Roças
isso não é um diário
3 min readOct 9, 2017

Chovia enquanto eu estava sentado num banco de praça que continua lá sem se aperceber da chuva exatamente como eu estava há muitos dias. Fazia 90 dias que não chovia e como a gente se acostuma com tudo eu já estava acostumado com a aridez.
Desde então chove sempre, desde quando eu estava sentado ignorando as gotas finas que criaram em mim uma camada úmida que disfarçava o suor das mãos.
A chuva tem um poder forte em mim, filho da água que sou, é muito fácil me encontrar durante um temporal: colado numa janela observando enquanto a água cai. Tem algo de efeito calmante saber que elas cairão todas, em linha reta, seguindo seu próprio caminho único e intransferível. O padrão da chuva é bom, acalma e agora eu lembro como eu estava calmo sentado no banco da praça que continua lá depois de tantos dias, depois de 90 dias sem chover, e daqueles que seguiram o nosso encontro — meu e do banco — que, esses sim, foram úmidos. Dentro e fora de mim.
Veja bem, não sei se ainda consigo mas não quero parecer muito dramático enquanto escrevo esse relato, é que tá chovendo agora e eu lembrei daquele dia em que eu tomei chuva pela última vez.

Aquele foi um dia de últimas vezes, e de primeiras também: foi a primeira vez em 90 dias que chovia, foi a primeira vez que fiquei sentado naquele banco enquanto chovia, foi a primeira vez que decidi que não queria mais ser um cachorro de rua, que de tanto ser alimentado com migalhas passa a acreditar que elas são refeições.

Foi a última vez, também. Que eu aceitei as migalhas.

Não foi fácil, e continua não sendo, o autoconhecimento é uma jornada dolorosa como uma maratona em condições extremas: como um temporal depois de 90 dias de seca.
Às vezes eu acho que eu nunca vou conseguir, em outras tenho certeza que jajá passa. Às vezes soluço sem motivo aparente, às vezes dou risadas tão altas que me fazem morrer de vergonha logo depois.
A maratona é muito difícil, mas necessária — eu sei. As bolhas que nascem nos pés servem para lembrar o tanto que já caminhei. E eu sigo. Tropeçando em mim mesmo, querendo me alimentar de migalhas, tomando chuva e enfrentando a nado a enchente que se forma dentro de mim. Dia sim, dia não.
Dia sim, e outro também.

Choveu enquanto eu sentava no banco da praça. Chove agora enquanto escrevo esse texto. Choverá amanhã quando eu ler e avaliar se vale a pena que alguém o leia. E continuará úmido, denso, pesado e doloroso até que faça Sol e a única coisa que me virá a mente será sorrir enquanto ultrapasso a linha de chegada da minha própria maratona, correndo com o gás que temos quando enxergamos o fim.
O fim da chuva, da maratona, dos soluços sem motivo aparente. E o início do meu encontro com meu
novo
eu.

- Gustavo Roças;

--

--